• Nenhum resultado encontrado

A Comunidad Como Entidade Política

No documento Download/Open (páginas 57-62)

A ALDEIA: UMA COMUNIDADE DE FAMÍLIAS

2.1 Os Sentidos Nativos Da Comunidad

2.1.3 A Comunidad Como Entidade Política

No início da presente década, cada uma das seis aldeias estudadas nesta pesquisa já tinha formalizado uma organização de representação de seus membros e obtido a pessoa jurídica de “organización comunitaria aborígen” – OCA-. No território da aldeia essa figura legal materializou-se na construção de um “salão comunitário”. Nesse prédio reúnem-se os vizinhos e recebem-se os visitantes externos.

Os estatutos das OCAs têm por objetivo geral “melhorar a qualidade de vida da comunidade”, em conformidade com a pessoa jurídica que representam, semelhante a uma associação civil sem fins de lucros (Anexo Capitulo Primeiro). Na esmagadora maioria dos relatos das lideranças, argumentou-se que a criação dessas organizações deveu-se principalmente à necessidade de obter o título de propriedade das terras. Em função disso, deveram constituir-se em concordância com a normativa legal para serem registradas pelo organismo governamental

correspondente sob a pessoa jurídica de OCA27. Essa pessoa jurídica é a única entidade de representação de membros de grupos indígenas reconhecida pelo Estado para solicitar o título de propriedade das terras.

As organizações comunitárias não surgiram a partir de um vazio organizativo. Além da própria organização social que supõe a vida comunitária, em algumas aldeias como em Grazalema e em Arcos, já existiam “centros vecinales” – centros de vizinhanças. Essas organizações foram criadas, após o retorno do sistema democrático em 1983, sob o patrocínio de dirigentes de partidos políticos e seus cabos eleitorais, para constituírem-se em instâncias de articulação e mediação entre a população rural e a prefeitura. Outras modalidades organizativas eram as dos grupos de beneficiários de MINKA e a Pastoral para o Desenvolvimento.

A partir da conformação das OCAs, uma grande parte das ações que se realizavam através dos centros de vizinhança e dos grupos de beneficiários das ONGs foram canalizadas nas novas organizações. Na consolidação das organizações comunitárias não só tiveram um papel fundamental os agentes externos – dirigentes de organizações indigenistas, de MINKA e da Igreja Católica–, mas também as lideranças comunitárias que foram assumindo cargos de representação nas instâncias organizativas preexistentes, ora a partir do patrocínio dos partidos políticos, ora dos membros das ONGs, ora como animadores religiosos.

Concebidas sobre um discurso que reconhece a vida em comunidade como a essência da convivência e, portanto, um estilo de vida na região, essas organizações surgiram como a representação da comunidad ante os agentes externos. Desse modo, constituíram-se na face institucional do grupo de convivência.

No entanto, é necessário salientar que, ao serem criadas sob a pessoa jurídica de OCA e com uma lógica de funcionamento transmitida pelos agentes externos (toma de decisões em assembléias e por votação, distribuição e delegação de responsabilidades segundo cargos, elaboração de projetos, etc.), incorporaram características do tipo de organização burocrática racional no sentido weberiano. Dentre outros quesitos para sua conformação, os membros devem definir: os fins da organização, os membros, o corpo de representantes e o procedimento para sua renovação, os bens comunitários e as regras para seu uso, as instâncias de tomada de decisões e as normas para a realização da contabilidade. Esses critérios de funcionamento devem ser explicitados em um estatuto comunitário para solicitar o reconhecimento como OCA.

Os estatutos comunitários das aldeias da comarca apresentam muitas semelhanças. Isso se explica pelo fato de eles serem inspirados na mesma pessoa jurídica e serem os mesmos agentes externos que assessoram os integrantes das diferentes aldeias.

Todas as organizações comunitárias têm um corpo de delegados que, se bem podem variar de organização em organização, possui como principais figuras: i) o “presidente” ou “cacique”, representa a organização ante os agentes externos e convoca e preside as reuniões comunitárias, ii) um secretário, responsável das atas e de suprir o presidente em sua ausência e iii) um tesoureiro que realiza a contabilidade da organização.

