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O fogo na história das cidades

4. O fogo como tecnologia política: guerra, castigo e recompensa

4.2. O fogo na história das cidades

Na história das cidades, um dos relatos mais antigos de incêndios urbanos remonta à Roma antiga, em especial o incêndio do ano de 64 d.c., no período do imperador Nero. Antes ainda deste grande incêndio, eram recorrentes os incêndios domésticos nas insulae ou insulas, construções verticalizadas destinadas a aluguel, feitas de madeira e sem abastecimento de água. Nas insulas morava em geral a população plebéia, os aquedutos eram somente para os banhos e prédios públicos e para as domus, em geral casarões dos patrícios ou de quem tinha o poder de dominus, que se refere ao poder patriarcal, ao domínio do chefe de família (Benévolo, 2007). A propriedade do solo era “cofre-forte e fonte de todo investimento”; bem mais ampla do que a agricultura, era ao mesmo tempo reservatório de riqueza, fonte de subsistência e de trocas. Por este motivo, os juristas romanos passaram a tratar o direito de propriedade da terra de modo distinto da “simples posse” (Pessoa, 1984: 194). Ainda assim, os direitos dos proprietários eram “menos um direito dos indivíduos do que uma obrigação social”, o que limitava as possibilidades de transmissão da propriedade entre os cidadãos (Idem).

Embora a agricultura empregasse muito trabalho na lavoura, a segunda grande riqueza advinda do solo eram as habitações urbanas destinadas a aluguel (Veyne, 2010). Neste período foi criado pela primeira vez a instituição conhecida hoje como corpo de bombeiros, um destacamento do exército e das instituições militares especializada em salvamento e combate a incêndios.

IMAGEM 10: Roma – extensão do grande incêndio de 64 d.c. Fonte: preteristarchive.com

IMAGEM 11: Roma – Gravura do grande incêndio de 64 d.c. Fonte: pinterest.com

Londres, que durante séculos foi uma importante cidade romana comercial, teve um grande incêndio no ano de 1666, que devastou a maior parte da área interna aos muros da cidade90, um ano após a “grande praga” que assolara a cidade. Os muros foram construídos por volta de 200 d.c. pelos romanos, como defesa contra “invasões bárbaras” ao porto comercial de londinium, e hoje corresponde à área do centro comercial e financeiro da cidade, The City of London.

                                                                                                               

90 “Uma das razões porque o incêndio de Londres causou tanto dano em 1666 foi que ele eclodiu nas

primeiras horas de uma manhã de domingo, quando a maioria dos principais comerciantes estava fora para o fim de semana” (Keith, 1988: 295-296).

IMAGEM 12: Gravura do grande incêndio de Londres (1666) Fonte: pinterest.com

IMAGEM 13: Extensão do grande incêndio de Londres (1666) Fonte: commons.wikimedia.org

Witold Rybczynski (1996: 59) destacou que o projeto urbano de reconstrução “teria transformado Londres numa versão da Roma do século XVI, redesenhada por Sisto V entre 1585 e 1590”. “Quem, como William Penn, construísse uma cidade depois de 1666 – ano do terrível Grande Incêndio de Londres – não poderia ignorar as vantagens de construir prédios bem separados”, prossegue (Idem: 69).

Na Paris de meados do século XIX, o “método Haussmann”, como destacou Engels, que consistia em varrer a cidade com os tratores para não varrê-la com os fuzis (Rodrigues, 2003: 285), foi colocado em operação pela primeira vez no período do Segundo Império. Depois das ofensivas comandadas pelo General Cavaignac, o fim da insurreição e a ascensão ao poder do “pária” bonapartista, a cidade foi entregue ao Barão de Haussmann pelas mãos do novo Imperador. As transformações urbanas conduzidas neste ínterim são vistas por autores como Harvey (2006a: 134) como um novo padrão de:

relações espaciais (tanto internas como externas), que se criaram a partir de uma coalização entre o Estado, o capital financeiro e os interesses dos proprietários de terra, e que cada um deles teve que sofrer um doloroso ajuste.

