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A religião como técnica – uma proposta demartiniana

Capítulo 2: A análise

2.5 A religião como técnica – uma proposta demartiniana

Para abordar a religião por uma “terceira via”, recorrerei aqui a Ernesto De Martino, que primeiro apresentou esta hipótese, antecipando em algumas décadas a discussão antropológica contemporânea chamada por alguns de pós-moderna. Em um texto da coletânea Furore, Simbolo, Valore, intitulado “Mito, scienze religiose e civiltà moderna", o autor afirma:

"O símbolo mítico-ritual coloca-se como um dispositivo técnico que, em dadas condições culturais, funciona como dispositivo para apontar o risco, para dar um horizonte figurativo às alienações recorrentes e transformar o retorno irrelativo do passado em uma repetição ativa e resolutiva, aberta às regras humanas e aos valores e culturais" (De Martino, 1962:112)

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Segundo De Martino os rituais, sobretudo aquele que envolvem uma alteração da consciência, são técnicas de dehistorificação do devir. O ritual atua como uma paralisação do tempo social para reorganização e concessão de sentido à vida.

“Assim como a posição do historicismo neo-hegeliano levanta uma correspondência entre as épocas do mundo e as estruturas da consciência, De Martino considera a consciência mítico-ritual como uma construção histórica, uma resposta adaptada às condições histórico-culturais e existenciais específicas. Justifica esta posição com base na constatação de que a consciência mítico-ritual é definida menos pelo seu conteúdo que pelo seu modo de funcionamento” (Mancini, 2008:25, grifo meu).

A noção de técnica em De Martino vem de Heidegger, que define a essência da técnica. Para Heidegger, a questão da técnica não é meramente instrumental, mas é “em alto grau ambígua” (Heidegger, 2007:394) no sentido em que a técnica salva o homem a medida em que o expõe ao risco.

Para o filósofo alemão, a técnica não deve ser vista meramente como um meio para fins, ou um fazer do homem. A técnica é dotada de uma determinação instrumental e antropológica por levar o homem a um fim, mas também mudar o próprio neste processo. Por meio da técnica, o homem pode “ocasionar” algo novo que terá impacto no próprio homem após seu surgimento e durante seu processo de feitura. A questão da técnica reside, para Heidegger, em “desabrigar”, trazer à presença, desocultar.

“Em vista disso, o que é produzido manual e artisticamente, por exemplo, a taça de prata, tem a irrupção do produzir não em si mesmo, mas num outro, no artesão e no artista.” (Heidegger, 2007:379)

O fazer técnico tem a capacidade de deslocar o resultado deste processo do desconhecimento à presença, isto é, o produto da técnica passa a existir. Antes da aplicação técnica, por exemplo, uma escultura é apenas um amontoado de argila ou uma maciça pedra de mármore, o trabalho técnico do escultor faz a escultura emergir à realidade, à presença. A escultura torna-se presença, ela está no mundo a partir de então. Antes oculta em meio à argila, ou presa à pedra, a escultura é descoberta.

O filósofo argumenta que “o produzir leva do ocultamento ao descobrimento” (Heidegger, 2007:389). O fazer técnico é a aplicação da capacidade humana em prol da prática instrumental que revela ao homem e o homem. O próprio homem, com o uso da

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técnica, se descobre, se emerge à presença. A técnica é, para Heidegger, “um modo de desabrigar”.

“O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar? Resposta: tudo. Pois no desabrigar se fundamenta todo o produzir. Este, porém, reúne em si os quatro modos de ocasionar – a causalidade – e os perpassa dominando. A seu âmbito pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este vale como traço fundamental da técnica. Questionemos passo a passo o que a técnica representada como meio é em sua autenticidade e então chegaremos ao desabrigar. Nele repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo.” (Heidegger, 2007: 380)

Desabrigar é o modus operandi da técnica. Uma técnica artística tira a obra do abrigo nebuloso das ideias do artista e a torna presença, a torna realidade. Seja a dança executada pelo dançarino, seja a tela do pintor, ambas retiram a obra do mundo nebuloso das ideias e as colocam expostas ao mundo, desabrigadas para serem então presença.

A essência da técnica reside ainda em outro termo, “armação”. Ao desabrigar, a presença no mundo pode ser disforme e sem sentido. A técnica instrumental trata pois de lapida-la, dando ordem e sentido a esta presença.

