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O fogo na favela como crime e como castigo

4. O fogo como tecnologia política: guerra, castigo e recompensa

4.4. O fogo na favela como crime e como castigo

O fogo na favela, quando causado por ato incendiário, é levado a cabo pela ação voluntária de indivíduos e/ou instituições. Este ataque pelo fogo remove a favela silenciosamente, do modo mais dramático e catastrófico, muitas vezes com casos de corpos queimados vivos. Quando utilizado como tática de remoção forçada, embora

aplicada por pessoas e sujeitos desconhecidos, mostra-se intrincada a uma tecnologia de exercício do poder disciplinar (Foucault, 2007) e de normalização dos espaços urbanos militarizados (Graham, 2016).

Os cômodos e barracos das favelas em geral não têm endereço oficial. Em becos e vielas não se entra de automóvel, não existe o leito navegável asfaltado, o tapete

mágico que transforma o automóvel a combustão na principal máquina de guerra

para sitiar a cidade. Viaturas e outros veículos automotores são utilizados não apenas para o transporte e para a aceleração da circulação, mas como recurso panóptico móvel de vigilância, supervisão e controle do espaço. Afinal, a polícia não ronda a pé.

As tecnologias de poder que culminaram com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, por exemplo, tinham o propósito de sitiar militarmente determinados espaços e lugares dentro de um certo perímetro da cidade, necessariamente garantido o acesso para a circulação de veículos automotores, desde as viaturas até os “caveirões”. Com isso, impor uma técnica e uma tecnologia de segurança militarizada, guiada por uma estratégia de destruição e/ou expulsão do “inimigo interno” (Lopes de Souza, 2016).

Retirar a favela pelo fogo torna-se, deste modo, também um modelo de demonstração penal, de criminalizar e castigar as favelas, de mostrar o “verdadeiro” lugar da favela na cidade, e o “verdadeiro” lugar na cidade dos corpos que vivem nas favelas. O fogo neste caso não é diretamente dirigido à súplica dos corpos (embora se conviva com o terror de que corpos sejam queimados vivos muitas vezes), mas é um castigo aplicado mais diretamente às moradias da favela, uma cerimônia punitiva contra o lugar identificado e estigmatizado com os desvios, com o crime e com um universo de outras ilegalidades urbanísticas, construtivas, ambientais, etc. É também um modo de normalizar o espaço urbano e torná-lo apto aos imperativos da capitalização das rendas fundiárias urbanas, que pressupõem o funcionamento de dispositivos de controle e de segurança urbana que garantam o exercício de todos os poderes inerentes à propriedade por parte de seus titulares.

Voluntários ou involuntários, nos incêndios em favelas a atribuição de dolo ou culpa a indivíduos para responsabilizá-los criminalmente é tipificado no caso específico pela conduta de “causar incêndio” prevista no artigo 250 do Código Penal Brasileiro.

Mas o direito penal pressupõe a individualização das penas: as ações individuais devem não apenas se enquadrar na tipologia, nos tipos penais da norma criminal, mas deve haver também um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado previsto pela restrição normativa para que haja um processo penal e aplicação da punição pelo Estado. É preciso, portanto, haver indivíduo “causador”, um autor (autoria), para se processar criminalmente. Os inquéritos abertos para a investigação da autoria desses incêndios, contudo, não concluíram pela apresentação de denúncias na forma do processo penal e tampouco produziram quaisquer resultados divulgados por esses órgãos. Ainda que esses incêndios criminosos sejam condutas tipificadas pelo direito penal, não se sabe ou não se identifica quem age, quem promove, quem coloca o fogo, quem deixa queimar, etc.; são, portanto, crimes na sua maioria sem sujeito aparente, são inquéritos sem suspeitos, sem denúncia, sem processo penal, sem sentença condenatória, sem individualização da pena.

Neste regime de verdade da narrativa policial e judiciária (De Jesus, 2016), crime e castigo se confundem nos incêndios nas favelas: o crime contra a favela passa a ser narrado como um crime na e da favela, como se pode inferir a partir da análise dos boletins de ocorrência, inquéritos policiais e dos laudos periciais encaminhados pelas jurisdições da Polícia Civil em resposta aos requerimentos da CPI dos incêndios na Câmara Municipal de São Paulo.

Esses incêndios em ambientes (auto)construídos nas cidades, assim como as queimadas nos campos e florestas, abrem passagem para novos usos e trabalhos na terra e em seu entorno, uma “destruição criativa” do espaço edificado e modificado pela ação humana. Uma “limpeza” que tem duplo sentido: significa também, no caso das favelas, associar a um espaço residual de variados riscos, identificado sob a conotação distintiva do gueto e de suas características étnicas e raciais (Wacquant, 1996), algo a ser varrido, extirpado, removido, afastado, separado, alienado, segregado.

O fogo passa a servir não apenas como arma de destruição das construções e dos direitos que recaem sobre elas, mas também como elemento mágico e especulativo de legitimação do avanço ou do adensamento das fronteiras do mercado imobiliário, no caso das cidades, ou do agronegócio no campo. Uma magia que se faz sentir nas representações imaginárias dos preços que se pagam pelo direito de

propriedade dos imóveis, um fetiche da mercadoria imóvel fundado na ideia de um espaço com liberdade e segurança para a produção e o consumo de todas as outras mercadorias (materiais e imateriais) em circulação na cidade.

Ao promover a destruição das construções na favela, estes incêndios têm também implicações efetivas diante dos direitos sobre a terra, isto é, da propriedade privada informal dos moradores, considerada mera posse diante dos direitos civis e registrários. O fogo que destrói e desconfigura a concretude desses direitos de posse na favela (que inclui também a locação e a compra e venda da propriedade das construções na terra ocupada) também deslegitima a presença dos moradores que ocupam esta parcela do espaço da cidade. Ainda quando reconhecido o direito à moradia a ser exercido em outro local, a configuração das relações de posse no local ocupado são apagadas, ainda que possam ser convertidas em uma recompensa, uma gratificação aos atingidos mediante o acesso aos programas e projetos públicos voltados a atender demandas habitacionais.

Por um lado, há uma destruição e des-re-configuração dos direitos e das relações efetivas de posse, uma “des-possessão” (Harvey, 2005) que implica a retirada da propriedade pessoal não registrada na forma jurídica do Estado capitalista. Por outro, opera-se uma re-criacao, uma re-afirmação dos direitos e dos poderes que decorrem da propriedade imobiliária capitalista. Estes poderes privilegiam seus titulares, tanto aqueles sobre os quais recaiam direitos legítimos dos possuidores como aqueles proprietários de imóveis do “entorno” e suas rendas fundiárias acrescidas, inclusive a propriedade fiduciária e os estoques de adicionais construtivos derivados desses direitos sobre a terra urbana.

Uma vez que a queima das moradias autoconstruídas tem consequências nos direitos legalmente constituídos a partir da posse no lugar de moradia, o fogo pode se tornar um modo de impedir que estas favelas se consolidem no lugar e que os direitos de posse das construções sejam reconhecidos formalmente como direitos de propriedade privada sobre frações da terra urbana. Uma permanência do suplício pelo fogo, em que se queimam as condições objetivas que configuram e implicam o reconhecimento do direito de propriedade, retirando dos indivíduos que se

identificam parte dessas “comunidades”95 a condição de sujeitos de direitos da propriedade da terra urbana utilizada como moradia.