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3 ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E REGULAÇÃO

3.3 A REGULAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

3.3.2 A relação entre os modelos e os níveis da Regulação

A partir de estudos realizados nos Estados Unidos, Canadá, diferentes países da Europa, Austrália e, ainda, outros estudos em países periféricos21, Barroso e Viseu (2003) apresenta o efeito contaminação, o efeito hibridismo e o efeito mosaico, como modelos de regulação que encontram convergência nas discussões em âmbito internacional e proximidades com a realidade brasileira.

O termo efeito contaminação é atribuído à tendência de alguns países em adotar, internamente, projetos e programas educacionais desenvolvidos em outras realidades nacionais. Esta tendência, em geral, é justificada pela busca de soluções rápidas via ―experiências exitosas‖ e tem se evidenciado por meio da influência dos organismos internacionais a exemplo do Banco Mundial (BM) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Embora com diferentes graus de intensidade e com variações de natureza distinta, ―[...] a implementação das novas tecnologias de políticas, faz parte, em geral, de um mesmo conjunto flexível de políticas [...]‖. (BALL, 2001, p. 103)

O efeito hibridismo é caracterizado pela ambiguidade decorrente da sobreposição de diferentes lógicas, discursos e ações. Barroso e Viseu (2003) exemplifica-o nas diversas interpretações dadas às recomendações dos organismos internacionais e acordos firmados entre os governos. Este hibridismo manifesta-se ―nas relações entre países‖ e ―na utilização, no mesmo país, de modos de regulação procedentes de modelos distintos‖. (BARROSO; VISEU, 2003, p. 30) Ainda, sobre tal fenômeno, Almerindo Afonso (2001, p. 26) chama a atenção para o fato

[...] de estar em curso a transição de uma forma de regulação burocrática e fortemente centralizada para uma forma de regulação híbrida que conjuga o controlo do Estado com estratégias de autonomia e auto-regulação das instituições educativas.

21Países periféricos são aqueles que apresentam baixos índices sociais e econômicos e sofrem influência dos

países centrais, chamados desenvolvidos. Grandes países periféricos seriam aqueles países não-desenvolvidos, de grande população e de grande território contínuo, não-inóspito, razoavelmente passível de exploração econômica. (GUIMARÃES, 1998)

Popkewitz (2000 apud BARROSO, 2006) utiliza a expressão hybridization para destacar o caráter plural, misto, das reformas educativas, dos seus pressupostos, orientações e procedimentos. Para este autor, a ideia de sobreposição ou hibridismo no modo como são concebidas e vistas as reformas educativas ―obriga a repensar as concepções binárias, emergentes no século XIX de Estado/sociedade (sociedade civil), centralização/descentralização, objectivo/subjectivo e global/local que guiaram a análise dos programas liberais e de esquerda de reforma‖. (POPKEWITZ, 2000, p. 172 apud BARROSO, 2006, p. 53-54)

O terceiro modelo de regulação referido por Barroso e Viseu (2003) é o efeito mosaico que resulta do processo de construção dessas mesmas políticas que raramente atingem a globalidade dos sistemas educacionais e que, na maior parte das vezes, resultam de medidas avulsas de revogação em parte das normas vigentes, visando a situações, públicos ou clientelas específicas. Segundo Reis (2009, p. 150), este modelo, manifesta-se num contexto de ―complexidade, ambiguidade e imprevisibilidade presentes em todos os momentos da ação coletiva‖, resultando, na maioria das vezes, ―[...] num mosaico de medidas e práticas que não se integram de forma sustentada num modo coerente e agregado de regulação dos sistemas educativos‖.

Em obra mais recente, Barroso (2006) discute como os efeitos da contaminação, do hibridismo e do mosaico se manifestam em três níveis de regulação: regulação transnacional, regulação nacional e microrregulação local.

