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5 PERSPECTIVAS SOBRE O PROJETO PEDAGOGIA CIDADÃ

5.2 A relação entre as professoras/alunas e o projeto Pedagogia Cidadã

A relação entre as professoras/alunas e o projeto Pedagogia Cidadã foi marcada por três momentos: o primeiro momento, caracterizado pelo fetichismo em relação a Unesp, o segundo, no qual predominaram as incertezas quanto às regras do projeto e o terceiro momento, caracterizado pela imposição do regimento interno.

O 1º momento ocorreu no período antecedente ao início das atividades do projeto no município pesquisado. Havia uma atmosfera de supervalorização da Unesp, provocada por 4 fatores distintos. O primeiro deles se refere à dificuldade prática da população do município em freqüentar um curso de Pedagogia em uma universidade pública, gratuita e de qualidade, visto que o mais próximo se localizava em uma cidade distante cerca de 200 km.

A maioria das professoras da educação infantil não tinha condições financeiras de freqüentar um curso superior fora da cidade onde residiam e trabalhavam. Os motivos eram vários: tratavam-se de mulheres casadas, com filhos em idade escolar e uma renda mensal pequena.

Algumas professoras/alunas relataram que chegaram a prestar o vestibular para os cursos da Unesp. No entanto não teriam conseguido passar devido ao fato de terem estudado a vida toda em escolas públicas, nem sempre de qualidade:

Eu já tinha tentado antes e não consegui entrar na Unesp. (...) Já, 3 vezes.(...). Primeiro eu prestei duas vezes para Pedagogia e depois prestei para Ciências Biológicas. (Maria).

Eu tentei, eu tentei... Eu prestei vestibular na Unesp, porque eu queria fazer Pedagogia na Unesp. Eu ouvia muito falar desse curso no Magistério e falavam que a Unesp tinha um curso bom. Eu tentei, mas não consegui passar. (Ana).

O segundo fator importante foi que muitas das professoras que ministravam capacitações às profissionais da educação infantil do município eram da Unesp, o que incentivou um imaginário de qualidade na formação de professoras dessa universidade.

O terceiro fator, que pode ter contribuído para esse fetichismo, foi o interesse dos dirigentes municipais em que a Unesp encampasse dois cursos da faculdade municipal e, com isso, transformasse a cidade em um pólo de desenvolvimento da região. Esse desejo foi bastante divulgado nos jornais locais.

O quarto aspecto importante para a supervalorização do projeto foi a pressão que as professoras da educação infantil estavam sofrendo para que atendessem às exigências de formação em nível superior, como mostramos no tópico anterior. Em decorrência disso, o projeto Pedagogia Cidadã passou a ocupar um lugar imaginário de “salvador da pátria” para elas.

com o medo de não conseguir acompanhar o curso e a expectativa de que ele fosse semelhante à licenciatura plena em Pedagogia da Unesp:

Aí, eu até fiquei: “Ai, faz tantos anos que eu fiz Magistério”. Eu terminei o Magistério em 1990. “Será que eu vou conseguir passar?”. (Sônia).

O Vestibular foi um dia só, mas o nível do Vestibular foi nível Unesp mesmo, bem difícil. (Eduarda).

(Por que Unesp?) Primeiro, porque eu não tinha condição de pagar. Segundo, porque é uma faculdade reconhecida, eu sabia que se entrasse ali eu sairia com uma boa bagagem, que seria refletida no dia-a-dia da sala de aula. (Maria).

Eu imaginava que seria igual na universidade mesmo, eu imaginava que teria troca de professores, que seriam as matérias iguais, mesmo sendo 2 anos e meio de curso. Eu imaginava que ia ser assim: que ia ter troca de professores, que não seria por módulos, que os textos seriam xérox (...) Quando você fala de Unesp, todo mundo fica: “Nossa, Unesp!”, e quando você fala (nome da faculdade particular), todo mundo fala: “Ah... no (nome da faculdade particular)...”. Não tem o reconhecimento. Agora, a Unesp todo mundo fala que tem potencial, mas na escola particular a coisa é meio largada, por isso eu queria fazer a Unesp. (Ana).

