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O capital a juros e os sistemas nacionais de crédito habitacional e

2. A renda da terra na produção do espaço urbano

2.5. O capital a juros e os sistemas nacionais de crédito habitacional e

A propriedade capitalista da terra e dos imóveis é aquela que cumpre todos os requisitos legais que a revestem da forma jurídica necessária para ser disponibilizada na forma de capital. No caso de propriedade formal, não se pressupõe o uso e a posse pelo titular desse direito, ao contrário: o seu valor de uso

é abstraído em uma forma jurídica específica, o chamado direito real51 de propriedade imobiliária, regulado e assegurado pelo Estado no Brasil, objeto de matrícula registrada nos Cartórios de Registro de Imóveis. O proprietário de uma matrícula registrada nesses termos pode nunca ter sequer caminhado em sua terra urbana ou em seus metros quadrados de área construída e ainda assim ser o titular do direito de receber a renda correspondente aos poderes de sua propriedade. O preço dos imóveis urbanos, por sua vez, é a expressão do valor de troca dessas mercadorias alienáveis. Isto se dá porque a forma-preço é uma representação social do conteúdo de valor dessas mercadorias, abstraída (no sentido de que é separada no pensamento) de seu valor de uso para ser representada por expressões monetárias e direitos abstratos sobre a propriedade no processo de troca. Por um lado, as propriedades físicas e simbólicas dessas mercadorias imobilizadas na terra urbana – da casa, do apartamento, do edifício de escritórios, do terreno vazio ou ocupado, do cômodo ou do barraco vendido ou alugado, etc. – explicam o valor de uso. Mas os valores de troca e as figuras jurídicas deles derivadas e desdobradas somente se explicam com a abstração desses valores de uso. Segundo Marx, “parece claro que a abstração dos seus valores de uso é justamente o que caracteriza a relação de troca das mercadorias” (Marx, 2013: 115). E completa: “como valores de troca, [as mercadorias] podem ser apenas de quantidade diferente, sem conter, portanto, nenhum átomo de valor de uso” (Idem). Os preços, neste sentido, homogeneízam os diferentes imóveis com a referência no equivalente geral das trocas representado pelo dinheiro; isto se dá de modo a indiferenciar os usos e atividades no espaço urbano, as características específicas da localização, as condições construtivas de cada imóvel e mesmo o perfil socioeconômico (raça, gênero, idade, renda, etc.) dos indivíduos que exercem a posse, embora essa expressão monetária do preço seja um modo de representação social desse conjunto de características.

Uma vez que se considera que os preços dos imóveis são uma representação na forma social do dinheiro, uma outra mediação se apresenta: a mediação do sistema financeiro em geral e dos instrumentos específicos do sistema de crédito criados e                                                                                                                

51 No direito civil brasileiro a propriedade jurídica de imóveis urbanos e rurais é considerada um direito

real, no sentido que é oponível a todo e qualquer indivíduo (erga omnes) e não apenas entre as pessoas que se apossam ou que trocam mercadorias e assumem obrigações em contratos bilaterais.

regulados pela legislação do Estado. Estes instrumentos de crédito são formas desdobradas do valor ainda mais abstratas. Com a mediação destes instrumentos financeiros, as mercadorias imobilizadas no espaço urbano não se limitam à forma do capital fixo incorporado na terra e de seus “poderes da natureza”, mas se tornam capital circulante que é transferido e negociado no mercado de títulos mobiliários (ou ‘mercado financeiro’ ou também ‘mercado de capitais’) como instrumentos de dívida em busca de rentabilidade. A crescente circulação do capital a juros pelo mercado de terras (Harvey, 2013) faz com que estas mercadorias sejam cada vez mais equiparadas como “produtos imobiliários” (Royer, 2010), ou ativos financeiros de base imobiliária, indiferenciados na sua forma monetária de representação, isto é, no seu preço.

