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A certificação das professoras de educação infantil e as políticas neoliberais para a educação

5 PERSPECTIVAS SOBRE O PROJETO PEDAGOGIA CIDADÃ

5.1 A certificação das professoras de educação infantil e as políticas neoliberais para a educação

Depreende-se do até agora analisado que as políticas neoliberais para a educação foram impostas ao nosso país pelo Banco Mundial e os governos federal e do estado de São Paulo cuidaram para que fossem colocadas em prática à risca.

avaliaram que as principais características dessa política para a formação de professoras são: o tecnicismo, o aligeiramento, a validação da prática em detrimento da formação teórica e a redução de gastos.

Um primeiro indício da presença dessas características no projeto Pedagogia Cidadã se refere à preocupação com certificação em massa de professoras. Isto pode ser percebido desde o início do projeto, por meio das justificativas para a sua existência. Ribeiro (2002), pesquisadora defensora do projeto, explicou a necessidade de cursos como o PEC e o Pedagogia Cidadã com a afirmação de que a Unesp levaria 270 anos para formar, em seus cursos tradicionais de Pedagogia, cerca de 40.000 professoras paulistas que não possuem diploma de nível superior. Esse argumento também foi utilizado, mas de maneira diferenciada, pelo Prof. Dr. Palma Filho:

E qual era a finalidade? Primeiro: nós estávamos vivendo, aqui em São Paulo, um processo de municipalização. Na realidade, as escolas estavam sendo transferidas para os municípios e os municípios não tinham experiência na área, os municípios tinham experiência em educação infantil, mas não de 1ª a 4ª. Era preciso formar quadros para os municípios, e o PEC e o Pedagogia Cidadã tinham isso. Um dos objetivos era esse: formar o pessoal para atuar nas redes municipais (...). No fundo, é o seguinte: as inovações da LDB, as universidades públicas ignoraram, as universidades públicas ainda estão presas ao modelo tradicional. E, aliás, foi por isso que houve resistência ao próprio Pedagogia Cidadã internamente, porque fica aquela coisa de ficar preso ao modelo tradicional.(...)

Se a lei diz que também o professor de creche, o profissional de creche, tem que ter licenciatura plena, se eu não deixar ele entrar, ele não vai ter. Como é que ele vai ter

licenciatura plena? Só se ele for fazer em uma particular que não tenha exigência nenhuma (...)

O Prof. Dr. Palma Filho justifica a necessidade do projeto Pedagogia Cidadã pela falta de quadros de professoras para o ensino fundamental dos municípios. No entanto, essa justificativa não se sustenta, pois o projeto também visa formar professoras para a educação infantil. A municipalização da educação infantil aconteceu nas décadas de 1980 e 1990 e, portanto, os quadros de professoras para esse nível da educação básica já deveriam estar completos. Então, o coordenador geral do projeto justifica a necessidade do curso para o cumprimento das determinações da atual LDB para a formação de professoras.

É preciso considerar que a LDB (1996) não instituiu um prazo para a certificação em nível superior das professoras que já atuam na educação infantil e no ensino fundamental. A exigência de certificação se fará apenas para as professoras que forem admitidas após 2007 (artigo 87, LDB, 1996). Essa interpretação equivocada foi induzida pelo MEC, que pretendia cumprir as determinações do Banco Mundial de formar professoras em um curto espaço de tempo e a um baixo custo.

Esse discurso equivocado foi absorvido pelas coordenadoras pedagógicas da educação infantil do município pesquisado da seguinte maneira:

Porque a Pedagogia Cidadã chegou numa época que algumas educadoras já estavam fazendo Pedagogia e outras já tinham terminado. Então chegou num momento que elas já tinham acordado para o valor, da importância da formação, da cobrança também que tinha. Porque tinha aquela história de que 2005, 2007 tinha que ter Pedagogia. E aí começou aquela

exigência e a comentar-se que nos próximos concursos teria que ter Pedagogia. (Natália).