Essas expectativas podem ser confirmadas através das falas das coordenadoras pedagógicas da educação infantil do município:

Ah! Elas imaginavam que ia ser aquela faculdade normal de todo mundo, de todo dia ir, igual a uma faculdade normal (...)

e elas apavoradas: “Ai, será que eu vou dar conta?”, “Ai, será que eu vou conseguir?”, “Ai, como é difícil!”, “Ai, eu sou burra!”, “Ai, faz 20 anos que eu não estudo, faz não sei quantos anos”. (Natália).

Ah, eu acho que seria como uma faculdade que a gente faz nas outras cidades porque, pra quem já cursou, elas falavam: “Ai, como é que era?”. Só que a preocupação maior ficava assim: “Ai, mais é da Unesp. Será que a gente consegue? É muito difícil, eu acho que a gente não entra.” (...) (Unesp) significava dificuldade, que seria mais difícil, que elas não conseguiriam, porque quem faz Unesp é porque estudou muito, é mais inteligente, tem mais sabedoria. Então, que seria difícil, que se não tivesse persistência... (Bruna).

O medo a que se referem às professoras/alunas está relacionado com a ansiedade de não conseguir acompanhar o curso, pelo fato de elas estarem longe dos estudos há vários anos. A maioria das professoras havia cursado Magistério e parado de estudar (56% delas haviam concluído o Magistério até 1995).

O que parece ter gerado a expectativa de que o projeto Pedagogia Cidadã seria análogo ao curso de Pedagogia da Unesp foi, além da falta de informação, a pouca divulgação da coordenação do projeto de que se tratava de um Programa Especial de Formação para Professoras em serviço.

Essa valorização do curso da Unesp por parte das prefeituras e das professoras/alunas foi percebida, também, pela coordenação do projeto:

(...) tem algumas cidades por aí, pelo menos uma, o pessoal que assumiu agora acha que não pode dar o diploma de Pedagogia para esse pessoal: “É um absurdo. Ainda mais da Unesp! Nós

não temos o diploma da Unesp!” Aí é outro problema, a maior parte do pessoal que está nos municípios já pode até ter um curso superior, mas não é de uma universidade pública e eles sabem que dá um status diferente. É inveja eu diria, ou qualquer outra coisa. (Prof. Dr. Palma Filho).

Com o início das atividades do projeto Pedagogia Cidadã no município, deu-se o começo do segundo momento da relação entre professoras/alunas e curso. Nesse período, as professoras/alunas puderam confrontar as suas fantasias com o real formato do projeto. No entanto, isso ocorreu de uma forma muito complicada, visto que não tiveram acesso ao regimento interno do projeto e não puderam esclarecer dúvidas quanto à estrutura curricular, às formas de avaliação, quantas horas de estágio teriam que cumprir, entre outras. Eduarda relata como ela vivenciou esse momento de incerteza:

(...) Uma outra questão que eu achei errada foi o curso iniciar e a gente não saber quais eram as regras do curso. Todo mundo ficava em dúvida! A gente escutava uma coisa ou outra e não tinha certeza de nada. A gente foi receber o manual do estudante com as regras estipuladas certinhas, para a gente confiar no que estava lendo, depois de 1 ano mais ou menos de curso. Até então, todo mundo ficava na dúvida como seriam essas regras.

(Eduarda).

A demora na elaboração e divulgação do regimento do curso gerou a crença nas professoras/alunas entrevistadas de que o curso não era sério e que o seu certificado não teria validade alguma. Prova disso foi a publicação de algumas matérias nos jornais locais, que questionavam a validade de um curso de Pedagogia com duração de

dois anos e meio.

Outro aspecto que pode demonstrar esse desejo das alunas e coordenadores do projeto em identificar o Pedagogia Cidadã como um curso equivalente a uma licenciatura tradicional de Pedagogia é a forma híbrida como eram nomeadas as alunas e as professoras do projeto: professoras/alunas e professoras/tutoras. Essas expressões demonstram a tentativa de encontrar um lugar para esse curso de formação entre o novo, ainda desconhecido, e o estabelecido, aceito por todos.

Esse segundo momento, marcado pelas incertezas, diminuiu de intensidade quando as alunas receberam o Manual do Aluno, com o regimento interno do projeto, após 1 ano do início das atividades.