Esta homogeneização dos diferentes produtos imobiliários pode ser observada na perspectiva dos agentes econômicos do setor, como por exemplo na contabilidade das empresas, construtoras, incorporadoras, securitizadoras, agentes fiduciários, operadores bancários, etc., que calculam seus riscos e prospecções a partir de informações sobre a quantidade dos estoques de ativos – estoque de terras, estoque de unidades, estoque de outorga onerosa, estoque de certificados de recebíveis, de letras imobiliárias, de debêntures de empresas da promoção imobiliária, etc. – a serem colocados em circulação em operações de troca mediante a compra e venda jurídica.

Os estoques de mercadorias são tratados por Marx no livro II de O capital, enquanto custo de “armazenamento”, um dos custos potenciais do processo de circulação do capital na medida em que demanda trabalho vivo no gerenciamento destes estoques até a sua realização. O movimento do estoque pode ser descrito na medida de sua formação e de sua liquidação, que envolvem necessariamente operações de compra e venda no intervalo de tempo entre a produção e o consumo destas mercadorias. A categoria estoque, em Marx, enquanto uma forma social abstrata e potencial, refere- se a:

Toda mercadoria – portanto, todo capital-mercadoria que é apenas mercadoria, porém como forma de existência do valor do capital – , quando não transita imediatamente de sua esfera de produção ao consumo produtivo ou individual, ou seja, quando permanece no mercado durante um intervalo, constitui um elemento do estoque de mercadorias. (Marx, 2014, pg. 223).

O estoque, para Marx, pode ser voluntário ou involuntário do ponto de vista do gestor do capital. Se o estoque voluntário serve ao fluxo de vendas em um dado período, o estoque involuntário deriva de “um estancamento da circulação, que, por sua vez, é independente da consciência do produtor de mercadorias e obstaculiza a sua vontade” (Idem, 226).

Com a concentração do capital na transformação das empresas do ramo imobiliário em sociedades por ações, aumenta-se a escala da produção dessas mercadorias e consequentemente o volume dos estoques correspondentes, escala que não seria alcançada com capitais isolados. Estas transformações podem ser observadas, no caso brasileiro, a partir das fusões e capitalizações das empresas do ramo da construção e da incorporação imobiliária, que concentram e centralizam capital no ramo imobiliário, assim como na aquisição de solo criado por instrumentos jurídicos e urbanísticos como as operações urbanas e as outorgas onerosas do direito de construir. Implicam a “transformação do capitalista realmente ativo em mero dirigente, administrador do capital alheio” (Marx, 1991: 505). Estes agentes fazem o gerenciamento desses ativos financeiros e seus estoques, tratando os produtos imobiliários como capital-mercadoria no processo geral de circulação do capital. Deste modo, os meios de produção desses produtos imobiliários, sob a gestão destes agentes, convertem-se em capital – isto é, “tornam-se estranhos aos produtores reais, e com isso se opõem, como propriedade alheia, a todos os indivíduos efetivamente ocupados na produção, do dirigente até o último dos assalariados”. Aqui se trata da “propriedade não mais como propriedade privada de produtores individuais (landlords) e sim como propriedade dos produtores na qualidade de associados, propriedade diretamente social” (Idem).

Observe-se que, em O capital (Marx, 2013), a alienação (Entausserung52, ou manifestação do trabalho) da atividade humana, ao se desdobrar e se sedimentar em obstáculos ao ser social – isto é, em estranhamento (Entfrendung) – manifesta- se também do ponto de vista da troca: aqui se tem a manifestação jurídica, a alienação ou a compra e venda jurídica (Verausserung). À medida em que se                                                                                                                

52 Ranieiri (2001) aborda os dois sentidos associados ao termo alienação nas traduções da obra

marxiana de 1844 a 1846: alienação (Entausserung) da atividade humana (exteriorização, manifestação) e alienação (Entfrendung) – ou estranhamento – do conjunto destas atividades tornado obstáculo social à realização das potencialidades humanas (nas figuras do dinheiro e da propriedade privada).

complexificam as relações de troca, estes contratos de venda e compra se desdobram para formas ainda mais abstratas e estranhas a seus produtores diretos, voltando-se contra eles.