O funcionamento das “organizações comunitárias” foi pensado de maneira que fossem distribuídos entre seus membros as responsabilidades, os benefícios e as despesas das ações realizadas através da organização. Isto é, a “participação”, assim chamada pelas lideranças

27 A solicitude de reconhecimento de OCA pode ser efetuada ao Instituto Nacional de Asuntos Indígenas – INAI– ou

comunitárias e agentes externos, constitui-se no sustento da comunidad. Desse modo, cada família membro deve contribuir com uma quota mensal de dinheiro, para custear os gastos dos representantes (ligações telefônicas, xerox, viagens, etc.), e de trabalho, para a manutenção dos bens comunitários e a realização de eventos.

Mensalmente é convocada uma reunião à que deve assistir um representante de cada família membro da aldeia. Nas reuniões comunitárias, abordam-se temas de interesse dos membros: problemas que surgirem do cotidiano, o estado do trâmite de solicitude de títulos de propriedade da terra, organização de festas ou de trabalhos comunitários e informação sobre programas sociais do Estado e das ONGs.

Destarte, a organização comunitária constitui-se em um âmbito de organização e representação que através de seus porta-vozes outorga existência ao grupo. Isso é percebido e valorizado pelos yaveños. Ao responderem sobre as características da comunidad, com freqüência no início das respostas, fizeram-me saber que já tinham obtido a pessoa jurídica. Interpreto que procuravam significar sua existência formal como grupo, possivelmente “real” enquanto legal. Isso se observa em um trecho de uma conversa que tive com Oreste, seecretário da OCA de Grazalema, quando se referiu ao significado da formalização da organização comunitária:

DEPOIMENTO 2.3

Esto que tenemos en la comunidad aborigen es bastante bueno para nosotros porque ahí nos reconocemos como comunidad, digamos, como comunidad aborigen. Porque antes quizás ni figurábamos, entonces bueno, ahora con todo esto que tenemos, la organización que estamos, estamos reconocida como comunidad aborigen [M-YCH- 2007].

Quando lhe indaguei acerca de como contribuia a obtenção da pessoa jurídica de OCA na comunidad, o entrevistado lhe atribuiu o papel de “figurar”, isto é, fazer visível ou, melhor ainda, dar existência pública e reconhecimento social aos membros que integram a aldeia. É de salientar que nessa aldeia existiu um dos “centros vecinales” mais importantes da comarca. Embora enunciassem e, portanto, reconhecessem essa instância de organização em suas falas, os aldeões não lhe atribuíram um papel significativo nem na organização, nem na representação dos moradores da aldeia. Pareceria ser que nessa visão, a visibilidade como grupo social só tivesse chegado com a OCA, pessoa jurídica reconhecida pelo Estado. Parafraseando Bourdieu, o grupo torna-se concreto através das estruturas organizativas (regras, reuniões, estatutos, etc.) e, principalmente, através de seus próprios representantes (BOURDIEU, 1990:190). Desse modo, o grupo de pertença e convivência, isto é, o ‘nós’ passa a ser tangível para seus próprios membros a partir de ser reconhecido pelos representantes do Estado através da pessoa jurídica de OCA.

É fácil compreender o significado que adquiriu a OCA para os moradores das aldeias, se se considerar que com anterioridade a sua conformação, não existiam instâncias formais de encontro dos aldeões. Segundo os relatos obtidos, as instâncias periódicas de reunião no âmbito comunitário eram as religiosas, as promovidas pelos técnicos das ONGs e os mutirões para a manutenção dos canais de irrigação e dos prédios de uso comunitário. Nessas instâncias costumavam reunir-se parcialidades, quer dizer, grupos de pertença, pois a totalidade dos membros da aldeia não era necesssariamente convocada.

O dado eloqüente é que em algumas aldeias existiam os centros vecinales e que, embora fossem criados para converter-se em uma instância de organização e representação dos moradores, praticamente ninguém lhes atribuiu esse papel. Provavelmente se deva a que esses espaços, além de não terem reconhecimento jurídico, foram promovidos por dirigentes de partidos políticos, o que contribuiu a que os moradores os associassem a parcialidades políticas e não à totalidade dos membros da aldeia.

As convocatórias que efetivamente reuniam a maior parte dos membros de uma aldeia eram a Festa do Padroeiro e Carnaval e, eventualmente, reuniões convocadas para realizar um abaixo-assinado dirigido ao Prefeito. Assim entende-se que, com a criação das “comunidades aborígines”, não só surgiu um âmbito de representação do grupo de convivência, função que nenhuma das instâncias formais preexistentes podia assumir por representarem parcialidades, mas também formalizou-se um espaço de reflexão sobre o convívio cotidiano nas reuniões mensais.