O Estado não aparece aqui como mera faceta da distribuição, mas em todos os aspectos de sua atuação, como a autoridade regulatória e a legitimidade da violência. Harvey vai notar que as primeiras medidas de Haussmann foram “marginalizar o conselho municipal” e ignorar a “comissão de planejamento” que tanto limitavam a atuação de seu predecessor. O final de seu ciclo, 18 anos depois, desembocou justamente na Comuna de Paris, analisada por Marx (2008) em A guerra civil na França, um elogio à derrota e ao mesmo tempo uma experiência única do que se poderia chamar de “ditadura do proletariado”. A mudança de escala operada a partir de Haussmann amplia-se no século XX, torna-se metropolitana, e daí em diante seus limites e barreiras são novamente ultrapassados até se propagar para uma rede de cidades integradas no mercado mundial.

Na antiga colônia da América do Norte, contudo, ainda ao longo do século XIX diversas cidades passaram por episódios em que o fogo limpou o terreno de áreas urbanas centrais nos EUA, como foi o caso em Nova Orleans (1801), Detroit (1805), Nova York (1835), Pittsburgh (1845), San Francisco (1851), Saint Louis (1851), Washington DC (1851), Portland (1866), Chicago (1871), Boston (1872), Seattle (1889). O incêndio de Chicago, que acontece no mesmo ano da comuna de Paris

(1871), foi o de maior proporção nos EUA ao longo do século XIX. Foram destruídos 8 milhões de metros quadrados, 18 mil prédios e noventa mil desabrigados, quase 1/3 da cidade. Esta área central da cidade era ocupada por muitos prédios e casas em madeira, com fogões a lenha e aquecimento a carvão, sem fornecimento de água e sem medidas de proteção contra incêndios.

Na segunda metade do século XIX Chicago foi a cidade com maior crescimento demográfico dos EUA, período posterior à construção das estradas de ferro e marcado por uma expansão industrial e comercial. É em Chicago, argumenta Rybczynski (1996), que começa o urbanismo e o planejamento urbano nos EUA: a forma arquitetônica definitiva dos arranha-céus, a concretização da ideia de usar o centro para o comércio, o desenho urbano como tema para discussão pública e privada, etc.

IMAGEM 14: Mapa com a extensão do Grande Incêndio de Chicago (1871) Fonte: pinterest.com

IMAGEM 15: Fotografia de Chicago alguns dias após o Grande Incêndio (1871) Fonte: pinterest.com

IMAGEM 16: Cartaz de chamada para reunião no segundo dos três dias (8, 9 e 10 de outubro) do Grande Incêndio (1871)

Fonte: pinterest.com

O desastre foi considerado uma “grande chance” para a construção da “nova Chicago”. Foi uma “carta branca” aos corretores de terras e construtores para empregar novas tecnologias construtivas diante da catástrofe do incêndio, como a generalização dos elevadores e os prédios com estrutura em aço das construções de arranha-céus. A construção em estrutura de aço era mais cara, porém permitia

uma estrutura mais sólida para a verticalização e um maior potencial de elevação dos preços dos imóveis e suas rendas. Também foi proibida a construção em madeira em determinadas zonas da cidade como medida de segurança e prevenção a incêndios. Com isso, além do crescimento vertical na área central, houve igualmente um crescimento horizontal da cidade, impulsionado pelos bondes elétricos que permitiam o deslocamento em um tempo reduzido.

O aumento do preço dos imóveis e dos aluguéis na área reconstruída e seus arredores, a proibição de construção mais barata (em madeira e outros materiais combustíveis), e o surgimento de novas tecnologias de transporte que permitiam reduzir o tempo dos deslocamentos (vertical, no caso do elevador, e horizontal, no caso dos bondes) promoveram uma expansão dos limites do perímetro da área urbana. Novos bairros residenciais eram mais afastados, a terra era mais barata e as regras de construção eram mais flexíveis, o que já seria um prenúncio das comunidades suburbanas que se espalharam pelas cidades no século XX nos EUA. Assim nascia, diz Rybczynski (1996), “a moderna cidade americana”: o “centro era um lugar do comércio, de lojas, de atividades culturais, hotéis, escritórios, mas não era um lugar da moradia”.