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A regulação jurídico-urbanística da exceção

3. Os direitos de posse e de propriedade da terra e dos imóveis em São

3.6. A regulação jurídico-urbanística da exceção

Descrever a fase de superespeculação na capitalização das rendas urbanas permitiu uma visão sobre os momentos deste ciclo predador não exatamente na realidade do cotidiano da cidade e de seus bairros e favelas, mas sobretudo nas representações, imaginações e expectativas de um futuro capitalizado e capturado por estranhas ficções jurídicas do mercado financeiro. Neste aparente paradoxo entre um período de investimentos no setor imobiliário/habitacional e uma intensificação da insegurança da posse (Rolnik, 2015), não se trata de abordar os incêndios como a ação de uma mão invisível incendiária do mercado imobiliário, senão enquanto um processo de produção do espaço urbano mediado de tal maneira que a presença de determinadas favelas passa a representar uma questão de risco a ser prevenido, gerenciado e, no limite, combatido, ao mesmo tempo em que a ausência dessas mesmas favelas torna-se uma necessidade e uma urgência para os projetos e planos de futuro de uma cidade cujas rendas fundiárias são altamente capitalizadas nos circuitos fictícios da valorização.

Uma primeira constatação de fundo é que a temporalidade deste ciclo econômico predador no nível das relações sociais de produção não é a mesma temporalidade dos “níveis semi-autônomos” (Jameson, 2006) e seus processos e formas políticas, estéticas, culturais, jurídicas, etc. Neste sentido, para os fins propostos a esta pesquisa, tornou-se inevitável considerar o papel específico de mediação exercido pelo Estado (enquanto forma política) e suas manifestações legislativas, judiciais e administrativas (enquanto forma jurídica).

No que diz respeito às formas jurídicas da regulação urbanística do Estado, note-se que o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10257/2001), ao regulamentar os artigos 182

e 183 da Constituição Federal de 1988, foi amplamente divulgado como um marco institucional e legal que criava instrumentos jurídicos e urbanísticos de combate e de limitação da especulação imobiliária. Passados mais de 15 anos, no entanto, a elaboração destes instrumentos por meio dos Planos Diretores Municipais não foi suficiente para impedir que as cidades se tornassem sensivelmente mais caras para se viver. Neste período os centros urbanos experimentaram aumentos abruptos nos aluguéis e nos preços dos imóveis, que se somaram a outros aumentos relacionados ao custo de reprodução da força de trabalho nas cidades brasileiras, como as tarifas de transporte coletivo e de serviços públicos sob a gestão de empresas privadas, públicas ou de economia mista (telecomunicações, transporte, energia, água, etc.), o custo dos alimentos, dos combustíveis, etc.

A seletividade e a desproporção na aplicação destes instrumentos jurídico- urbanísticos é notável. Dos instrumentos que interferem diretamente sobre os valores de troca dos imóveis urbanos, a desapropriação por títulos da dívida pública86 (art. 182, §4°, III, CF 88) jamais foi aplicada em nenhum município brasileiro. Anotado pela bibliografia especializada em Direito Urbanístico (Ver Saule Junior, 2004; Fernandes, 2006) como o principal instrumento jurídico contra a retenção especulativa da propriedade urbana, a aplicação deste instrumento confiscaria para fins de reforma urbana a propriedade imobiliária cujo uso não cumpre a “função social” definida nas leis urbanísticas (planos diretores e leis de uso e ocupação do solo), indenizada por meio de títulos da dívida pública resgatáveis em parcelas anuais. Enquanto isso, instrumentos urbanísticos chamados de “recuperação de mais-valor fundiário” (Jaramillo González, 2009), a exemplo dos estoques de outorga onerosa de potencial construtivo e das Operações Urbanas Consorciadas, multiplicaram-se nos Planos Diretores e leis urbanísticas nas cidades brasileiras desde a criação do Estatuto da Cidade, sem, contudo, virem                                                                                                                

86 A Constituição Federal de 1988 no artigo 182, regulamentada neste ponto pelo Estatuto da Cidade,

previu um procedimento necessariamente sucessivo para estes instrumentos: os proprietários primeiro precisam ser notificados a respeito da obrigatoriedade de dar destinação ao imóvel; com o decurso do prazo, em caso de descumprimento, o imóvel fica sujeito à progressividade no tempo da alíquota de IPTU; após cinco anos de cobranças com alíquotas progressivas (dar o máximo que pode aumentar), o município poderá desapropriar o imóvel mediante emissão de títulos públicos autorizada pelo Senado Federal. O máximo a que se chegou em alguns poucos municípios como Santo André foi notificar proprietários a respeito da incidência de progressividade no tempo para a cobrança de IPTU. Após a aprovação do Plano Diretor em 2014, a Prefeitura do Município de São Paulo iniciou a primeira fase das notificações aos imóveis delimitados com o instrumento da utilização, edificação e parcelamento compulsório.

acompanhados de uma equidade distributiva na socialização do mais-valor recuperado pelas instituições municipais do Estado.

