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Do fordismo à acumulação flexível: a gênese da reestruturação produtiva do capital

A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL NO BRASIL

2.1 Do fordismo à acumulação flexível: a gênese da reestruturação produtiva do capital

O sistema capitalista na pós-Segunda Grande Guerra, hegemonicamente, organizou-se produtivamente a partir do sistema fordista-taylorista de produção. O fordismo carac- terizava-se por uma produção homogênea, em massa, com trabalho parcelar e fragmentado, com separação nítida entre o processo de elaboração e execução das atividades de produção, estruturado a partir de grandes indústrias concentradas e verticalizadas com estabilidade de emprego e elevados salários, com organização científica do trabalho e com um regime de acumulação, como diria Alan Lipietz, bem regulado (ANTUNES, 2005; HARVEY, 1998; LIPIETZ, 1988b).

No período fordista, o Estado, pelo menos nas nações de primeiro mundo ou desenvolvidas ou industrializadas, estava voltado para o Welfare State, ou Estado de bem-estar social. Utilizando-se da contribuição de Swyngedouw, Harvey (1998) apresenta o Estado capitalista do pós-guerra como: de elevado grau de rigidez, em busca da estabilidade internacional por meio de acordos multilaterais, centralizado, praticante da intervenção indireta nos mercados a partir das políticas de renda e de preços, incentivador da negociação coletiva etc. O fordismo e o Welfare State garantiram para a sociedade um elevado padrão de vida e uma estabilidade empregatícia, o que não ocorreu nos países menos desenvolvidos.

Em alguns países em desenvolvimento, em particular os de renda média, embora não se encontrasse um verdadeiro

Welfare State, havia um Estado nitidamente interventor, quando

não no social, pelo menos no econômico. Um exemplo é o caso brasileiro, em que o Estado atuava tanto direta como indireta- mente na produção e nas questões vinculadas à sociedade civil. O esgotamento do fordismo, como padrão de acumu- lação capitalista e de sistema técnico-produtivo, no fim dos anos 1960, é causa e efeito da emergência de um novo padrão e um novo sistema técnico-produtivo, caracterizado pela flexi- bilidade. Em outras palavras, o fim do fordismo estimulou a emersão desse novo padrão, como também foi causado pelo mesmo. O novo padrão consolidou-se a partir das experiên- cias desenvolvidas no Japão. Fundadas na flexibilidade, essas experiências mostraram o caminho para nova ofensiva do capital que permitiria saída da crise e retomada da acumula- ção. Essa retomada do processo de acumulação, definida como acumulação flexível, apoia-se “na flexibilidade dos processos

de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (HARVEY, 1998, p. 140).

Embora Harvey (1998, p. 140) considere que essa acumu- lação flexível se caracterize pelo “surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimen- to de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”, o que realmente existe de novo é a flexibili- dade. No capitalismo, o surgimento de novos setores, produtos, mercados e inovação são constantes no desenvolvimento desse modo de produção. Esses fenômenos têm-se acentuado no sistema, porém, a flexibilidade se constitui em algo novo que, até então, não se percebia nesse modo de produção. Harvey (1998) também apresenta uma nova “compressão do espaço-tempo” como um fenômeno intrínseco ao padrão de acumulação flexível. A flexibilidade permite ao capital absorver mais e mais do trabalhador e do consumidor, tornando o espaço e o tempo exíguo para o exercício do trabalho e do consumo.

A acumulação flexível abriu espaço para que os modelos de gestão do trabalho e da produção flexível se difundissem pelo mundo. O modelo que logrou maior êxito mundial origi- nou-se no Japão. O toyotismo, ou Ohnionismo agregou-se a diversos outros elementos de gestão na indústria, na cultura, na sociedade em geral, contribuindo para que o processo de acumulação de capital acentuasse sua flexibilidade.

Esse sistema japonês, além de flexível, fundava-se em três alicerces básicos: no emprego vitalício17; na promoção por

tempo de serviço; e no sindicato de empresa. Evidentemente,

17Emprego vitalício no Japão é apenas para uma pequena parcela da popu-

tais fundamentos não são universais na nação japonesa, pois se limitam aos homens que trabalham em grandes empresas, marginalizando tanto as mulheres, como os homens que traba- lham em pequenas empresas e os imigrantes – dekasegui –, consistindo em um modelo de exclusão (HIRATA, 1996). No entanto, do Japão, o novo regime de acumulação alastrou-se pelos demais países capitalistas, por ser visto como panaceia para a crise que atingia o taylorismo-fordismo.