A regulação transnacional se situa na dinâmica de domínio dos países centrais em relação à dependência dos países periféricos ou semiperiféricos e diz respeito ao

Conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos etc.) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consultas internacionais, no domínio da educação, e que são tomados pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais como ―obrigação‖ ou ―legitimação‖ para adoptarem ou proporem decisões ao nível de funcionamento do sistema educativo. (BARROSO, 2006, p. 44)

Este nível de regulação é evidenciado por meio de estruturas supranacionais que controlam, orientam e coordenam a execução das políticas, mesmo não assumindo formalmente o poder de decisão. Consideram-se, ainda neste âmbito, as formas mais sutis e informais de regulação como os programas de cooperação, apoio, investigação e desenvolvimento, fomentados por diferentes organismos internacionais.

Diferentes países recorrem constantemente aos diagnósticos, metodologias, técnicas, soluções e recomendações apresentadas por esses programas para a solução dos problemas pertinentes à sua realidade. Neste processo, o efeito contaminação torna-se evidente através dos conceitos, políticas e medidas aplicados na prática dos diferentes países.

As experiências externas cumprem a função de justificação de valores e ideologias e autolegitimação em relação aos estudos educacionais enquanto campo acadêmico. A importância conferida às políticas educativas externas se explica mais como síntese do que se pretende considerar como mais conveniente do que pelo valor intrínseco das reformas, inovações e estruturas. (SCHRIEWER, 2001 apud BARROSO, 2006)

A abordagem do ciclo de políticas formulada pelo sociólogo inglês Stephen Ball, considerado um referencial bastante útil no contexto brasileiro no campo de pesquisa em políticas educacionais (MAINARDES, 2006), apresenta um conceito bem próximo ao efeito contaminação no nível de regulação transnacional denominado contexto de influência22. É nesse contexto que grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação.

Estão neste rol, as influências internacionais que podem ser entendidas, pelo menos, de duas maneiras, segundo Mainardes (2006, p. 51-52). A primeira e mais direta é o fluxo de ideias por meio de redes políticas e sociais que envolvem: a circulação internacional de ideias, o processo de ―empréstimo de políticas‖ e os grupos e indivíduos que ―vendem‖ suas soluções no mercado político e acadêmico por meio de periódicos, livros, conferências e ―performances‖ de acadêmicos que viajam para vários lugares para expor suas ideias etc. A segunda refere-se ao patrocínio e, em alguns aspectos, à imposição de algumas ―soluções‖ oferecidas e recomendadas por agências multilaterais (World Bank e outras).

A regulação nacional refere-se ao modo como as autoridades (neste caso o Estado e a sua administração) exercem a coordenação, o controle e a influência sobre o sistema educativo, orientando através de normas, injunções e constrangimentos a ação dos diferentes atores sociais e seus resultados (BARROSO, 2006). Neste contexto, manifesta-se o efeito hibridismo a partir da sobreposição de diferentes discursos, lógicas e práticas na definição e ação políticas.

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Para Ball (1994) o ―contexto de influência‖ é aquele onde normalmente as definições políticas são iniciadas e os discursos políticos são construídos; onde acontecem as disputas para influenciar a definição das finalidades sociais da educação. Ainda, existem o contexto de ―produção de texto‖, que mantém uma associação estreita com o primeiro contexto, e formula os textos visando ao direcionamento das ações nas práticas e o ―contexto da prática‖, onde as definições políticas são recriadas e reinterpretadas. Tais recriações e reinterpretações são também incorporadas pelos outros dois contextos, conferindo o caráter circular dos discursos nesse ciclo.

O hibridismo se manifesta em duas dimensões. Na primeira, pela relação entre países, pondo em causa a ideia de que estamos na presença de uma aplicação passiva, pelos países da periferia, dos modelos de regulação concebidos e exportados pelo centro. Nesse sentido, o conceito hibridismo permite considerar a inter-relação entre os processos de globalização e de regionalização como algo fluido, múltiplo e historicamente contingente, e não como o resultado de uma relação linear e hierárquica produzida por forças estruturais. (POPKEWITZ, 2000 apud BARROSO, 2006, p. 54)

A segunda dimensão do hibridismo mostra-se com clareza a partir da utilização, no mesmo país, de modos de regulação procedentes de ―modelos‖ distintos, em particular no que se refere à oposição ―regulação pelo Estado‖ / ―regulação pelo mercado‖. Essa coexistência de modelos ilustra o ―jogo duplo‖ exercido simultaneamente pelas estratégias e prática de controle (―próprias de uma regulação centralizada e burocrática‖), por um lado, e pela promoção da descentralização e da autonomia institucional (próprias do processo de auto- regulação pelo mercado), por outro lado.