Os instrumentos criados e regulamentados pelo Estatuto da Cidade são, portanto, necessariamente vinculados à legislação municipal de planejamento urbano, que condiciona a sua aplicabilidade à delimitação territorial aprovada em planos diretores municipais e em leis e planos específicos. A temporalidade do processo jurídico e político de aprovação dessas leis e a temporalidade da própria prática do planejamento urbano nas instituições do Estado torna estas delimitações territoriais (zonas, macrozonas, perímetros dos instrumentos, etc.) constatações do passado e ao mesmo tempo postulações sobre o uso e a ocupação futuras desses imóveis na cidade. Esses instrumentos jurídico-urbanísticos criados e regulamentados a partir do Estatuto da Cidade dependem de uma definição da função social (e socioambiental) dos imóveis urbanos. Esta função social se apresenta na forma jurídica de limitações administrativas do direito de construir e aprovar os usos urbanos futuros da propriedade (o seu valor de uso) que não interferem diretamente na liberdade dos termos de troca dos proprietários fundiários no presente (o seu valor de troca). Deste modo, esta regulação, ainda que considerada inovadora nacional e internacionalmente, produziu efeitos (isto é, se tornou “verdadeira na prática”) apenas na limitação dos valores de uso das propriedades urbanas, sem contudo versar ou limitar diretamente os termos e os valores de troca dos imóveis. Nesta perspectiva, pode-se dizer que a especulação imobiliária não é um desvio da cidade capitalista, um fenômeno que ocorre por falta de legislação urbanística adequada, de planejamento urbano ou de investimentos no desenvolvimento urbano, mas a expressão de como o capital, e a terra e os imóveis urbanos tratados como capital (a renda capitalizada da terra revestida da forma jurídica), são especulativos na sua forma e conteúdo.

Com isso pode-se também desmistificar as visões, muito presentes nos movimentos de reforma urbana no Brasil das últimas décadas (sobretudo pós Constituição de 1988), de que se poderia conter ou barrar a especulação imobiliária mediante a regulação do direito de construir por princípios e instrumentos jurídicos e urbanísticos, ora regulando o seu valor de uso, ora interferindo no seu valor de troca, deste modo tornando a cidade mais humana, mais igualitária e menos especulativa. Isto não implica, contudo, desconsiderar ou considerar subsidiariamente as lutas

sociais urbanas e as lutas políticas e institucionais diante das contradições desses processos sociais de produção do espaço como modos de resistência e de apropriação da cidade como um valor de uso para seus moradores e cidadãos, ao contrário: este é justamente o terreno fértil para essas utopias, na medida em que estas definições a respeito da função social e socioambiental nos planos municipais e seus instrumentos são objeto de disputa entre as classes sociais a respeito da definição das formas e conteúdos das rendas fundiárias urbanas, o que pode gerar consequências na repartição do valor.

Observe-se este raciocínio aplicado à regulação urbanística das favelas em São Paulo: embora sejam delimitadas no zoneamento especial do Plano Diretor como ZEIS-1, os termos de troca da área ocupada e das moradias construídas não sofrem qualquer interferência direta por parte desses instrumentos jurídicos de planejamento urbano. Isto não significa que se possa constatar uma diminuição nos preços dos imóveis assim delimitados, considerando que esta forma jurídica pode replicar seus efeitos sobre as expectativas de rendas urbanas futuras dadas as limitações do direito de construir. Ainda assim, trata-se de uma regulação urbanística que impõe limitações administrativas e prescreve possibilidades ao uso futuro da propriedade imobiliária (especificando os usos permitidos pela forma jurídico- urbanística nas aprovações e execuções de projetos imobiliários), sem contudo proteger e garantir a segurança jurídica da posse informalmente exercida no lugar, embora a perspectiva de regularização fundiária futura também possa produzir efeitos qualitativos nas relações de posse e quantitativos nos seus termos de troca. Esta proteção dos direitos de posse pelo Estado depende de estas favelas serem ou não incluídas na agenda de políticas públicas de urbanização e de regularização fundiária de interesse social, cuja consequência seria legitimar a posse existente e reconhecer o direito de propriedade da terra urbana aos ocupantes.

No entanto, as favelas classificadas sob risco de incêndio em São Paulo, aquelas incluídas no Programa Municipal de Prevenção contra Incêndios (PREVIN), embora sejam na sua totalidade delimitadas como ZEIS no Plano Diretor do Município, não estão incluídas em quaisquer políticas e programas de regularização fundiária de interesse social e/ou de urbanização de favelas, pelo contrário. Embora a sua presença no espaço urbano seja reconhecida pela legislação urbanística do Estado como ZEIS-1, mantém-se expostas ao imperativo do valor de troca da propriedade

imobiliária. Com isso, a população que mora nessas favelas permanece exposta a ameaças de remoção e à incerteza sobre a permanência do uso e consolidação da ocupação e de suas construções.