Essa expansão ocorria paulatinamente à adequação desse regime às peculiaridades culturais, políticas e ideológicas em cada região na qual se instalava. Dissociando-se do fordismo, por ser um sistema de produção mais flexível, voltado para a demanda, heterogêneo, descentralizado e horizontalizado, sem estoques, que exige trabalhadores multifuncionais, com controle de qualidade integrado à produção (ANTUNES, 2005; HARVEY, 1998), a acumu- lação flexível e o toyotismo continuaram a se expandir entre as empresas no mundo capitalista, superando as possibilidades de implementação de outros modelos, como o da especialização flexível18 ou o kalmarismo (ALVES, 2000).

A disseminação da acumulação flexível veio acompanha- da de um processo de neoliberalização e redução do Estado, combatida pelos trabalhadores e pelo movimento sindical. Para ser mais exato, o processo de neoliberalização e redução do Estado, em todas as dimensões, abriu e garantiu o espaço necessário para que a acumulação flexível se espalhasse no mundo ocidental. Ao difundir-se pelo capitalismo ocidental, a acumulação flexível não extinguiu totalmente o fordismo. Misturou-se a esse, mas sempre superando o padrão de

18O modelo de gestão fundado na especialização flexível (ver. Cap. 1.3.4) conti-

acumulação de capital regido pelo fordismo. Além do mais, esse padrão de acumulação, semelhantemente ao fordismo, cria e recria “o homem a sua imagem e semelhança”, ou seja, recicla e reconfigura o trabalhador, visando a torná-lo adequado ao novo sistema produtivo, ao novo mundo de consumo, enfim, à nova realidade “pós-moderna” e “pós-industrial”. Os que não se adaptarem à nova reciclagem e reconfiguração estão afas- tados da “modernidade” e, consequentemente, condenados à exclusão, desfiliação, desqualificação, apartação (CASTEL, 2005; PAUGAN, 2003) e tantas outras categorias criadas pelos diversos estudiosos. Resumidamente, passam a pertencer ao exército industrial de reserva (MARX, 1988), nem que seja no segmento mais baixo do mesmo, o lumpemproletariado.

Compreender como ocorreu a insurgência do sistema de acumulação flexível do capital (HARVEY, 1998), possibilitado pelo intenso desenvolvimento tecnológico, em especial da informática e da robótica, é fundamental para a compreensão do processo de reestruturação produtiva do capital no século XX. Embora seja consensual que a década de 1970 apresente-se como uma década de ruptura tecnológica, econômica, política e produtiva, essa ruptura somente se sustentou devido a uma revolução tecnológica que tem sua base no desenvolvimento da geração/processamento e na transmissão da informa- ção. Essa revolução tecnológica somente ocorreu devido ao incremento da microeletrônica e da informática entre os anos 1960 e 1970 (CASTELLS, 2000c). A revolução tecnológica acentuou a possibilidade e a necessidade das empresas de se reestruturarem.

O sistema fordista de produção, hegemônico nos anos dourados do capitalismo, entrou em decadência devido à crise de subconsumo, segundo alguns pesquisadores neoclássicos,

ou, mais corretamente, devido à crise do paradigma industrial, latente no sistema, provocado pela desaceleração da produtivida- de e pelo crescimento da relação capital/trabalho que acarretou uma queda da lucratividade e, consequentemente, implicando reação dos capitalistas e do Estado (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988).

Os capitalistas reagiram por meio da internacionalização da produção (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988) e da reestruturação produtiva, implicando no uso de uma tecnologia microele- trônica e flexível e de novos padrões de gestão da força de trabalho. Nesse processo de reação, os elementos constitutivos do toyotismo, principalmente os de gestão da força de trabalho (CCQ, Qualidade Total, Kanban19 etc.) foram substancialmente

implementados, evidentemente, adaptados à nova cultura e ao novo espaço, no qual tais métodos inseriam-se.

O Estado reagiu por meio das políticas de austeridade (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988) reduzindo sua atenção social para com a sociedade. Os Estados mais desenvolvidos reagiram no mesmo sentido, mas em proporções diferentes. Todos procu- raram reduzir suas despesas. Com esse intuito, governos e empresários atacaram principalmente os direitos dos traba- lhadores, buscando reduzi-los e flexibilizá-los, ao mesmo tempo em que se liberava o capital. Nos anos 1970, entrava em cena o

19“Os círculos de controle de qualidade ou CCQs foram criados no Japão no

início da década de 1960. São grupos pequenos de trabalhadores constituí- dos, geralmente, por 6 a 10 empregados da mesma seção ou setor, que se reúnem de forma voluntária e sem remuneração, com o objetivo de pensar a qualidade na empresa. A Qualidade Total consiste no controle exercido por todos e para todos, implicando na ideia de um projeto perfeito, sem defeitos, a baixo custo, seguro e entregue no prazo certo, no local certo e na quantidade certa. O kanban consiste em uma técnica de programação de produção, de origem japonesa, na qual os próprios operadores controlam as necessidades de produção e prioridades através de um quadro com cartões ou fichas. Para mais informações, ver Sashkin e Kiser (1994).

