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A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL NO BRASIL

2.2 A reestruturação produtiva no espaço nacional

O Brasil, país de capitalismo tardio (MELO, 1982), somente inicia seu processo de reestruturação produtiva nos anos 1980. Na primeira metade dessa década, as tentativas de reestrutu- ração praticamente inexistiram. O governo, os empresários e os trabalhadores voltavam suas atenções para a crise da dívida externa e a recessão econômica provocada pelo segundo choque do petróleo. Somente na segunda metade dos anos 1980 é que ocorrem impulsos significativos para a reestruturação produtiva no Brasil. Nos anos 1990, ocorreu a acentuação do processo de reestruturação, apresentando concretamente suas consequências.

Em uma periodização mais detalhada, pode-se afirmar, consoante Leite (1994), que o processo de reestruturação produ- tiva, em sua fase inicial, caracterizou-se, primeiramente, pela aquisição de novas tecnologias e, secundariamente, pela disse- minação dos Círculos de Controle de Qualidade – CCQ20. O início

dos anos 1980 pode ser visto como o ponto de partida para o processo de reestruturação produtiva no Brasil. Até meados dos anos 1980, a reestruturação limitou-se a uma incipiente renova- ção tecnológica por parte das grandes empresas exportadoras e à implementação dos CCQ. Segundo Fleury (apud LEITE, 1994), o Brasil, em 1992, encontrava-se em segundo lugar no ranking de países com CCQ, ficando atrás apenas do Japão.

O célere crescimento do período do milagre econômi- co (1968-1973) ainda repercutia na sociedade brasileira, não permitindo que o empresariado vislumbrasse novos horizon- tes diferentes do fordismo, com sua rotinização, parcelização e estabilidade a que estava acostumado. A esses elementos juntava-se o autoritarismo-burocrático do Estado Brasileiro (COLLIER, 1982), que emperrava iniciativas de democratização na unidade fabril, vistas como “revolucionárias”.

No entanto, a crise da dívida externa, em conjunto com choque do petróleo, criou um ambiente propício para a introdu- ção de políticas recessivas que contrariaram o desenvolvimento do mercado interno. Esse contexto, coligado à política de estímulo à exportação, cujo objetivo se constituía em absorver divisas internacionais para a manutenção do pagamento da dívida, promoveu um choque de competitividade, ainda incipiente para o porte da economia brasileira, mas que estimulou as empresas em busca de meios para ampliar a produtividade.

Nos primeiros anos da década de 1980, marcada pela recessão econômica e pela crise da dívida externa, as grandes empresas brasileiras e as multinacionais promoveram uma racionalização, de caráter defensivo, no processo produtivo que se fundamentou na incorporação de inovações tecnológicas e organizacionais. Evidentemente, as inovações tecnológicas permitiram uma redução dos custos que se constituiu em um processo de demissão, que atingiu os trabalhadores e suas lide- ranças sindicais. Essa racionalização defensiva constituiu-se muito mais em um ataque ofensivo do capital, acirrando a luta de classe na sociedade brasileira naquele momento (ALVES, 2000).

As inovações tecnológicas atuaram contra os trabalha- dores, no sentido de tornar excessivo, na visão produtivista do empresariado, o número de empregados nas unidades fabris das empresas exportadoras. Esse contexto permitiu que o empre- sariado demitisse em grande quantidade, principalmente os líderes trabalhistas, vistos como incômodo ao bom desempenho do capital. Por outro lado, as inovações organizacionais limi- tavam-se à implementação dos CCQ. Evidentemente, a filosofia que norteava o CCQ no Brasil dissociava-se quase totalmente da filosofia japonesa.

O discurso da qualidade e da participação difundido pelo empresariado, tendo por fundamentação o toyotismo, distan- ciava-se do mesmo no seu processo de implantação. Os CCQ, no Brasil, foram muito mais uma forma de controle da mão de obra do que um processo de modernização e democratização do espaço fabril.

Nessa primeira fase, os CCQ não se desenvolveram qualitativamente, tal qual no Japão, devido à resistência dos gerentes à delegação de decisões e à participação efetiva dos trabalhadores na produção. Agregaram-se a essa posição dos

gerentes, o receio do empresariado em conceder poder aos trabalhadores e a oposição dos sindicatos ao que julgavam ser mais uma forma de dominação, controle e exploração da força de trabalho (LEITE, 1994). Por meio dos CCQ, o empresariado se apropriava do savoir faire do trabalhador (ANTUNES, 2005), constituindo-se, assim, em um recurso ideológico do capital para dominação sub-reptícia da força de trabalho, absorvendo não somente sua capacidade de despender força física, mas também força mental. Em outras palavras, o capital ampliou a exploração do trabalhador ao lhe exigir, além do trabalho, o esforço em refletir o processo de produção, procurando corrigir ou, pelo menos, apontar os possíveis erros e falhas na produção.

