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O fogo mitológico: o suplício de Prometeu

4. O fogo como tecnologia política: guerra, castigo e recompensa

4.1. O fogo mitológico: o suplício de Prometeu

O fogo é desde muito na história utilizado na preparação de alimentos, na geração de energia, no aquecimento e calefação, etc. Outra utilidade histórica do fogo é servir como arma para a guerra contra o inimigo, o que já se descobriu muito antes das armas de fogo propriamente ditas. Uma arma que devasta, desmata e destrói, sejam corpos, animais, florestas ou construções, o fogo “limpa o terreno” assim como tratores, picaretas, motosserras e operários o fariam, mas de modo mais silencioso, mais rápido, mais anônimo, mais barato e mais violento.

O fogo também foi por muito tempo utilizado nos suplícios, em que se condenava à fogueira corpos a serem queimados vivos, na maior parte das vezes pelos crimes considerados mais graves. Em Vigiar e Punir, ao tratar do nascimento da prisão, Michel Foucault destaca que o suplício pelo fogo tinha ainda o aspecto de “ostentação da pena de morte” (Foucault, 2007), executada em espaço público assim como a forca e a roda. No Brasil, a pena de morte na fogueira era prevista pelas Ordenações do Reino de Portugal e chegou a ser praticada até ser extinta com a instauração do Império. A pena que correspondia à fogueira, no entanto, não correspondia aos interesses imediatos dos senhores proprietários na Colônia, que reivindicavam aos donatários das capitanias um sistema próprio de justiça e de aplicação de punições que não destruísse seu capital investido na compra dos títulos de propriedade dos escravos. Desta maneira passaram a adotar outras técnicas de suplício que não eliminassem a utilidade dos corpos para os trabalhos na produção de valor.

Enquanto um dos elementos fundamentais da física (ar, água, terra e fogo), o fogo ocupa um lugar de destaque na filosofia antiga, dos pré-socráticos a Aristóteles. Em Heráclito, por exemplo, o fogo era a substância de origem, o primeiro elemento na composição da matéria física (physis). Já no século XX, a epistemologia de Gastón Bachelard vai apresentar os complexos subjetivos que moldam a maneira como os indivíduos e agentes sociais observam, interpretam, representam e refletem subjetivamente sobre os elementos da natureza como é o caso do fogo, assim como ocorre com a água, o ar e a terra88.

Um desses complexos subjetivos, no caso do fogo, é descrito por Bachelard (1994) como “complexo de Prometeu”89, em alusão ao personagem da mitologia grega retratado em diferentes obras sobretudo por autores como Hesíodo e Ésquilo, além de outros como Platão, Ovídio, Sapo e Escopo. Nessas variadas versões, Prometeu rouba o fogo dos deuses e entrega aos seres humanos, sendo por este motivo retratado de modo geral como um mito criador da espécie humana. Por este feito o

                                                                                                               

88 Livros de Bachelard sobre o ar (2009), sobre a terra (1991), sobre a água (2009) e sobre o fogo

(1989; 1994).

89 Em “A psicanálise do fogo” de Bachelard (1994), o complexo de Prometeu é descrito como o

Titã é castigado por Zeus, que o mantém acorrentado no alto de uma colina enquanto uma ave de rapina devora seu fígado em constante regeneração. A tragédia conta uma história de punição, que ao depender da versão atribui-se a medida de justiça do castigo ou a Zeus, no caso de Hesíodo, ou a Prometeu, no caso de Ésquilo.

O mito de Prometeu foi retratado pela primeira vez nos poemas de Hesíodo, tanto na

Teogonia como nos Trabalhos e Dias (Sottomayor, 2001). Nestas versões

Prometeu, filho de Oceânide Clímene, é punido por exceder os “limites da justa medida” (Idem), pela sua insolência em ousar se igualar aos poderes divinos, um castigo aplicado por Zeus, identificado com a perfecibilidade e com a Justiça. Na tragédia de Ésquilo, por outro lado, Prometeu é retratado como filho de Témis, filha de Gaia (Terra) e deusa da Justiça, diferente dos poemas de Hesíodo. Um simbolismo que não parece acidental, uma vez que associa o herói mitológico ao lado da Justiça e da Terra e retrata seu castigo como uma severa e desproporcional injustiça dos deuses contra Prometeu e os seres humanos (Sottomayor, 2001). Marx e Engels foram, ao longo das últimas décadas, apontados como pensadores que adotaram o mito do homem prometeico na sua visão da relação dos seres humanos com a natureza. Em alusão sobretudo à passagem do Manifesto Comunista em que os fundadores do socialismo científico fazem referência à “subjugação da natureza” pelas forças produtivas da burguesia no contexto de implantação de relações sociais capitalistas de produção, Marx e Engels foram de modo controverso associados a um certo “prometeísmo mecanicista” (Foster, 2005) que estava em voga no pensamento socialista daquela época.

O mito de Prometeu aparece nas formulações dos socialistas do século XIX a partir dos textos de economia política de Pierre-Joseph Proudhon, destacadamente em “A filosofia da miséria”, de 1846, também conhecido pelo seu subtítulo “Sistema das contradições econômicas”. Segundo Foster, embora o prometeísmo esteja presente em diferentes correntes do pensamento socialista e mesmo do marxismo, na obra marxiana está limitado a um embate específico de Marx com essas ideias econômicas de Proudhon na segunda metade da década de 1840.