Um dos principais exemplos utilizados por Marx (2013) para falar da função do dinheiro como “meio de pagamento” na relação de troca de mercadorias é a alienação da casa, no sentido de compra e venda jurídica (Verausserung). A casa é vendida antes que o comprador a tenha pago: para isso, “um possuidor de mercadoria vende mercadorias que já existem, outro compra como mero representante do dinheiro ou como representante de dinheiro futuro” (Marx, 2013: 208). A forma-dinheiro da relação antitética entre credor e devedor, entretanto, “reflete aqui apenas o antagonismo entre condições de existência mais profundas” (Idem: 209). O que existe é uma promessa de pagamento de dinheiro do comprador, que, enquanto devedor, deverá converter mercadoria em dinheiro a fim de pagar a quantia prometida. Este dinheiro funciona apenas como “meio ideal de compra”, pois entra na circulação em outra temporalidade, numa data futura. Está inscrito numa cadeia de pagamentos entre compradores e devedores cujas conexões não são apenas expressas e não estão imediatamente dadas nos contratos de compra e venda a crédito. O movimento do dinheiro como meio de pagamento “exprime uma conexão social que já estava dada antes dele” (Idem: 210), pois é um desdobramento da circulação de outras formas (como o ouro, o papel moeda e o entesouramento) para formas ainda mais abstratas de riqueza. Esta forma-dinheiro é representada no dinheiro creditício (Kreditgeld), que surge “quando certificados de dívida relativos às mercadorias vendidas circulam a fim de transferir estas dívidas para outrem” (Idem: 213). Quanto mais a função de meio de pagamento se desenvolve, maior a necessidade de acumular e entesourar dinheiro na forma de fundos de reserva para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento das letras e demais certificados de crédito.

Note-se que o crédito e o capital a juros53 são abordados diretamente por Marx

apenas no Livro III, ainda assim limitados a alguns pontos necessários para caracterizar a realidade da concorrência entre os capitais individuais no modo de                                                                                                                

53 “No capital portador de juros, a relação capitalista atinge a forma mais reificada, mais fetichista.”

(...) “Consuma-se então a figura de fetiche e a concepção fetichista do capital” (Marx, 1996, pg. 450- 2).

produção capitalista, sendo que no Livro II é pressuposto apenas o entesouramento, num cenário hipotético em que o crédito é ainda presumidamente inexistente na circulação. “A análise pormenorizada do sistema de crédito e dos instrumentos que gera para si mesmo (dinheiro creditício, etc.) está fora de nosso plano”, diz Marx, classificando para fins de simplificação todas as promessas de pagamento na “categoria geral de letras” de crédito (Marx, 1991: 460 e 461).

Na leitura de Harvey (2014), este tipo de exclusão e demarcação da análise de Marx em O Capital (demarcação que também ocorre de maneira similar em relação às formas históricas da propriedade da terra) se explica pela sua atenção persistente nos aspectos da generalidade do modo de produção, e não na particularidade histórica e geográfica que essas formas assumiam no contexto europeu da segunda metade do século XIX. Este traço é notado sobretudo nos livros inacabados (II e III), o que se por um lado denota o caráter “limitado” de sua análise, rigorosamente acometida ao “nível da generalidade” (Harvey, 2014: 40), é motivo pelo qual sua obra segue atual e possível de ser lida e compreendida a partir das singularidades e particulares que se apresentam em outra configuração espaço-temporal.

No caso particular do Brasil, o atual marco institucional e legal da alienação jurídica da casa ainda é o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), criado em 1964 também com o Banco Nacional de Habitação (BNH). Dois anos após a criação do SFH, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) surge, do ponto de vista das finanças, como o principal mecanismo de financiamento (funding) do ainda incipiente Sistema Financeiro da Habitação (SFH)54 (Royer, 2010). Ou, dito em outros termos, somente a partir da criação do FGTS e da acumulação de um volume significativo de dinheiro entesourado neste fundo é que o BNH passou a ter recursos para financiar a compra e venda a crédito da mercadoria habitação.