Além dos CCQ, o sistema just in time e o kanban contri- buíram para o processo de rotinização do trabalho, levando diversos autores a desenvolverem a ideia de que o toyotismo nada mais seria do que um fordismo híbrido. Afinal, se o fordismo reduzia significativamente o tempo morto próprio do processo de trabalho artesanal, o toyotismo extinguiu o tempo morto próprio do fordismo (GORENDER, 1997). A polivalência e a qualificação limitavam-se à capacidade de interagir com diversas máquinas. Constituía-se um trabalhador “livre”, mas livre apenas para opinar dentro do solicitado, excluindo-se as deliberações. Dessa forma, o conceito de toyotismo restrito (ALVES, 2000) emprega-se corretamente, tanto nos anos 1980 quanto atualmente. As mais recentes inovações tecnológicas e organizacionais continuam servindo ao processo de acumula- ção de capital, em detrimento do trabalhador.

Na segunda metade dos anos 1980, o processo de reestru- turação produtiva decolou. Nesse período, iniciou-se a segunda fase, na qual a busca por inovação tecnológica e organizacio- nal acentuou-se. O contexto de redemocratização e retomada

do crescimento favorecia a implementação de novos modelos de gestão da produção e do trabalho, advindos e inseridos em padrões de acumulação flexível do capital. Os equipamentos de base microeletrônica, robôs, máquinas-ferramentas, just in time,

kanban, kaizen (HIRATA, 1996), programas de qualidade total,

começaram a se difundir entre as empresas brasileiras devido à retomada dos investimentos. A inserção desses modelos de gestão da produção e do trabalho, as tecnologias e as técnicas que lhes davam suporte foram implantadas inicialmente pelas multinacionais e pelas grandes empresas nacionais. Os modelos foram ajustados à realidade e à cultura brasileira, o que implicou, em alguns casos, o fracasso (LEITE, 1994).

Os resquícios de uma cultura autoritária, vivenciada no período ditatorial, obstaculizavam iniciativas participativas que poderiam criar situações de participação operária dentro da empresa. Associado a esse fato, a taxa de rotatividade da força de trabalho criava obstáculos à participação dos traba- lhadores no processo decisório. Ademais, as exigências a uma maior qualificação profissional não foram acompanhadas por esforços empresariais expressivos. Segundo Gorender (1997), a tradição despótica e paternalista das administrações empre- sariais brasileiras obstaculizava as iniciativas participativas, mesmo que fossem em prol do capital.

No início da segunda metade dos anos 1980, ocorreu uma acentuação da automação microeletrônica de caráter seletivo, ou seja, a inovação tecnológica assumiu a primazia frente às inovações organizacionais. Esse fato derivou das possibilida- des de investimento nas empresas, resultado do crescimento econômico que ocorreu no período. Nesse primeiro momento, pode-se notar três características fundamentais que justificam o caráter seletivo da automação. Em primeiro, aconteceu no

período uma incorporação parcial e seletiva das inovações tecnológicas; em segundo, a heterogeneidade tecnológica acentua-se, pois novas tecnologias não eliminaram as velhas, mas coexistiram e continuam coexistindo no mesmo espaço produtivo; e, por fim, a irradiação da modernidade tecnológica e organizacional partiu das grandes empresas exportadoras, nacionais e não nacionais (ALVES, 2000).

No fim dos anos 1980, com a inflação elevada provocan- do a queda nos investimentos devido aos cenários econômicos arriscados, as empresas promoveram modificações produtivas que realmente tenderam a se tornar sistêmicas (ALVES, 2000). Essa inflação também contribuiu contra a implementação do

just in time, pois se mostrava mais rentável o lucro inflacionário

obtido com a manutenção de elevados estoques (GORENDER, 1997). A inflação galopante do fim dos anos 1980 não impedia o processo de renovação tecnológica das empresas multinacionais e das grandes empresas nacionais. As primeiras incorporavam tecnologia advinda das matrizes e as segundas as adquiriam no intuito de não perder participação no mercado.

As empresas visionárias conseguiram mesmo se anteci- par ao processo de abertura comercial promovida pelo governo Collor nos anos 1990. Em um estudo sobre o setor automobilís- tico, Moutinho e Porsse (1999) mostraram, por meio de testes econométricos, que a elasticidade emprego/produção tornou- -se negativa para o período posterior a 1987. Essa elasticidade negativa demonstra que ocorreu uma queda do emprego, no setor, sem que ocorresse, concomitantemente, uma queda na produção. Esse fato deveu-se à maturação das inovações tecno- lógicas e organizacionais introduzidas no setor, na década de 1980, e que passa a afetar com mais virulência o mundo do trabalho a partir do fim da década.

