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3. Os direitos de posse e de propriedade da terra e dos imóveis em São

3.3. Legal e ilegal

Os estudos de sociologia jurídica e a teoria marxista sobre o Direito e o Estado insistem há algum tempo em apontar os limites da aplicabilidade e da efetividade das normas jurídicas editadas pelo Estado, seja por forças “externas” do mercado mundial exercidas no sentido de diminuir ou enfraquecer a soberania dos Estados- nação, seja por forças “internas” que se dão no território entre os indivíduos, grupos e classes sociais. Estas forças, cujo ponto de partida não é o próprio Estado, mas que têm no Estado e em suas leis e atos normativos formas de manifestação, exercem um poder de determinação que não pode ser simplesmente deduzido a partir das relações sociais de produção, mas que são refletidos no que é dito e escrito nos marcos legais do direito positivo e nos procedimentos e processos administrativos, registrais, cartorários, jurisdicionais, parlamentares, etc.

Convém aqui explicar o que se entende por “determinação”. Na leitura lukacsiana, remetendo ao conceito na dialética de Hegel e de Marx, a determinação tem o sentido de exercer uma força de tendência ou tendencial. Ao tratar da “mais importante descoberta metodológica de Hegel”, Lukács aponta para o “caráter tendencial” das “determinações da reflexão”, (2012: 245 e 246). Em outras leituras, como é o caso do marxismo analítico (Cohen, 2013), esta determinação remete à relação entre a superestrutura jurídica e a estrutura econômica das relações sociais de produção, em que se coloca a questão controversa da determinação “em última instância” da superestrutura pela infraestrutura, sem contudo partir dos pressupostos da teoria do valor e da sua lógica do real.

De um modo ou de outro, pode-se dizer que é não apenas a afirmação positiva da lei, mas também a sua negação, o seu descumprimento e a sua burla que caracterizam os seus efeitos. Se existe a lei, cumpri-la é uma opção, não cumpri-la também é outra possibilidade. A expressão “acata-se a lei, mas não se cumpre” (Osório, 1996), cunhada para tratar da história de consolidação dos latifúndios nas áreas rurais, aponta para essa ambivalência da história da aplicação e da efetivação da legislação fundiária no Brasil, que repercute e se desdobra ao longo dos séculos XX e XXI com a crescente urbanização das cidades brasileiras.

Estas leis e normas jurídicas emanadas e positivadas pelo poder instituído do Estado, quando elevadas a fonte exclusiva da reflexão sobre os direitos, perdem de vista aspectos muitas vezes determinantes das normas jurídicas que não estão ditos

e redigidos propriamente na sua forma jurídica. A pesquisa sobre o fenômeno jurídico, ao isolar a lei e a norma para estudá-las cientificamente, edifica uma dogmática do legislado e do jurisdicional, desconsiderando desse modo não apenas a particularidade e singularidade dos indivíduos e de suas ações, reduzidas às balizas do critério normativo da lei do Estado (legal e ilegal), mas também – e sobretudo – as determinações mais gerais das formas sociais e jurídicas das relações sociais de produção.

No contexto de acelerada urbanização no século XX, “cidade ilegal” foi uma expressão empregada pela literatura do urbanismo (Rolnik, 2003; Fernandes, 2006) para caracterizar a situação dos aglomerados urbanos informais, como é o caso das favelas, não apenas pela irregularidade jurídica na posse e propriedade da terra urbana e de suas construções, mas também pelos múltiplos sentidos da vulnerabilidade social e da precariedade em relação às condições de moradia, de urbanização e acesso a equipamentos e serviços públicos de uso coletivo. Precariedades e irregularidades não apenas em relação à construção das edificações em terras loteadas e divididas em desacordo com os parâmetros edilícios e urbanísticos previstos em leis e regulamentos do Estado, mas também na implantação de equipamentos de infraestrutura urbana, nas redes de mobilidade e de saneamento e nos demais serviços públicos e privados de saúde, educação, etc. que articulavam esses assentamentos à cidade.

Nesta expressão – cidade ilegal – muitas vezes a irregularidade e a precariedade se confundem, mas a ilegalidade no uso e ocupação do solo não se limita a esses lugares no espaço absoluto da cidade. O pesquisador James Holston, na década de 80, já apontava para o que chamava de “legalização do ilegal” (Holston, 1993) na história de apropriação das terras no Brasil: regularizar a situação irregular do ponto de vista jurídico e dominial tem sido a toada da história de apropriação das terras no Brasil desde os remotos períodos da colonização, do Império e da República.

A caracterização de ilegalidade na ocupação e no uso da terra é definida dessa maneira desde o Código Civil de 1917, que estabelece uma clara distinção entre propriedade e posse ao incorporar os conceitos jurídicos do código civil napoleônico no que se refere à propriedade pessoal e à propriedade real. A propriedade da terra é considerada um direito real, tem sua origem remota na propriedade pública da Coroa, do “rei”, que no caso do Brasil à época da lei de terras tratava-se do

Imperador. Neste sentido, toda propriedade imobiliária em território brasileiro tem na origem da sua cadeia dominial a propriedade das terras do Estado e sua comprovação carece da “fé pública” (fides) do registro dos títulos em cartório de imóveis.

O direito de posse, por sua vez, é um direito pessoal, não é sacralizado e ungido pelo oficial do cartório de registro de imóveis como o é o direito real. Podem ser considerados legítimos e objeto de registro em cartórios de notas e documentos, porém não são regulados da mesma maneira que os direitos de propriedade. Não geram as mesmas consequências objetivas em termos de poder para os sujeitos desses direitos, como é o caso de servir como “garantia real” de dívidas ou mesmo na transferência de patrimônio via direito de herança. Estas “garantias reais” são exclusivas dos bens imóveis e de seus títulos de propriedade ou convertíveis em propriedade (é o caso dos contratos de compromisso de compra e venda registrados nos cartórios de imóveis).

No caso da posse, os títulos não são registrados ou registráveis a não ser enquanto expressão e componente derivado do direito de propriedade ou em casos de concessões específicas reguladas por lei. A efetiva legitimação da posse implica a conversão dos direitos pessoais de posse em direitos reais de propriedade, isto é, mediante a regularização fundiária, uma legalização do uso e ocupação do solo, um reconhecimento pelo Estado da relação dos indivíduos com a terra e suas construções.

Pode-se dizer que a lei de terras devolutas de 1850, neste sentido, é um marco para a privatização e mercadificação da propriedade fundiária (delimitação/demarcação, fracionamento/loteamento/divisão e comercialização/alienação das terras urbanas e rurais), na medida em que inaugura modos de regularizar a situação da posse irregular existente, necessariamente vinculados à necessidade e à capacidade de pagamento desses posseiros pela renda absoluta da terra de domínio do Estado. As ocupações mediante a posse, desde então, passaram a constituir um modo de apropriação do espaço sem o pagamento desta renda que corresponde ao exercício do poder de usar e dispor da terra. Mas reconhecer essas ocupações e titular esses moradores sem a cobrança de uma contrapartida financeira, como passou a ocorrer sobretudo a partir da Constituição de 1988, passaria a ser um modo de reconhecer o

direito desses posseiros em se apropriar desta renda absoluta, redistribuindo desta maneira a apropriação do mais-valor entre as classes sociais.