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1. Os incêndios em favelas de São Paulo

1.5. Clima e risco de incêndio

Outra questão objeto da pesquisa de Bruno (2012) é a relação entre as condições ambientais do clima e as ocorrências de incêndios em favelas de São Paulo. Deste ponto de vista, esta correlação não apresenta resultado conclusivo. Contudo, observa-se que nos meses mais frios, que também são os meses mais secos do ano, o número de ocorrências de incêndio tende a ser maior (Bruno, 2012: 149), o que pode apontar para uma correlação entre a frequência desses eventos e aspectos climáticos como a variação dos índices pluviométricos e os níveis de umidade relativa do ar. No entanto, para afirmar tal hipótese, seria preciso analisar os dados climáticos no momento exato das ocorrências, uma vez que podem variar sensivelmente ao longo do dia e dos meses observados. Estes dados, contudo, não foram coletados e não estão disponíveis.

GRÁFICO 03: Totais anuais de precipitação (mm) - 2005 A 2015

Ano Precipitação total (mm)

2005 1729.6 2006 2009.3 2007 1623.4 2008 1659.8 2009 2017.3 2010 1885.8 2011 1700.1 2012 1932.7 2013 1391.3 2014 1253.3 2015 1896.8

TABELA 09: Totais anuais de precipitação total (mm). Dados da estação de São Paulo, Mirante de Santana, para série histórica 2005-2015. Fonte: www.inmet.gov.br

A constatação da redução do volume pluviométrico na cidade não explica suficientemente as ocorrências de incêndios, assim como o argumento oposto da ‘valorização imobiliária’ também não as explica. Contudo, tanto estes extremos climáticos quanto as transformações econômicas da cidade podem ter favorecido a recorrência e a eficácia de incêndios em determinadas favelas do Município.

A “hipótese Gaia” (Lovelock & Sidney, 1975), levantada inicialmente pelo britânico James Lovelock na década de 1970, apostava em um tom catastrofista que sedimentou bases para o discurso ambientalista a respeito dos riscos do aquecimento global. A hipótese hegemônica encampada pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC) considerou o aquecimento global uma decorrência direta da emissão de gases do efeito-estufa, em uma relação direta com o crescimento do consumo de combustíveis fósseis, recursos originados do petróleo, do gás e do carvão mineral.

Alguns climatologistas no Brasil passaram a nomear esta hipótese de aquecimento global antropogênico e sua institucionalização no âmbito do IPCC enquanto um discurso identificado como terrorismo climático (Molion, 2006), uma vez que o terror e o medo de catástrofes ambientais globais passavam a funcionar não apenas para criar consciência ambiental, mas sobretudo ideias e consensos políticos internacionais, fundamentados em questões e debates científicos altamente complexos e controversos como é o caso das previsões e projeções climáticas. Por resumir a problemática ambiental a uma questão climática relacionada às emissões de CO2, eleito grande “vilão” do meio ambiente, cumpriria um papel no sentido de capitalizar e securitizar os riscos de escassez do mercado de recursos naturais utilizados como combustíveis fosseis, como petróleo, gás e carvão mineral, objetos privilegiados das disputas globais da guerra ao terror.

O relatório apresentado pelo Brasil na 11a Conferência do Clima em Paris (COP-11), em dezembro de 2015, frisou a importância da utilização de uma matriz energética baseada em hidrelétricas (UHE), uma vez que substituem outras matrizes baseadas na queima de combustíveis fósseis como é o caso das termoelétricas. Contudo, projetos como a usina de Belo Monte, em Altamira (PA), e outros projetos em andamento como no Tapajós e nas pequenas UHE, usinas consideradas de “energia limpa” do ponto de vista estritamente ambiental dos níveis quantitativos de emissão de CO2 na atmosfera mensurados pelo IPCC, representam catástrofes socioambientais de proporções ainda não devidamente mensuradas do ponto de vista qualitativo.

Para estes climatologistas, embora a queima de combustíveis fósseis apresente sérios problemas ambientais de escala local e regional como a poluição do ar e a

intoxicação das populações das grandes cidades, o clima global não seria regulado apenas pelo CO2, mas por uma variedade de fatores físicos e astrofísicos (os movimentos e ciclos do Sol, da Terra, da Lua e de outros astros, a intensidade das manchas solares, as erupções vulcânicas, entre outras) combinados com ciclos de oscilação das temperaturas dos oceanos no resfriamento/aquecimento do globo terrestre. O problema desse ponto de vista é recair em um “negacionismo” ou “ceticismo”, como se costuma dizer nos círculos ambientalistas, quase que desenhando um círculo de giz que torna qualquer questionamento às teses hegemônicas sobre o aquecimento global alguém “do lado de lá”, junto com todo o espectro político que nega a problemática ambiental das mudanças climáticas.