A terceira fase foi influenciada pela crise econômica e pela abertura comercial. Esses dois fatores forçaram as empresas a buscar estratégias de produtividade e qualidade para fazer frente à concorrência internacional, que encontrou, no Brasil, um grande mercado ainda não plenamente explorado, devido às reservas de mercado, às cotas de importação, às barreiras sanitárias e aos elevados impostos alfandegários que obstaculiza- vam excessivamente as importações. A derrubada das barreiras à entrada de produtos importados implicou busca desenfreada pela competitividade, o que levou os empresários a repensarem a gestão da produção e da força de trabalho, implicando na promoção de uma série de mudanças visando ampliar a quali- dade e a produtividade, como também baixar os preços.

Nos anos 1990, acentuou-se a implementação dos programas de qualidade total, a terceirização dos setores não essenciais às empresas, a busca pela modernização dos fornecedores, pela ênfase focalista no core-business da empresa etc. (LEITE, 1994). Diversos setores produtivos brasileiros, protegidos por barreiras alfandegárias, retardaram a reestru- turação produtiva, implicando significativo atraso tecnológico para o país e perda da competitividade para essas empresas. Independentemente da motivação pela qual algumas empresas não promoveram a renovação tecnológica e organizacional para aumentar a competitividade e produtividade, muitas foram à falência e outras, forçosamente, se reestruturaram para se manter no mercado.

Pode-se elencar três causas principais para o processo de reestruturação produtiva no Brasil. A primeira consiste na necessidade de as empresas brasileiras competirem interna- cionalmente em um comércio mundial altamente agressivo e concorrencial. A segunda consiste na implementação, por parte

das multinacionais, de novas tecnologias de gestão e produção. A implantação dessas novas tecnologias acelerou-se nos anos 1990, a partir da política do governo Collor de “derrubar” as barreiras alfandegárias aos produtos importados. A terceira consiste na necessidade, gerada nas empresas nacionais, de corresponder à maior competição nacional e internacional (ANTUNES, 2005). Na primeira metade dos anos 1990, o processo de reestruturação produtiva acentuou-se, alcançando seu auge. Nesse período, as empresas que não conseguiram se reestrutu- rar, ampliando a produtividade, cortando custos e implantando novas tecnologias poupadoras de mão de obra e produtoras de bens e serviços de elevada qualidade, foram paulatinamente levadas à falência (BARROS; GOLDENSTEIN, 1997).

No Brasil, a reestruturação produtiva apresentou caracte- rísticas sui generis. Entre essas características, é relevante citar o corte abrupto de custos, principalmente nos recursos humanos, ou seja, por meio da reengenharia (downsizing), implementa- ram-se modelos de gestão e produção flexíveis que expulsaram grande quantidade de trabalhadores dos seus postos de traba- lhos. Paradoxalmente, a reengenharia expulsou até mesmo os que a executaram (CAIXETA, 1995). Evidentemente, os mais atingidos foram os trabalhadores de baixo nível de escolaridade e pouca capacidade de exercer múltiplas funções e atividades dentro da empresa.

Uma outra característica importante constitui-se na heterogeneidade tecnológica. Nos últimos anos, as velhas e as novas tecnologias, tanto em gestão como na produção, têm convivido, não necessariamente de forma harmônica, em diversos mercados, ratificando a convivência entre a acumula- ção flexível e o fordismo, muitas vezes dentro do mesmo espaço.

Uma terceira característica diz respeito à descentrali- zação produtiva como face de sua reestruturação. No Brasil, a reestruturação produtiva implicou um processo de descen- tralização de alguns setores importantes, principalmente os intensivos em trabalho. A descentralização produtiva caracte- rizou-se muito mais por ser uma relocalização industrial do que por ser, em sua essência, descentralização de capitais. Esse fato ocorreu devido ao aumento da concorrência capitalista que se deu com a abertura comercial e a queda das barreiras alfande- gárias. As empresas, além de modernizarem-se, com intenso enxugamento funcional, procuraram relocar os novos investi- mentos – plantas – ou mesmo algumas fábricas já existentes, no intuito de absorver as vantagens econômicas e não econômicas, anteriormente desprezíveis, das localidades onde pretendiam se instalar. Além do mais, estimularam um clima de concor- rência entre as localidades, visando à obtenção de vantagens artificialmente criadas para elas (ANTUNES, 2005).

A reestruturação produtiva, no Brasil, tem apresenta- do uma característica básica, que consiste em uma pequena desconcentração industrial, resultado de um processo de relo- calização das plantas industriais do sudeste para as demais regiões do país21. Essa e outras características serão desenvol-

vidas nos itens seguintes.

21Segundo dados da RAIZ/MTE, entre 1990 e 2000, a participação da região

Sudeste no emprego formal no Brasil, na indústria da transformação, a queda foi de 64,6% para 55,5%. A região que mais aumentou, relativamente, sua parti- cipação foi o Sul, seguido pelo Centro-Oeste, que ampliaram de 20% para 25,4% e de 1,9% para 4,1% as respectivas participações no emprego na indústria da transformação. Em números absolutos, o Sudeste reduziu em mais de 800 mil o número de empregos formais na indústria da transformação.

2.3 A reestruturação produtiva e a