Eu acho que, em primeiro lugar, porque foi estabelecido um tempo, até 2007. Foi quando houve as mudanças, então eu acho que todo mundo se preocupou realmente: “Ah! Tem que fazer, porque senão eu vou ficar pra trás”. Acho que a procura maior foi nesse sentido. (Bruna).

Essa interpretação, então, foi transmitida às professoras/alunas, e pode ser percebida inicialmente no questionário de perfil (Anexo C) respondido por todas as professoras/alunas do projeto que trabalhavam na educação infantil do município pesquisado. A certificação como motivo para a realização do curso apareceu em quase a metade (17 de 34) das respostas obtidas. Apesar de o questionário ter sido aplicado no fim do curso, momento em que elas poderiam ter desenvolvido uma opinião mais crítica a esse respeito, a opinião se manteve. Nas entrevistas das professoras/alunas participantes essa angustia aparece de forma mais clara:

(...) falaram que ia vir um curso de Pedagogia Cidadã e que esse curso ia ser feito em 2 anos e meio, e que era para todas as professoras. Era obrigada a fazer, porque se nós não fizesse esse curso, de 2005, 2007 para frente a gente ia ter que limpar chão, porque o serviço nosso era só servente. Quem não tivesse o curso de Pedagogia não poderia trabalhar com crianças. (Sônia).

O que a gente ouviu? Primeiro, a gente ouviu que não poderia dar aula, aí depois a gente foi conversando melhor, eles foram se informando melhor também. O pessoal do Departamento (Municipal de Educação). Aí se explicou que não

seria bem assim, que a gente não seria dispensada, porque a gente havia feito um concurso, somos efetivas, mas que seríamos prejudicadas no momento de escolher salas, que a gente ficaria para trás. As pessoas que fariam Pedagogia poderiam passar na nossa frente, poderiam ter mais privilégios de escolha de sala. Então a gente se sentiu meio que obrigada a fazer o curso. Num primeiro momento foi assim: “Olha, você não tem escolha.”.

(Eduarda).

Bem, um ano antes de vir o Pedagogia (2001) estava a maior conversa na cidade, no Departamento (de Educação), que eles trariam um curso para nós, educadoras que não tinham formação. Porque, de acordo com a lei (LDB), me parece que quem não tivesse a formação até 2007 não poderia trabalhar na educação. (Maria).

Então, eu conversei com o meu marido e disse: “Eu vou fazer, porque senão eu vou ficar menos que eles, porque todo mundo vai fazer”. Então, eu preenchi a ficha e decidi fazer.

(Ana).

Percebe-se com isso que o projeto Pedagogia Cidadã foi imposto a essas professoras através do discurso globalizante: o mercado de trabalho não irá aceitá-las caso não tenham um diploma de nível superior após 2007.

A preocupação com a certificação de um grande número de professoras pode ser constatada, ainda, por meio da análise da resolução Unesp 21/2003, que estabeleceu a estrutura curricular do projeto Pedagogia Cidadã. O texto dessa resolução afirma, em seu artigo 1º, que o curso oferecido pelo projeto é uma licenciatura em Pedagogia destinada preferencialmente às professoras da rede pública.

Esse artigo apresenta dois problemas em relação à deliberação do CEE 12/2001, que instituiu os Programas Especiais de Formação Pedagógica Superior: 1) o CEE determinou que as concluintes desses cursos especiais deveriam receber certificado equivalente à licenciatura plena, para fins de docência e de continuação dos estudos, e não certificado de licenciatura em Pedagogia como a resolução Unesp 21/2003 estabeleceu e 2) o CEE é bem claro ao afirmar que esses cursos especiais devem ser destinados exclusivamente às professoras efetivas da rede pública e não preferencialmente, como a resolução 21/2003 determina.