neoliberalismo, apregoando ser a panaceia tão esperada para as crises capitalistas. Nos EUA, arauto-mor do neoliberalismo, o governo Reagan adotou, ao fim dos anos 1970, uma política estratégica visando a solapar o arcabouço econômico-institu- cional edificado desde o New Deal (PAULA, 1995). Na Inglaterra, a Dama de Ferro, a primeira-ministra Margareth Thatcher, impôs mudanças severas na economia, principalmente para o mundo do trabalho. Os demais países seguiram à reboque o trem do neoliberalismo. Porém, o neoliberalismo implementado pelas grandes potências coexistiu com um forte protecionismo do mercado interno, negando, em grande parte, os pressupostos do neoliberalismo defendidos pelos intelectuais da referida ideologia, a exemplo de Friedman (1982).

A crise do fordismo, a emergência da acumulação flexível e a crise do neoliberalismo trouxeram perdas significativas para o mundo do trabalho, que vão variar de acordo com o poder de pressão dos sindicatos e de imposição do Estado. Nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, as perdas foram significativamente maiores, porque a população não havia se beneficiado, até então, de um verdadeiro Estado de bem-estar social. O crescimento do desemprego, a precarização dos postos de trabalho, a queda nos salários reais, a crescente inseguran- ça do trabalho e o declínio da sindicalização (ANTUNES, 1995; MATTOSO, 1995; POCHMANN, 1999; etc.) são apenas alguns exemplos das consequências da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais implantadas a partir da década de 1970.

Por reestruturação produtiva do capital entende-se a fase do processo de acumulação flexível que introduz, nos diversos espaços produtivos, os novos métodos, tecnologias, técnicas e cultura do produzir, fundado nos alicerces da flexibilidade, gerando impactos multidimensionais que serão absorvidos pela

totalidade social. A reestruturação é a fase de metamorfose entre dois modos de regulação (fordismo versus acumulação flexível) e suas respectivas culturas. Quando se fala em fase, considera-se inerente à mesma a ação e atuação em prol da mudança, realizada pelos capitalistas em favor do processo de transformação, sem negligenciar as reações dos trabalhadores a essas transformações.

Esse processo iniciou-se com a disseminação das novas técnicas/tecnologias na produção e gestão do trabalho, conso- lidando-se com a absorção do novo ideário socioprodutivo. Assim, entende-se que, no mesmo padrão de acumulação capi- talista – acumulação flexível –, possam existir vários processos de reestruturação produtiva, desde que novas tecnologias sejam criadas e disseminadas na produção e na sociedade. Essas novas tecnologias devem permitir um salto na produtividade e uma nova forma de ajustamento sociocultural. Essa concepção contrapõe-se parcialmente à ideia de “complexo de reestrutu- ração produtiva” de Alves (2000), devido ao fato de este ver a reestruturação como um processo e não como um complexo.

A transformação no mundo da produção traz repercussões para todas as dimensões da vida, que somente se consolidam se a sociedade absorver majoritariamente as novas concepções ideológicas (produtivas, sociais, políticas, culturais etc.) do novo padrão de acumulação, no caso flexível. A reestruturação produtiva inicia-se, no mundo capitalista ocidental, nos anos 1970, como reação ou ofensiva do capital na produção (ALVES, 2000) à crise do capital (MANDEL, 1990) e ao sistema fordista de produção (LIPIETZ, 1988b). Esse processo de reestruturação inicia-se, principalmente, na indústria automobilística que busca ampliar a competitividade para concorrer com as empresas auto- mobilísticas japonesas, em particular, com a Toyota.

Para muitos estudiosos, a indústria automobilística mudou o mundo (WOMACK; JONES; ROOS, 1992) no século XX, pois foi a partir dessa indústria que as técnicas flexíveis e enxutas disseminaram-se pelo mundo capitalista ocidental. Tal difusão das técnicas e gestão flexíveis não ocorreu sem conflitos e sem adaptações. O movimento sindical se constituiu em uma das primeiras e principais oposições à implementação sistemática das tecnologias e da gestão flexíveis nas fábricas ocidentais (GORENDER, 1997). No entanto, esse processo conso- lida-se nos países desenvolvidos, na década de 1980, enquanto nos países em desenvolvimento ou de capitalismo retardatário, inicia-se na década de 1980 e se consolida na década seguinte. Porém, o fato de se estabelecer não significa dizer que se encerre o processo, mas, sim, que tal reestruturação já envolve uma parte significativa das grandes e médias empresas.

2.2 A reestruturação produtiva