Nestes casos, não se trata de um risco geológico da terra, mas um risco associado às condições urbanísticas, construtivas e ambientais das edificações, que pode se agravar ou se intensificar diante de um contexto de extremos climáticos, como é o caso de períodos de secas, estiagens, poucas chuvas e baixa umidade relativa do ar. Mas assim como nas áreas classificadas e mapeadas como áreas de risco de enchentes, inundações, solapamentos, deslizamentos, etc., o reconhecimento do direito à moradia existe apenas na medida em que este direito possa e deva ser exercido preferencialmente em outro local, que não aquele já ocupado. Embora se trate de riscos distintos, ambos são justificativas que servem a procedimentos políticos e jurídicos de exceção, que impedem ou restringem a efetivação do direito à cidade e do direito à moradia no local ocupado por meio dos instrumentos de regularização fundiária urbana.

A realidade destas imaginações de um futuro que não legitima os direitos da posse no local de moradia (a propriedade informal da casa, sem registro imobiliário) pelos procedimentos institucionais da regularização fundiária e da urbanização de favelas, expõe, mantém expostos ou intensifica a exposição destes lugares e seus moradores a um conflito permanente em torno da apropriação real da terra e das moradias autoconstruídas, re-compradas ou alugadas.

Esta exposição continuada ao risco, antes de ser resolvida por meio de políticas territoriais e habitacionais de consolidação do assentamento como a regularização fundiária e edilícia, a urbanização, o mutirão, a substituição de materiais construtivos – ou mesmo intervenções de segurança contra incêndio como é o caso de obras de compartimentação, de afastamento e de abertura de rotas de fuga – passa a ser abordada e gerenciada por instituições municipais por meio de ações que Foucault chama de “recursos para o bom adestramento”: a “vigilância hierárquica”, a “sanção normalizadora” e o “exame” (Foulcault, 1997: 143). A primeira ação do programa, uma vez elegidos os locais de atuação, é um cadastramento social da população dessas favelas. Deste universo de moradores cadastrados são escolhidos, como em um exame disciplinar, os indivíduos nomeados para compor a Brigada de Incêndio e para exercerem a função remunerada de zeladores comunitários.

O PREVIN reúne um universo de favelas sem projeto e condenadas à remoção, aquelas que estão fora dos projetos, agendas e planos de futuro da cidade, quando não se tornam verdadeiros entraves às forças produtivas do setor imobiliário. Representam, desta maneira, uma exceção à regra geral de legitimar a posse e regularizar a favela no lugar ocupado, conforme previsto na legislação urbanística desde pelo menos a Constituição Federal de 1988.

Estas são as favelas que não cabem nas políticas territoriais e fundiárias, embora seus moradores entrem subsidiariamente nas políticas habitacionais como demanda especial e prioritária para novos projetos imobiliários classificados como de “interesse social”, a serem construídos em outras terras, em outros lugares. O projeto futuro para elas é a remoção. Na melhor das hipóteses, mediante alguma forma negociada de auxílio habitacional do Estado. Na pior das hipóteses, como aponta Mike Davis, por meio da “demolição a quente”, nomenclatura dada aos atos incendiários em favelas de Manila, nas Filipinas:

Erhard Berner acrescenta que o método favorito da chamada ‘demolição a quente’, como dizem os proprietários filipinos, é jogar um ‘gato ou rato vivo encharcado de querosene em chamas – os cachorros morrem muito depressa – num assentamento incômodo [...] um incêndio assim iniciado é difícil de combater, já que o pobre animal pode pôr fogo em muitos barracos antes de morrer. (Davis, 2006: pg. 133)

Desta maneira, o histórico problema habitacional e fundiário que representa a favela é seletivamente abordado pelas instituições do Estado não na perspectiva do direito à moradia e do direito à cidade (ainda que os significados desses direitos estejam igualmente em disputa), mas enquanto uma questão de (in)segurança e (in)sustentabilidade a ser gerenciada e disciplinada mediante práticas institucionais de prevenção e preparação para o risco de incêndio e de projetos e programas habitacionais de reassentamento.

No entanto, os futuros alternativos para essas favelas passam também pela resiliência87 em enfrentar as possíveis consequências desastrosas dos incêndios, marcadamente pela resistência dos moradores desses lugares às pressões e às ameaças contínuas do fogo e da remoção do local de moradia. De acordo com

                                                                                                               

87 A “resiliência urbana” é um dos objetivos da Nova Agenda Urbana da ONU-Habitat, aprovada em

Outubro de 2016, em Quito, na Conferencia das Nações Unidas para a Moradia e o Desenvolvimento Urbano Sustentável (ONU-Habitat, 2016).

dados de Bruno (2012), a maioria das favelas sob risco de incêndio permanece e foram reconstruídas pelos próprios moradores atingidos.

4. O FOGO COMO TECNOLOGIA POLÍTICA: GUERRA,