O FGTS desde então constituiu-se do recolhimento mensal de uma parcela dos salários do mercado de trabalho formal, sob o pretexto de criar um fundo de reserva, uma poupança compulsória do trabalhador capaz de indenizar aqueles cujo vínculo                                                                                                                

54 A outra principal fonte de recursos do SFH é a captação dos depósitos voluntários em cadernetas

de poupança no âmbito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), criado juntamente ao SFH e ao BNH em 1964. Atualmente existem outras fontes de recursos para o SFH, dentre elas o Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR).

foi rompido, aumentando a rotatividade e substituindo a estabilidade no emprego. Esta parcela dos salários, mais-valor descontado na fonte pelo Estado, passa a alimentar o circuito de produção do ambiente construído. Deste modo, a criação do FGTS significou um dos mais relevantes momentos de flexibilização das relações de trabalho no Brasil, na medida em que substituiu direitos e conquistas do trabalho por uma poupança compulsória destinada a financiar o circuito produtivo de habitação e de obras consideradas de desenvolvimento urbano, um mecanismo de “socialização capitalista da exploração da força de trabalho” (Rodrigues, 2013). O FGTS, ao acumular e entesourar compulsoriamente uma quantia em dinheiro que representa a conversão da venda da mercadoria força de trabalho, retém uma parcela (8,5%) do dinheiro utilizado no primeiro ato (D-M) do processo de produção, isto é, na compra e venda da única mercadoria cujo consumo é fonte de mais-valor, a saber: “a capacidade ou a força de trabalho” (Marx, 2013: 242).

Com a legislação sobre o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), em 1997, criam-se novos instrumentos financeiros para a ampliação desta cadeia de trocas e meios de pagamentos ligada às atividades do ramo imobiliário. Como modo de criar um ambiente de segurança jurídica dos contratos de compra e venda a crédito, o SFI institui a forma de propriedade fiduciária para os contratos de alienação jurídica de bens imóveis, (Royer, 2011). Ao longo da implementação deste sistema destacam- se algumas reformas e inovações na legislação (Aragão, 2006), como:

1. a Emenda Constitucional n. 40/2003 (que flexibiliza o sistema financeiro nacional);

2. a criação do regime tributário especial para a incorporação imobiliária, com o “patrimônio de afetação”, a redução da carga tributária e a isenção de imposto de renda sobre os rendimentos dos títulos do SFI, em especial nas alterações na legislação do Sistema Financeiro Imobiliário nos anos de 2004 e 2005; 3. a regulamentação das chamadas “sociedades de propósito específico” (SPEs,

do inglês ‘Special Purpose Company’) na lei das Parcerias Público Privado de 2004.

4. a legislação do Programa Minha Casa Minha Vida (fase 1, fase 2 e fase 3); Nos contratos de alienação fiduciária, o adquirente compromete-se com a dívida mas não se torna proprietário antes de sua quitação, de modo que a titularidade do imóvel permanece separada (alienada) do comprador enquanto durar o contrato de

compra e venda a crédito. No caso de inadimplência, por exemplo, o adquirente está sujeito a despejo extrajudicial por falta de pagamento das prestações.

Desde a estruturação do mercado de capitais no país iniciada em 1964 com a lei da correção monetária e de criação do SFH, do SBPE e do BNH (Lei Federal 4380/64), a compra e venda por fidúcia é regulamentada para a contratação a crédito de direitos de propriedade móvel, como é o caso do financiamento de veículos (alienação fiduciária de automóveis). A fidúcia, assim como o fideicomisso55, são

figuras originadas no Direito Romano, utilizadas para a realização de contratos que envolvem sobretudo transferência futura de dinheiro e direitos de propriedade. A etimologia da palavra nos remete ao prefixo fides, que no latim significa confiança, confiável, fiel, fidedigno.