O terceiro momento foi marcado, finalmente, pela insatisfação das professoras/alunas com a formulação das regras do curso (que já estava em andamento), sem que elas fossem consultadas. Eduarda descreveu bem esse momento:

E a gente não participa disso, não tem escolha nenhuma, é obrigado a fazer a prova naquele dia, a terminar o módulo naquele dia. Eles estipulam isso e o que eu questiono bastante é que eles não ouvem a nossa opinião. Já que é um curso especial, eu sei que é faculdade, tudo bem, tem as regras. Mas eu acho que como o Pedagogia Cidadã é um curso especial para nós professoras, eu acho que deveria ouvir um pouco mais a nossa opinião sobre o curso e não eles imporem o que eles acham que está correto e não escutar ninguém (...). Eu acho que eles impuseram tudo e não deram abertura para a gente questionar, reclamar, nada. Talvez eles estejam até certos, que nem: freqüência, estágio, a questão de prova mesmo, impor se era com consulta ou sem consulta. (...) Eu achei uma coisa muito tradicional. Por ser um curso da Unesp e um curso especial eu

achava que teria um outro ritmo. Eu achei que ia ser diferente, que não ia ser tão tradicional como eles estão sendo com a gente. Talvez seja pela cobrança que tem em cima, porque todo mundo fala: “Ah, o Pedagogia Cidadã é um curso vago,”, e eles têm que mostrar que não, que tem qualidade. Mesmo assim, eu acho que eles foram tradicionais demais. (Eduarda).

Na coordenação geral do projeto não havia nenhum representante das professoras/alunas e das prefeituras conveniadas. Não houve, em nenhum momento, um debate com as professoras/alunas sobre o que elas entendiam ser importante para o regimento e para a estrutura curricular do curso. Dessa forma, essas regras foram entendidas como arbitrárias, apenas para mostrar que “o Pedagogia Cidadã não era um curso vago”.

As coordenadoras pedagógicas da educação infantil também perceberam esse afastamento da coordenação do projeto em relação às prefeituras:

Ah, eu acho o seguinte, que logo no início eles já sabiam que teriam os módulos, eles poderiam já estar fazendo um levantamento: “O que esses professores já sabem? O que eles não sabem?”. Eles poderiam fazer algo até a mais, né? Eles já conhecem muita coisa, então poderiam dar coisas além daquilo lá mas, pra isso precisaria ter feito uma avaliação antes, logo no início do curso, pra poder ajudar mais um pouco para realidade do professor (...). (Bruna).

Esse distanciamento das professoras/alunas e dos representantes municipais, segundo Bruna, fez com que o curso não atendesse a necessidade de formação das professoras da educação infantil do município adequadamente.

O relacionamento entre a coordenação do projeto e as prefeituras também foi entendido como problemático pelo Prof. Dr. Palma Filho:

(...) eu acho que tem uma questão muito complicada no relacionamento com as prefeituras. É uma experiência nova para nós e, também, para as prefeituras, porque é aquela história: tem prefeitura que até hoje não cumpriu o convênio (...), tem prefeitura que larga o curso, porque simplesmente fez o convênio e não acompanha nada, é como se não existisse, deixa lá solto.

(Prof. Dr. Palma Filho).

A partir dessa fala, é possível constatar que as discussões com as prefeituras conveniadas promovidas pela coordenação do projeto evoluíram mais no sentido de resolver problemas técnicos (equipamentos para teleconferências, videoconferências, pagamentos...) do que para discutir os conteúdos pedagógicos trabalhados no projeto.

Essa relação construída entre a coordenação do projeto e as professoras/alunas se assemelha à concepção das políticas públicas para a educação infantil dos países em desenvolvimento, como Jonsson apud Rosset-Ferreira (2002) apontou. Segundo essa concepção, o aluno é um recipiente passivo em que as necessidades de formação nem sempre implicam em obrigações. Essas necessidades podem ser atendidas mediante a caridade e sempre dependem da vontade política. Com esse tipo de relação, a formação oferecida às professoras em formação é sempre mais técnica do que crítica.

Arroyo (1999), Campos (1999), Freitas (1999), Kramer (2002) e Oliveira (2003) defendem, por outro lado, que as alunas dos cursos de formação de professoras devem ter uma participação ativa na construção de seus currículos, para que seus conteúdos sejam mais relacionados às experiências da educação infantil, de forma a

estimular a iniciativa e a autonomia intelectual das professoras em formação.