Finalmente, a microrregulação local remete para um complexo jogo de estratégias, negociações e ações de vários atores, pelo qual as normas, injunções e os constrangimentos da regulação nacional são (re)ajustados localmente.

Tal nível de regulação pode ser entendido como um processo de coordenação da ação dos atores a partir do resultado do confronto, interação, negociação ou compromisso de diferentes interesses, lógicas, racionalidades e estratégias numa perspectiva entre ―administradores‖ e ―administrados‖ ou entre os diferentes ocupantes de um mesmo espaço de interdependência (intra e inter organizacional) escolas, territórios educativos, municípios.

A influência da microrregulação local parte de polos difusos e diversificados, tendo intervenção direta em âmbito local, situada nos serviços da administração descentralizada, bem como nas organizações educacionais, como grupos de interesse, organizados ou não. Percebe-se, nestes casos, a evidente presença da sociedade civil na organização social. Todavia, a descrição dos processos de microrregulação torna-se difícil dada a complexidade e imprevisibilidade dos mesmos.

A existência de múltiplos espaços de microrregulação produz um efeito mosaico no interior do sistema educacional o qual contribui para acentuar não só a sua diversidade, mas também a sua desigualdade. (BARROSO; VISEU, 2003)

O maior desafio no processo de regulação inerente a esse modo de coordenação não está em eliminar ou restringir esses espaços de regulação autônoma, mas atribuir coerência e

sentido coletivo a decisões locais e diversificadas, tomadas em função de interesses individuais ou de grupo, igualmente legítimos.

Lessard (2006), sob outra perspectiva, visualiza a regulação no campo da educação, sob a ótica: burocrática, da profissão e do quase mercado. Tais dimensões se situam no campo das regras e modos de enquadramento da ação.

A operacionalização da ótica burocrática se dá por meio de indicadores quantitativos e um rigoroso acompanhamento do desempenho dos professores, alunos, escolas e sistemas educacionais. Desta forma, enfatiza a regra hierárquica, a necessidade de controlar os processos, a conformidade com as prescrições do trabalho e a sanção ao desvio.

Através da ótica profissional são evidenciados os valores e normas profissionais interiorizadas, os saberes que fundamentam a competência e a ética pertinente à profissão. Esta ótica propõe a regra da competência – subentendendo-se a formação avançada e contínua do saber explicitado e partilhado entre especialistas - da autonomia e da responsabilidade como base da confiança do público.

A ótica mercantil é caracterizada pela importância da resposta à demanda dos clientes ou consumidores, considerando a flexibilidade, a adaptação às realidades locais, benefícios da iniciativa privada, da concorrência e a eficiência. Levando em consideração a importância de satisfazer os pais e os usuários clientes e o valor da livre escolha, o incentivo da concorrência entre os estabelecimentos de ensino se torna necessário. Percebe-se o esforço empreendido pelos atores escolares para atender às demandas fomentadas pela lógica de mercado, conscientes de que sua permanência e sobrevivência dependem da sanção do mesmo.

Em síntese, Lessard (2006) propõe três formas de regulação em ação: uma regulação burocrática estatal, preocupada com resultados e eficiência; uma regulação profissional, interiorizada pelos atores internos; e uma regulação quase mercantil, que dá mais poder aos pais, ao setor privado e à concorrência entre os estabelecimentos de ensino.

Enfim, todas estas discussões em torno da regulação nos processos de reconfiguração do papel do Estado e na alteração dos seus modos de intervenção, tem se intensificado em âmbito internacional e nacional, tanto em ambientes acadêmicos como em espaços de decisões políticas. Tais postulados têm relações estreitas com as perspectivas da política educacional brasileira nos últimos anos.