Esses dois problemas ficaram ainda mais evidentes com o reconhecimento do curso pelo CEE, cujo parecer 218/05 reconhece o curso de Pedagogia do projeto Pedagogia Cidadã. Porém, no verso dos diplomas expedidos deverá constar que se trata de um Programa Especial de Formação Pedagógica Superior, ministrado para professoras em efetivo exercício nas redes públicas de ensino.

Além da licenciatura plena prevista pelo Conselho Estadual, o projeto Pedagogia Cidadã pode oferecer a certificação para gestão escolar, o que atraiu mais professoras interessadas. O público-alvo do curso também foi ampliado ao se modificar o termo “professoras efetivas” para “professoras em efetivo exercício nas redes públicas”, que autorizou não apenas as professoras concursadas a realizarem o curso, mas, também, professoras com contratos temporários.

O aligeiramento é outra característica que pode comprovar essa aproximação do projeto em relação às políticas neoliberais. Mesmo apresentando uma carga horária de 3582 horas, enquanto a Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (Anfope) estabelece um padrão mínimo de 2 500 horas, o prazo para a

integralização curricular do curso foi muito curto (2 anos e meio). Isso provocou um acúmulo de tarefas, o que prejudicou a qualidade da aprendizagem das professoras/alunas. Veja como isso foi percebido por elas:

(...) eu acho que (o curso foi apressado) por a gente estar fazendo uma Pedagogia muito corrida, com monografia, com trabalhos culturais e outros trabalhos a mais. Porque teve os projetos, os planos de aula da avaliação geral, os estágios. Eu achei que foi muito apurado para nós, que trabalhamos 8 horas. (Sônia).

(...) eu acho que o tempo que eles estipulam para terminar os módulos, eu acho muito corrido. Às vezes tem feriado, que são os cursos que vocês fazem em São Paulo (capacitações das professoras/tutoras), eu acho que isso atrapalha no estudo do módulo. Você é obrigada a terminar em tal dia, só para fazer a prova naquele dia. (Eduarda).

Eu achei que foi muito rigoroso, o tempo foi muito curto, teve muita atividade, muita coisa, foi pouca orientação. Eu não gostei dessa parte, principalmente dos estágios. Porque eu passei minhas férias inteirinhas relatando, e eu não sabia se estava certo ou se estava errado. (Maria).

Porque o módulo tem muito texto para pouco tempo. A gente tem que ler rapidinho. No começo, estava dando tempo de fazer as atividades, então, na hora de fazer as atividades você revia novamente o que tinha lido. Mas chegou numa época que começou a não dar mais tempo para ler e responder o questionário, então, você vinha e tinha que ler rapidinho e fixar aquilo, tinha que entender aquilo com a explicação da monitora (professora/tutora) e tinha que ser dessa forma (...). Eu achei que

os conteúdos foram excelentes, só que eu achei que a gente tinha que ter mais tempo para estar aprendendo. Por exemplo: Ética e Cidadania, lá na faculdade normal tem um tempo para estudar isso, não é em 1 mês, 20 dias que eles vão estar tomando conhecimento de tanta coisa, em pouco tempo. Eu achei que se a gente tivesse mais tempo para ler os textos, fazer as atividades, eu acho que a gente acabaria aprendendo muito mais. (Ana).

Retomando as análises de Kuenzer (1999), a autora discute que esse aligeiramento na formação das professoras tem construído uma identidade de professora “tarefeira”, isto é, uma profissional que não dispõe de tempo para refletir sobre a sua prática, executando apenas as tarefas que lhe são solicitadas, de maneira acrítica. Também Freitas (2003), ao avaliar as políticas de formação das professoras para a educação básica no governo Lula, constatou que esse governo tem dado continuidade às políticas do governo anterior, conduzindo, então, um processo de “desprofissionalização” do magistério através da certificação em massa de professoras em cursos de baixo custo.