A formalização da organização dos moradores de uma aldeia em uma OCA não só torna concreta a comunidade para seus membros, mas também para os agentes externos. Isso ocorre com os diferentes representantes do Estado e de organizações sociais, que na figura do “presidente” ou “cacique” reconhecem um porta-voz da comunidad e, portanto, a ela mesma. Desta forma, materializa-se o fetichismo político, como sugere Bourdieu, reduz-se a própria comunidade à reunião comunitária ou à figura de seus representantes (BOURDIEU, 1990:190). De fato, nos relatos dos yaveños e em particular nos dos agentes externos, a comunidade freqüentemente vira ‘alguém’, isto é, ‘um sujeito que pensa, opina, decide e age’, adquirindo certa ‘personalidade’. Através dessa construção homogeneíza-se a própria comunidad, onde se dissolve ou se nega o que na cotidianeidade coexiste e convive como diferente.

No tocante ao convívio na aldeia, é importante lembrar que se sustenta em regras ou, melhor dito, em princípios de comportamento que, embora muitas vezes não estejam explicitados, têm certo consenso pelas disposições que cria o habitus em cada agente sociabilizado nesse domínio cultural.

Entretanto, na lógica de funcionamento da “organização comunitária” ou “comunidade aborígine”, os membros pretendem racionalizar e combinar os diferentes procedimentos e princípios de ação, através do consenso ou votação. Em outro artigo (COWAN ROS, 2005), analisei a influência que tiveram os agentes da promoção social, especialmente os técnicos das ONGs que intervinham na região na introdução dessa lógica de funcionamento, tema que será abordado no próximo capítulo. Nesta parte, interessa assinalar que esses agentes, através da capacitação e da promoção da organização, pretendiam promover um processo de objetivação do mundo nos camponeses. Isto é, fazê-los conscientes do mundo em que vivem e definir um outro possível, a fim de desenhar ações coletivas planejadas e coordenadas para promover um processo de “desenvolvimento” que supõe, nessa perspectiva, um melhoramento na qualidade de vida dos camponeses. Em certa maneira, grande parte dessa objetivação é realizada nas reuniões mensais, espaço consagrado para definir quais “os problemas da comunidade” e quais as “soluções”. Portanto, entende-se que as reuniões comunitárias se constituam em espaços de disputa pela definição do mundo, fato que envolve a (re)definição do espaço social da aldeia.

Desse modo, observa-se que nas organizações comunitárias há uma tendência a promover uma lógica de relacionamento que apresenta algumas características da modalidade de relacionamento de sociedade ou associação no sentido proposto por Tönnies (1947 [1887]) e retomado posteriormente por Weber (2005 [1922]). Nesses âmbitos de sociabilidade referidos

acima, as pessoas associam-se para determinados fins que podem ser explicitados sob a figura de contrato ou acordo, que no caso analisado se trata do estatuto comunitário. Diferentemente do tipo ideal de comunidade, a individualidade dos membros persiste na associação ou, em outras palavras, sobrepõe-se ao sentimento de pertença a um todo, o que se constitui em um espaço de reciprocidade interessada que pode dar lugar à competência e à disputa.

Embora os yaveños relacionem com freqüência a criação das organizações comunitárias aborígines com a obtenção do título da terra, nos depoimentos revelou-se a crescente importância que está adquirindo a organização comunitária na regulação da convivência cotidiana na aldeia, seja através das ações que se realizam nesses âmbitos, seja na própria letra dos estatutos comunitários que regram obrigações e punições para os membros. Quando conversei com os presidentes das comunidades, pedi em reiteradas ocasiões que me facilitassem uma cópia do estatuto comunitário argumentando o interesse em conhecer o funcionamento da comunidad. No entanto, em mais de uma ocasião manifestaram-me que não devia prestar muita atenção nele, pois “nem sempre é respeitado”. De fato, o estatuto foi desenhado para que as OCAs fossem reconhecidas pelo Estado, porém o funcionamento da organização surge das decisões que se tomam periodicamente na reunião comunitária.