Neste sentido, não se quer aqui negar a existência e a urgência em relação ao problema que representam os efeitos climáticos devastadores da atividade humana no modo de produção capitalista. O que se quer destacar para os fins desta pesquisa é que, mesmo que as escalas de impacto da ação antrópica não necessariamente tenham efeitos globais no clima e nas temperaturas, ainda assim mudanças climáticas globais (antropogênicas ou não) impactam contextos locais ou regionais de vulnerabilidade socioambiental criados pela atividade humana. Os desequilíbrios ecológicos de uma cidade como São Paulo são observáveis em múltiplas escalas e estão relacionados não apenas à poluição do ar, mas ao padrão de uso e ocupação do solo decorrente de uma urbanização capitalista cujo pressuposto fundamental é a propriedade privada da terra, que sistematicamente expõe as populações mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico a riscos de desastres e catástrofes ambientais como as enchentes, os deslizamentos, as inundações, além de incêndios, queimadas, etc. (Valencio, 2010b). As favelas e demais ocupações e assentamentos considerados informais, deste ponto de vista, não são externalidades da propriedade privada, são produtos dela mesma.

Com base nisto, pode-se dizer que os impactos ambientais apresentam-se em múltiplas escalas e são decorrentes de fenômenos como a expansão demográfica, a urbanização, a impermeabilidade do solo, a poluição, o desmatamento, a desertificação provocada por monoculturas agrícolas nocivas como a cana de açúcar e o eucalipto/pinus, a mineração e outros modos de destruição e abalo de ecossistemas por ocasião da ação humana. No caso de São Paulo, uma metrópole que é uma das maiores aglomerações humanas do planeta é um exemplo típico das

“ilhas de calor”, isto é, apresenta um micro-clima aquecido em função de fatores como a concentração populacional, a impermeabilidade do solo, as construções em concreto, ferro, asfalto, etc., que interferem nos volumes e na variabilidade das chuvas.

Dada a complexidade do problema climático e de suas múltiplas escalas, o que se pretende neste tópico é problematizar as práticas e os discursos de defesa civil aplicados às favelas sob risco de incêndio, pré e pós catástrofe. Estas práticas envolvem na dimensão institucional não apenas a atuação de órgãos e agentes da Defesa Civil do Município de São Paulo e das Subprefeituras, mas também do Corpo de Bombeiros da Policia Militar do Estado de São Paulo, além das polícias civil e militar. Embora levantem as questões climáticas e sua relevância para entender a dinâmica do fenômeno, jogam uma cortina de fumaça sobre as violências do cotidiano dos moradores dessas favelas e sobre os conflitos fundiários que caracterizam a história dessas ocupações. Violências não apenas diretas e físicas, mas também simbólicas e sistêmicas (Zizek, 2014), observadas dentro de um contexto de transformações do espaço urbano, em que lugares da cidade classificados e hierarquizados de acordo com o risco à segurança (militar, financeira e ambiental), tornam-se zonas de exceção para o exercício direto da violência e do poder de polícia do Estado contra os indivíduos que vivem nas favelas e seus lugares de moradia.

Por um lado, os lugares a serem removidos, vigiados ou disciplinados no território do Município de São Paulo podem guardar relações peculiares com o preço dos imóveis urbanos e a capitalização das diferentes formas de rendas fundiárias na cidade, lançando novos problemas para os conflitos de terra urbana. Ao mesmo tempo, a explicação baseada nos indicadores climáticos também pode ajudar a entender a recorrência e a intensidade deste fenômeno, embora seja igualmente mistificadora e insuficiente para explicar as múltiplas determinações dos incêndios em favelas de São Paulo.

De fato, os anos de 2011, 2012 e 2014 foram anos que apresentaram períodos de seca, com poucas chuvas, além de picos de manchas solares42 (Molion, 1998),

                                                                                                               

42 “O Sol tem um Ciclo de 11anos em que um certo número de manchas – regiões relativamente mais

frias que se deslocam das regiões extratropicais para o equador na superfície do Sol - surgem e desaparecem. O número máximo de manchas solares não é constante nos ciclos de 11 anos. Ele

variabilidades climáticas que não se limitaram apenas a São Paulo mas que atingiram a ilha de calor da capital paulista e suas áreas de maior densidade demográfica de um modo particular, possivelmente associado a mudanças no clima local e metropolitano decorrente da aceleração da expansão urbana (horizontal e vertical) e suas diversas consequências prejudiciais ao meio ambiente urbano. Ainda assim, estas mudanças no clima não explicam a origem do fogo nas favelas, apenas o seu sucesso em se propagar e destruir.