A despreocupação com a formação crítica dessas professoras também se evidencia nos relatos sobre as experiências de estágios e trabalhos de conclusão de curso:

A monografia foi um pouco difícil, porque tem que ler bastantes livros, tem que estar fazendo pesquisa, procurando. Eu mesma não tinha tempo, porque eu estava fazendo o meu estágio no horário de almoço (...) Aqui, não tem nem a biblioteca para quem está fazendo o curso de Pedagogia, então fica difícil até para encontrar os livros. A gente tem que ficar pedindo para os outros, procurar na internet, então fica um pouco difícil. (Sônia).

Como o curso é muito rápido, dois anos e meio, essa é uma outra questão que eu acho... Foi muito corrido para a gente. Tem as horas de estágio que são muitas, 600 horas, e tem a monografia, tem os trabalhos de Vivências Culturais, os de Atividades Científico-Culturais. (...). Eu achei que houve falha nessa ajuda para a monografia. Poucas visitas da nossa coordenadora. Eu acho que a gente teve que se virar sozinha, a gente teve que aprender. Por mais que eu já tivesse feito uma, é uma coisa difícil, você muda muita coisa e eu acho que tinha que ter um respaldo maior. Se eu, que fiz um curso universitário antes, já encontrei dificuldade, eu fico pensando nas minhas amigas que não fizeram, devem ter passado por maus momentos.

(Eduarda).

Foi muito difícil (fazer a monografia), por isso que eu falei que eu fui em busca de uma pessoa que já tinha feito, e ela foi me orientando passo a passo. E, também, como ela morava fora, ela me trazia livros e textos que eu lia durante a semana, e no final de semana ela me ajudava a passar no papel (...). Aí acabou o estágio, eu fui avisada que tal dia era para entregar a pasta de estágio pronta. Como pronta, se a gente não recebeu nenhuma orientação como era para ser feito a pasta? Houve muitas dúvidas entre as companheiras de sala. (Maria).

É difícil de escrever, e eu achei que a gente ia ter mais auxílio. Eu tive que procurar uma pessoa por fora para me ajudar a fazer isso. Acho que a maioria da sala fez isso. Eu relatava o que eu queria e a pessoa digitava, porque essa pessoa era mais experiente. Mas ela digitava do meu jeito. Claro que tinha que fazer umas modificações, mas como eu não tinha tempo de ir na cidade onde essa pessoa morava, eu tinha que escrever

bilhete. Então, eu escrevia do meu jeito e a pessoa tentava entender, o que ela não entendia ela mandava bilhete perguntando. (Ana).

Todas as professoras/alunas entrevistadas tiveram dificuldades para a realização dos estágios e trabalhos de conclusão de curso, devido às próprias condições do projeto: falta de livros da área de Educação, pouca orientação das professoras orientadoras e pouco tempo para a realização das atividades. Além disso, a carga de trabalho (40 horas semanais) dessas professoras também era um complicador. Todas essas dificuldades fizeram com que muitas delas transferissem para outras pessoas as atividades do curso, ocasionando, dessa forma, o não-aprendizado dos conteúdos pretendidos pelo projeto.

Constituem-se objetivos do projeto Pedagogia Cidadã a reflexão sobre a prática do trabalho na unidade escolar e a inserção das professoras/alunas em uma perspectiva científica. Entretanto, como as alunas não puderam contar com as condições adequadas para a realização de seus estágios e monografias, podemos constatar que esses objetivos não foram alcançados.

Outro indicativo de que o projeto Pedagogia Cidadã integrou as políticas neoliberais do estado de São Paulo para a educação foi o investimento de aproximadamente R$17 milhões no projeto, que iniciou suas atividades às vésperas das eleições para governador em 2002. Com a pressa em dar início às atividades do projeto, a estrutura curricular ainda não havia sido aprovada. O currículo do curso foi aprovado somente após 6 meses do seu início (resolução Unesp 21/2003).

certificação de um grande número de profissionais prevaleceu sobre o cuidado com a formação crítica dessas professoras. Por essa razão, constatamos que o projeto Pedagogia Cidadã esteve submetido aos interesses do Banco Mundial para a educação no Brasil.