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A Comunidad Como Um Grupo De Convivência

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A ALDEIA: UMA COMUNIDADE DE FAMÍLIAS

2.1 Os Sentidos Nativos Da Comunidad

2.1.2 A Comunidad Como Um Grupo De Convivência

Se entre os yaveños a categoria comunidad pode denotar uma área de moradia e de trabalho, essa referência só faz sentido na medida em que remite a um grupo de pessoas que têm domínio sobre esse espaço. Em conseqüência, a superfície da aldeia constitui-se no território de um grupo de moradores ou de “vecinos” – vizinhos.

Como se observa nos depoimentos 2.1 e 2.2, para Camilo os moradores de uma aldeia estão “unidos por várias coisas”, é necessário “compartilhar” para fazer possível a vida na comunidad. Muitas das ações que devem ser compartilhadas e/ou coordenadas relacionam-se com o uso de água e as atividades produtivas que os membros de cada família realizam para garantir sua reprodução biológica e social. Desse modo, tenta-se fazer possível a convivência de grupos domésticos diferentes no mesmo espaço.

Para meu assombro, a representação de comunidad como grupo de convivência foi remitida não só por outros membros da aldeia à que pertence Camilo, mas também por integrantes das vizinhas. Perante as minhas indagações sobre o significado dessa categoria, recorrentemente as pessoas retrataram suas comunidades ora como um grupo de vizinhos, em alguns casos assemelhando-no a um bairro de uma cidade, ora como uma “grande família”. Depois faziam referência às diferentes coisas da vida cotidiana que compartilhavam: canais, capela, escola, campo de jogo, salão comunitário, estradas, etc. Compartilhar encontrava seu significado no próprio uso e na construção e manutenção dos bens em comum. Todavia, as “coisas compartilhadas” não se restringiram a bens materiais. As “festas”, a “ajuda” e, inclusive, a “tradição” foram elementos identificados como comuns aos diferentes integrantes de uma aldeia e, em conseqüência, constitutivos e coesivos do grupo. Isto é, o “nós” que se representa sob a categoria comunidad ou, mais comumente, através do nome da aldeia.

Mas compartilhar também referia a necessidade de “cooperar”, “colaborar” ou “ajudar”. Essa idéia foi freqüentemente acionada pelos aldeões em suas definições sobre comunidad. Em alguns casos, constituía-se na base sobre a qual se pensava a própria idéia de comunidad, como se observa na seguinte definição de um aldeão: “a comunidade é o lugar onde moram os vizinhos, ajudam-se uns aos outros, todos colaboram, todos se ajudam (...)”. Trás essa definição a ajuda mútua ou a reciprocidade emergiam como um dos elementos coesivos do grupo.

No relato dos aldeões, surgia, quer de forma explícita, quer implícita, a idéia de que o bem-estar de cada um era estreitamente ligado ao dos outros, como conseqüência desse conjunto de coisas que precisavam ser compartilhadas. Desse modo, a “união” percebe-se como um dos elementos indispensáveis para a boa convivência dos membros de uma comunidad. Em decorrência dessa visão de mundo, a idéia de unidade, assim como as atitudes que conduzem a ela, como a solidariedade, freqüentemente foram acionadas como valores desejados, especialmente em aqueles discursos normativos dirigidos a prescrever o comportamento dos moradores na aldeia.

Reconheço que fiquei surpreso ante as diferentes respostas. Não só porque obtive definições muito semelhantes e precisas, em grande medida, ante uma pergunta que refere a um universo abstrato que apresenta certa dificuldade para ser traduzido em palavras, mas também porque através delas acionaram elementos intangíveis nem sempre conscientes no imaginário social.

Certamente a cristalização dessa idéia de comunidad entre os yaveños está associada ao recente processo de conformação das organizações comunitárias aborígines, ocorrido a partir do final da década de 1990. Em cada aldeia, com a promoção de dirigentes de “organizações indigenistas”, das ONGs e da Igreja Católica, gerou-se uma intensa reflexão sobre a essência da comunidad, para posteriormente exprimi-la, junto a suas normas e regras de funcionamento, em um estatuo: a ata constitutiva da organização comunitária aborígine. No ANEXO há um modelo de estatuto comunitário.

Nessa (re)definição da idéia de comunidad recuperaram-se princípios de ação tradicionais, alguns dos quais estavam em “desuso” ou “perdendo-se”, segundo os yaveños. Essas “tradições” foram adaptadas aos padrões de vida atual e a uma estratégia jurídica desenhada pelos assessores externos, a fim de acelerar o processo de obtenção do título das terras.

Em decorrência desse processo, um dos aspectos mais discutidos que os yaveños têm muito presente ao falar da comunidad são os critérios que regram quem pertence a ela e quem não. A importância dessa norma radica em que através da comunidad se delimita e se produz o próprio grupo e, com ele, determinam-se seus membros e, em conseqüência, seus direitos sobre os bens da comunidad, em especial a terra. A instituição que regra como um indivíduo constitui- se em membro de uma comunidad é a mesma em todas as aldeias e estabelece que o laço de pertença se cria através do vínculo de sangue, casamento ou nascimento na aldeia.