Para Proudhon, o personagem mitológico Prometeu simbolizava a atividade humana e a posição dos seres humanos no controle da natureza, uma representação da

Providência, um “Deus e não-Deus, ou seja, humanidade alienada, burguês e proletariado” (Foster, 2005: 183). Prometeu nesse sentido era a personificação humanóide da sociedade, descrito em uma “linguagem bíblica” ao mesmo tempo “mística e alegórica” (Foster, Idem) como um mito de origem da criação humana: no primeiro dia Prometeu emerge da natureza e começa a trabalhar; no segundo, descobre a divisão do trabalho, no terceiro, inventa o maquinário e descobre novos usos e novas forças da natureza (Idem).

A meta da sociedade, entendida nesses termos prometéicos, é criar variedade e valor econômico máximos para a sociedade realizar isto proporcionamente para cada indivíduo segundo a distribuição justa das recompensas econômicas conforme o tempo de trabalho (Foster, 2005: 183).

Este prometeísmo mecanicista de Proudhon apontava para uma “lei da proporção” na socialização que conduziria a uma condição mais harmoniosa na divisão do trabalho. A tendência a uma harmonia na socialização das formas econômicas existentes se explicava pelo progresso no controle das forças da natureza proporcionado pelo maquinário. Em O Capital, ao tratar das fábricas da grande indústria, Marx (2013: 495) vai destacar como a maquinaria moderna, ao contrário do que apregoava Proudhon, esvazia os poderes dos trabalhadores sobre o processo produtivo e fortalece a subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto de propriedade dos capitalistas mediante uma hierarquia militar e uma “disciplina de quartel”.

Esta tendência seria encontrada também na análise de Proudhon a respeito do aluguel, que seria na sua visão um instrumento de justiça distributiva nessa fase do desenvolvimento da sociedade (o socialismo) uma vez que vincularia os seres humanos com a natureza sem a mediação da propriedade privada. Segundo Foster, esta noção estava baseada “numa teoria confusa da teoria do aluguel de Ricardo”, uma vez que, na esteira deste economista político, Proudhon enxergava a justiça social como a distribuição proporcional do tempo de trabalho. Mas ao invés de explicar este princípio de modo científico como o fez Ricardo, recorreu à magia e ao misticismo (na figura mitológica de Prometeu) para explicar as relações de produção e distribuição no capitalismo (Foster, 2005).

Para Marx, a distribuição proporcional do tempo de trabalho não elimina a determinação do valor pelo tempo de trabalho e, portanto, mantém intacta a lei do valor. As relações econômicas da sociedade seguem sob o princípio de “a cada um

segundo o seu trabalho”, enquanto deveriam ser substituídas pelo princípio “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade” (Marx, Crítica do Programa de Gotha, apud Foster 2005: 188). “Daí, o que era necessário era uma ruptura decisiva com a lei do valor do capitalismo, não a sua generalização”, completa Foster (2005: 188).

Embora nos primeiros anos da juventude, ainda em 1842, Marx não tenha poupado elogios à obra mais conhecida de Proudhon, O que é a propriedade?, de 1840, já em 1847 escreve A miséria da filosofia em clara oposição às suas formulações posteriores sobre economia política. Proudhon passaria a “exemplificar o que ele [Marx] e Engels chamariam no Manifesto Comunista de ‘socialismo burguês’, definido por eles como uma tentativa de construir uma sociedade burguesa sem as suas misérias e sem o proletariado” (Foster, 2005: pg. 181). O aluguel, ao invés de vincular de maneira mais íntima o homem à natureza, como queria enxergar Proudhon, nada mais fazia do que vincular a exploração da terra à competição (Foster, 2005: 188) num contexto em que a propriedade privada estaria reconfigurada tão-somente na sua forma jurídica, mas que não deixaria de espelhar a lei do valor presente nas relações econômicas que definem o seu conteúdo. O aluguel para Marx, na esteira de Ricardo, representa o pagamento mensal da renda da terra, enquanto na compra e venda esta renda é paga em uma única parcela como antecipação da renda total de cada imóvel (Dos Santos, 1983).

Para Marx, “o Prometeu que deveria ser admirado era a figura mítica revolucionária do ‘Prometeu acorrentado’, de Ésquilo, que desafiou os deuses do Olimpo e trouxe o fogo (a luz, a iluminação) para os seres humanos” (Foster, 2005: pg. 191). Foster sustenta que Marx associava Prometeu não com o desenvolvimento das forças produtivas da indústria e da maquinaria moderna, mas com o “aparecimento da ciência e do materialismo, e portanto com a figura iluminista da Antiguidade, Epicuro” (pg. 192).

Em um trecho dos Grundrisse, ao tratar da dialética entre trabalho morto e trabalho vivo, Marx vai dizer que “o trabalho é o fogo vivo, conformador; a transitoriedade das coisas, sua temporalidade, como sua conformação pelo tempo vivo”. Esta metáfora de Marx do trabalho enquanto “fogo vivo” pode ser compreendida pela noção de que o trabalho para ele não é meramente o trabalho material conduzido por corpos,

instrumentos e máquinas, mas que o trabalho (seja ele material ou imaterial) é uma operação de abstração, pressupõe não apenas a força humana corporal mas a capacidade humana de abstrair no pensamento a concatenação entre meios e fins numa operação teleológica com o objetivo de realizar o produto deste trabalho. A leitura de Lukács em Para uma ontologia do ser social II vai destacar como esta teleologia marxiana, diferente da providência prometeico-mecanicista de Proudhon, está restrita ao processo de trabalho e não pode ser estendida à teoria da história (Lukács, 2013).