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O fogo como desastre na favela: doutrina do shock

4. O fogo como tecnologia política: guerra, castigo e recompensa

4.5. O fogo como desastre na favela: doutrina do shock

Naomi Klein chamou de “capitalismo do desastre” os “ataques contra as instituições e bens públicos” que ocorrem “depois de acontecimentos de caráter catastrófico, declarando-os ao mesmo tempo atrativas oportunidades de mercado” (KLEIN, 2007: 26). O auge destes ataques, argumenta Klein, estão baseados em uma “panacéia tática” da ideologia e das formais institucionais do neoliberalismo pelo menos desde a experiência do Chile com Pinochet, que a autora denomina “Doutrina do Shock”:

Assim funciona a doutrina do shock: o desastre original – seja um golpe, ataque terrorista, colapso do mercado, guerra, tsunami ou furação – leva a população de um país a um estado de shock coletivo (Klein, 2007, pg. 41).

Este estado de shock, ao instalar o medo e o terror de uma crise e de um colapso social, econômico ou ambiental, é uma oportunidade para implantar políticas neoliberais e sua correspondente “des-re-regulação” (Aalberts, 2016b) na dimensão jurídica e institucional do Estado, para deste modo “desenvolver alternativas às políticas existentes, para mantê-las vivas e ativas até que o politicamente impossível se torna politicamente inevitável” (KLEIN, 2007: 26).

A chamada “sociologia dos desastres” (Valencio, 2010a), que se debruça sobre o estudo de catástrofes em áreas decretadas sob Estado de Calamidade Pública e Estado de Emergência96 no Brasil (Brasil, 2012), insiste no argumento da “desnaturalização” dos desastres. O fogo enquanto um elemento da natureza, assim

                                                                                                               

95 Sobre a expressão “comunidade”, Gerônimo Leitão (2009: 14), no estudo da favela da Rocinha no

Rio de Janeiro, justifica o seu uso da seguinte maneira: “Reconhecemos que essa palavra expressa uma categoria de complexa definição no campo da sociologia. No entanto, não é neste sentido que a usamos. Quando começamos a desenvolver trabalhos em favelas, no início da década de 80, as lideranças de associações de moradores usavam a palavra ‘comunidade’ em lugar de ‘favela’, que era estigmatizada, e, portanto, evitada, logo, relatos como: ‘A nossa comunidade precisa de obras de esgoto’ ou ‘Este é fulano, da comunidade de Acari’ eram constantes. Nós, técnicos que atuávamos – e atuamos – em favelas, também adotamos a palavra comunidade em nossos contatos com moradores, lideranças e outros profissionais. Era, simultaneamente, uma forma de nos contrapormos à visão estigmatizante da favela, e uma atitude política: pretendíamos, assim, mostrar de que lado estávamos no embate por uma sociedade mais justa.”

96 É o caso, por exemplo, do desastre de Mariana (MG), com o rompimento da barragem de Fundão,

como a água das chuvas e das enchentes, pode facilmente ser naturalizado ou servir para naturalizar relações sociais em determinados contextos e configurações.

Na doutrina internacional de Defesa Civil, que remete aos documentos da Agência de Redução do Risco de Desastres das Nações Unidas (UNISDR/ONU), a descrição e análise de um “desastre” é formulada na linguagem da chamada “sinistrologia”, cuja origem remonta às normas técnicas de segurança contra incêndios estabelecidas pelas instituições financeiras que vendem apólices que securitizam o risco de ocorrência de incêndio. Esta lógica formal dos desastres e suas categorias estão presentes nas formas jurídicas e ideológicas das instituições do Estado responsáveis pela prevenção, proteção, defesa e recuperação desses desastres. Corresponde a uma tipologia fechada e operacionalizada mediante uma racionalidade de causa/efeito/consequência. Nessa Doutrina de Defesa Civil, os desastres são definidos por sua origem como naturais ou tecnológicos. No entanto, autores como Valencio (2010a), apoiada em Perry e Quarantelli (2005), apontam que os desastres apenas são assim definidos quando existe um contexto social e uma realidade sociológica afetada. Os desastres tendem a ser considerados um fenômeno da natureza, como fatalidades ou catástrofes ambientais, desconsiderando deste modo o necessário e incontornável metabolismo entre os seres humanos e a natureza.

Desta maneira, a naturalização dos desastres implica uma naturalização das relações sociais de produção que existem, precedem, informam os indivíduos afetados e as instituições do Estado envolvidas. Elementos da natureza e atributos naturais dos materiais são utilizados como recurso argumentativo para descrever o desastre enquanto fenômeno relacionado a alterações e modificações da natureza em geral e do clima em particular: o fogo do incêndio, as águas das enchentes, chuvas e extravasamentos, a umidade e a falta de umidade do ar, a capacidade de carga elétrica dos materiais condutores, as propriedades combustíveis dos materiais de construção, os aspectos geológicos do solo, etc.

No incêndio narrado como desastre não estão em questão as dimensões punitiva e investigativa do poder de polícia do Estado. Esta narrativa dos desastres está presente nos discursos das instituições de Defesa Civil e não das instituições de persecução penal (Polícias Civil e Militar, Ministério Público, Poder Judiciário e

Sistema Prisional). Contudo, o exercício do poder de polícia não está associado necessariamente à esfera criminal do Direito do Estado. A legislação ambiental e urbanística também representa uma dimensão do poder de polícia na medida em que impõe limitações administrativas aos usos funcionais da propriedade fundiária, isto é, a partir da definição de uma função social (ou socioambiental) estabelecida em lei. Estes limites urbanísticos e ambientais podem legitimar decisões administrativas e judiciais sobre despejo e remoção e a requisição para o seu cumprimento do recurso à violência direta por parte das instituições civis e militares de segurança pública.

Para além da criminalização da própria favela e de seus moradores, e contra um evento cuja conduta causadora é passível de punição pelo Estado, ganha legitimidade a narrativa do evento enquanto uma fatalidade, uma catástrofe, uma temeridade, um episódio de terror. Este discurso das catástrofes e dos desastres, ao substituir os discursos do crime de causar incêndio e da favela enquanto um problema especificamente habitacional e fundiário, ao mesmo tempo joga uma cortina de fumaça sobre qualquer associação entre esses eventos e as transformações urbanas da cidade.

Na lógica dos desastres, a esses possuidores de autoconstruções destruídas, além de agir no sentido de prevenir novos incêndios e reconstruir o que foi destruído, cabe apenas “viver em risco” (Kowarick, 2009a), sujeitos ou a um novo castigo aplicado pelo fogo ou a uma futura remoção. Como na imagem mitológica utilizada por Valencio, resta a eles, se não serem consumidos pelo fogo da casa de Hades97, serem devorados por Cérbero, o monstro de várias cabeças que guarda as “portas do inferno” (Valencio, 2010a).

4.6. DO SUPLÍCIO PELO FOGO À SANÇÃO NORMALIZADORA DAS