Como observou Camilo (depoimento 2.1), longe de ser um lugar público, ou seja, aberto aos membros de outras aldeias ou aos agentes externos, a reunião comunitária é íntima, porque constitui um espaço onde se abordam temas que fazem ao cotidiano dos membros da comunidad. Isso se deve a que nessas reuniões freqüentemente se abordam questões domésticas, como por exemplo problemas de convivência que surgem no dia-a-dia. Nos termos de Camilo, essas brigas se relacionam com “tudo o mau da comunidade”, pois fala acerca de como são os moradores, de sua moral. E isso pode ser utilizado por outros para aprofundar nos conflitos internos ou, inclusive, afetar a reputação da comunidad e, em decorrência, de seus membros. Assim como a família, no sentido de lar, consagra-se como um âmbito de maior intimidade e confiabilidade do que o da parentela, a comunidad constitui um domínio social mais resguardado ou íntimo; se for pensado em relação a um bairro de cidade, mas menos íntimo se comparado com o lar.

Evidentemente, a diferenciação entre a comunidad – no sentido de grupo de convivência– e a OCA corresponde mais a um exercício de abstração teórico que faz o pesquisador do que a uma realidade empírica concreta. Se bem ambos os grupos sociais desenvolvem-se no mesmo âmbito de sociabilização, adquire sentido pensá-las de maneira diferente para analisar em que medida as lógicas de relacionamento societárias, que se pretendem estabelecer no âmbito da “comunidade aborígine”, conseguem impor-se às comunitárias e vice-versa. Se, por um lado, através da “comunidade aborígine” pretende-se regrar o convívio comunitário, por outro, a individualidade e racionalidade que regem no tipo ideal de associação proposto por Weber dificilmente possam ser atingidos quando existem intrincadas relações afetivas, de parentesco e vizinhança entre seus membros e a “tradição” continua a ser um marco de referência para regrar o convívio. Efetivamente, a dinâmica desses espaços continua a estar fortemente influenciada pelas relações cotidianas da comunidad, o que dificulta os agentes dissociarem seus interesses individuais das relações de parentesco, religiosas ou de compadrio e das emoções que gera o convívio cotidiano.

Assim, entendo que, além de pensar as organizações comunitárias como espaços societários, teriam que ser interpretadas como âmbitos de sociabilidade híbrida. Isto é, ao serem criadas no âmbito sócio-cultural da aldeia e estarem constituídas por seus mesmos membros,

constituem-se em âmbitos de sociabilidade onde é possível se encontrar elementos da lógica de relacionamento de sociedade e de comunidade.

Um aspecto necessário de salientar é o fato de que com a criação da “comunidade aborígine” não só se formaliza uma entidade representativa dos membros da aldeia, mas também cria-se um âmbito que tende a avançar na ‘administração’ da convivência da aldeia. No passado, os conflitos entre membros da aldeia eram gerenciados pelas partes intervenientes ou por terceiros que agiam como mediadores. Sempre pessoas próximas. Só, em casos graves era convocado o juiz rural, fato que significava levar um conflito doméstico a um âmbito de incumbência pública, aliás, do Estado. Atualmente surge no interior da comunidad uma instância formal que avança na regulação da convivência, estabelecendo obrigações e direitos que se tornam efetivos através da distribuição de benefícios e da imposição de punições. Paradoxalmente, a “comunidade aborígine”, fundada em um discurso que valoriza a vida comunitária, incorpora algumas normas de funcionamento societário na aldeia. Por outro lado, essa organização comunitária vai adquirindo crescente importância como entidade de intermediação das relações com o ‘mundo externo’, o que revela outros papéis, além do mecanismo para aceder à posse legal da terra.

Em síntese, a aldeia yaveña constitui-se em um domínio social complexo, que pode ser pensado como um âmbito onde coexistem diferentes grupos sociais e princípios de relacionamento, ora complementares, ora antagônicos. A aldeia yaveña é um âmbito social onde predominam as relações do tipo de comunidade. Em particular, constitui-se em uma comunidade de vizinhança, isto é, um conjunto de comunidades domésticas unidas por coisas que compartilham: um espaço de convivência, laços de parentescos, uma tradição, recursos fundamentais para o cotidiano dos moradores e a imperiosa necessidade de conseguir ajuda do Estado e dos agentes de promoção social. Mas com a recente criação das organizações comunitárias aborígines, criou-se uma nova organização social no seno das aldeias que incorpora alguns elementos do tipo societário à modalidade de relacionamento comunitário, hibridizando as lógicas de vinculação no cotidiano da aldeia.

Até aqui analisei a constituição da aldeia yaveña a partir do discurso nativo. Em seguida, centrar-me-ei em seu funcionamento. Analisarei, em particular, diferentes casos onde se aprecia a distância entre o discurso performativo de seus membros, quer dizer, como deveriam ser as coisas e o cotidiano da aldeia, como as coisas são.

No documento Download/Open (páginas 57-62)