Na concepção nativa, a unidade que integra uma comunidad é a família, não a pessoa. Em todo caso, uma pessoa é integrante de uma comunidad em sua condição de membro de uma família que pertence à comunidad. Assim, a comunidad, longe de ser uma ‘comunidade de indivíduos’, é uma ‘comunidade de famílias’. Portanto, compreende-se que os yaveños refiram o número de membros da comunidad em termos de famílias. Sempre que indaguei sobre quantas pessoas moravam em uma comunidad, a resposta foi referida ao número de famílias, isto é, lares ou grupos domésticos que residiam no território da aldeia. A única diferenciação que algumas pessoas fizeram foi entre as “familias censadas” – registradas no censo da comunidad– e as “famílias residentes”. A primeira categoria corresponde ao número de famílias que foram reconhecidas como membros da comunidad no momento da constituição da organização comunitária aborígine. A segunda categoria usa-se para denominar as famílias que, sendo membros da comunidad, residem permanente ou temporariamente na aldeia. As famílias que emigraram, e portanto não têm algum membro do lar morando na casa da aldeia, continuam a manter seus direitos sobre a terra já que não perdem seu vínculo com o grupo.

O parentesco, seja por descendência, seja por casamento, constitui-se formalmente no principal mecanismo que (re)produz o vínculo com a comunidad e, em decorrência, o próprio grupo de convivência. Tönnies (1947 [1887]) observou que as relações de parentesco eram constitutivas da modalidade de relacionamento comunitária e, por sua vez, Weber (2005 [1922]) acrescentou que contribuem a gerar um sentimento de pertença a um grupo, isto é, favorecem que os indivíduos sintam que “fazem parte de um todo”. Conforme ambos os autores, o reconhecimento de antepassados ou de uma origem comum freqüentemente é um elemento constitutivo e coesivo da modalidade de relacionamento comunitária, fato constatado para a sociedade yaveña. Destarte, compreende-se o motivo da densidade das relações de parentesco que existem nas aldeias, fato que, como foi analisado no capítulo anterior, fez com que alguns yaveños retratassem a comunidad como “uma grande família” ou percebessem-na como um âmbito familiar impregnado de certa intimidade.

Associado à instituição de pertença à comunidad está o direito à posse e uso da terra. Cada família tem direito tanto a uma porção de terra no local de “rastrojos”, delimitada por uma “pirca” – cerco feito de pedras e lama–, quanto a uma outra porção na área de moradas. Em algumas aldeias que no geral têm menos vocação pecuária, a área de pastagem é de uso comum, isto é, não existe uma superfície delimitada para cada família. Porém, em outras existe uma demarcação que embora não seja delimitada fisicamente é reconhecida por todos os aldeões. Contudo, a produção tanto pecuária como agrícola é familiar, isto é, cada grupo doméstico planeja e trabalha no espaço que lhe corresponde, mesmo que possa realizar diferentes tipos de parcerias com seus vizinhos e parentes. Quando se indaga aos yaveños sobre a origem dessa distribuição de terra, aludem a que “vem do tempo dos avôs”, isto é, dos antepassados e, portanto, faz parte de uma distribuição histórica, uma tradição, que é transmitida de pais a filhos ao longo das gerações. Segundo o direito consuetudinário, essa distribuição de terra foi respeitada na constituição das organizações comunitárias aborígines.

As lógicas de sociabilidade existentes na aldeia yaveña apresentam várias das características enunciadas por Weber para referir ao tipo de comunidade de vizinhança. Nesse tipo de modalidade de relacionamento existe uma situação de interesses condicionada pela proximidade física, na qual através da “ajuda mútua” é coberta uma parte importante das necessidades extraordinárias que não são garantidas pela comunidade doméstica, ou seja, o grupo doméstico. Esta última responde pela produção dos bens e do trabalho da vida cotidiana que possibilitam a reprodução biológica e social de seus membros (WEBER, 2005:293-395).

Nesse sentido, é possível pensar a aldeia yaveña como uma comunidade de vizinhança constituída por comunidades domésticas em imediata proximidade que compartilham um conjunto de bens, tangíveis e intangíveis, vitais para sua reprodução. Isso significa conceber a aldeia como um âmbito social no qual coexistem dois tipos de comunidades, a de vizinhança e a doméstica. Cada uma envolve uma modalidade de relacionamento e interesses particulares que geram pontos de complementaridade e de antagonismo. Essa ambigüidade condiciona o contexto onde se definem e implementam as estratégias de reprodução social camponesas. É nesse contexto ambivalente que adquire sentido a proposição de Tönnies quando sugere pensar “a essência da comunidade enquanto unidade do diferente” (TÖNNIES, 1947:38).

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