                                                                                                               

55 O fideicomisso existe no Brasil apenas para regular direitos de sucessão testamentária e não

chegou a ser incorporado à regulação econômica. No entanto, recentemente o fideicomisso tem sido utilizado em países da América do Sul (como Chile, Colômbia, México e Peru) para captar investimentos em PPPs (parcerias público-privada) de obras de infraestrutura, e já existem estudos ligados a entidades financeiras com o objetivo de adotar esta forma jurídica na regulação nacional do mercado de capitais (BNDES, 2007; Banco Mundial, 2011).

IMAGEM 09: Deusa Fides, que na mitologia romana simboliza a confiança, a promessa ou a garantia dada pela palavra.

Na Roma antiga, a fiducia cum creditore era uma modalidade de contrato fiduciário que esteve na origem da hipoteca (imóvel) e do penhor (móvel), coexistindo com estas figuras. Nesta forma contratual, o devedor transfere a propriedade da coisa ao credor com a finalidade de garantir uma dívida, comprometendo-se o credor (fiduciário) a retransmitir ao devedor (fiduciante) a propriedade do bem com a quitação do débito em uma temporalidade futura. A boa-fé objetiva (bona fides) que atualmente vigora no direito das relações contratuais tem sua origem antes mesmo da Lei das XII Tabuas, de 450 a.c. (a tabua III tratava das normas para os inadimplentes e a tabua VI tratava da propriedade e da posse) e é parte de uma tríade fundamental da identidade romana, da cultura e dos costumes tidos por “romanidade” – a tríade do mos maiorum, formada por fides, pietas e virtus (Pita,

2010). O templo de Fides, construído no Capitólio em 254 a.c. ao lado do templo de Júpiter Terminus, representava os costumes e valores de fidelidade, de confiança, de estabilidade, de um “firme compromisso”. O local era utilizado pelo Senado de Roma, onde eram selados pactos, tratados e acordos com países estrangeiros. Assim como a explicação sobre o fetiche em Marx, a representação da “fé” (fides) nas relações e nos contratos remete, inevitavelmente, a uma “analogia” com o “mundo religioso” (Marx, 2013: 148).

De acordo com Pierre Grimal, nos costumes e tradições romanas, a fides:

É o garante da boa-fé e da benevolência mútua em toda a vida social. Usa oficialmente o título de Fides Populi Romani (a Boa-Fé do Povo Romano) e, tal como o deus vizinho, Terminus, garante a conservação das demarcações (fronteiras da cidade, limites dos campos e tudo o que se deve manter para que seja salvaguardada a ordem das coisas), Fides assegura as relações dos seres, tanto nos contratos como nos tratados, e mais profundamente ainda no contrato implícito, definido pelos diferentes costumes, que liga os cidadãos entre si. (GRIMAL, 1988, pg. 71).

A fidúcia ou fiduciário na modernidade é abordada nos cursos de Pierre Bourdieu (2012) em Sobre o Estado, que, comentando a frase de Valery sobre Napoleão, vai dizer:

As instituições, o que são? São o fiduciário organizado, a confiança organizada, a crença organizada, a ficção coletiva reconhecida como real pela crença e, por isso, tornando-se real. Evidentemente, dizer de uma realidade que ela é uma ficção coletiva é uma maneira de dizer que isso existe fantasticamente, mas não como acreditamos que exista. Há profusões de realidades das quais o sociólogo é levado a dizer que elas não existem como se crê que existam, para mostrar que existem mas de maneira totalmente diferente (...). (Bourdieu, 2012: 71).

Assim como é possível ao Estado emitir moeda ou títulos da dívida pública sob o fundamento da “fé pública”, da confiança (trust) no orçamento futuro do ente federado emissor, o regime fiduciário de alienações jurídicas institui a crença em seus papéis emitidos (títulos, certificados, cédulas, letras, etc.), uma “ficção coletiva”, para usar os termos de Bourdieu, dos desdobramentos dos meios de pagamento projetados para o futuro. Estes papéis são reais na medida em que são reconhecidos como reais, sobre eles existe a confiança nas expectativas legítimas quanto ao fluxo de recebimento e na apropriação efetiva dos rendimentos futuros de seus ativos.