“Armação significa a reunião daquele por que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não é propriamente nada técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o que conhecemos como sendo estruturas, camadas e suportes, e que são peças do que se domina como sendo uma montagem.” (Heidegger, 2007: 285)

Para compreender de modo mais eficaz a conjugação dos termos “desabrigar” e “armação” em um contexto preciso, sugiro pensar no exemplo de uma orquestra. No palco, os músicos, cada um com seu instrumento, usam de suas qualidades técnicas para tocar os instrumentos de modo a desabrigar as notas musicais, ocultas até o momento em que começam a tocar, embora as notas sejam apenas ruídos afinados que sem uma combinação lógica podem ser interpretadas apenas como barulho, sons soltos. A mera revelação das notas, no entanto, não é suficiente para que haja música. A presença desorganizada das notas requer outro procedimento técnico: a armação, ou seja,

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estruturação e ordenamento dessas notas musicais para que a melodia seja plenamente revelada e se torne presença.

A música torna-se presente a partir do momento em que os músicos tocam seus instrumentos de maneira ordenada. A técnica é, portanto, um meio e um fim em si própria. O tocar dos instrumentos é o desocultamento da música e também a própria música. Ao termino da aplicação técnica, ou seja, no fim do concerto quando os músicos pararem de vibrar seus instrumentos (meio), a música (fim), também acaba. Grosso modo, a técnica garante a presença: o desabrigar da presença, conceito também elaborado a partir de Heidegger. O esserci nel mondo demartiniano (traduzido por Pompa com: “estar-aí”) vem da ideia do Dasein, Heideggeriano, ou seja, uma presença atuante na história, não imanente. A presença só pode ser histórica, como propõe De Martino, a partir de Heidegger.

De Martino define a cultura como o exorcismo solene do risco de “não ser no mundo” .Para ele, em muitas sociedades o “ser no mundo”, ou seja, a própria ideia da presença do homem no mundo das coisas físicas não é um dado. A presença depende da participação dos homens da história.

“Naquilo que ele chama “o mundo mágico” [De Martino, 1948], isto é, as sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo não pertence à ordem do dado, mas é uma realidade condenda (do latim condere = fundar), uma realidade a construir. A simbologia mítico-ritual constitui uma série de mecanismos, de técnicas protetoras contra a ameaça suprema de “não ser mais no mundo” e, ao mesmo tempo, fundam a presença do homem no mundo, sua realidade”. (POMPA, 1998)

De Martino chama de “mundo mágico” as sociedades que realizam de forma organizada e periódica os rituais de possessão, por exemplo. Para o autor, performatizar a crise da presença, ou seja, perder o mundo simbolicamente de forma controlada ajuda a garantir seu resgate.

“A presença tende a ficar polarizada em um determinado conteúdo, não se arrisca a ir além disso, e, portanto, desaparece e abdica como presença. Se derruba a distinção entre presença e mundo que se faz presente: o sujeito, ao invés de ouvir ou ver o sussurro folhas, se torna árvore cujas folhas agitam pelo

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vento, em vez de ouvir as palavras, se torna a palavra que ouve , etc.”. (De Martino, 2004:137)

De Martino desenvolve aqui o cerne de sua teoria que interpreta os rituais mágicos, sobretudo os que envolvem a “perda temporária da consciência ou dos controles” como uma forma simbólica de compartilhar o temor da perda, a perda propriamente dita e o resgate da presença. Ao compartilhar um horizonte meta-histórico comum, o grupo enxerga um sentido e uma resolução para sua crise. Nesse sentido, ao criar uma narrativa para seus anseios compartilhados, o grupo encontra sentido e ordem no mundo.

“Nas civilizações primitivas ou no mundo antigo, uma parte considerável da coerência técnica do homem não é utilizada no domínio técnico da natureza (onde ela encontra aplicações ainda limitadas), mas na criação de formas institucionais aptas a proteger a presença do risco de não ser no mundo. Ora, a exigência desta proteção técnica constitui a origem da vida religiosa como ordem mítico-ritual” (De Martino, 2004:137)

O autor defende que a aquilo que podemos chamar de performatização de um exemplum mítico durante o ritual abrem para o homem a possibilidade de agir na história sem estar na história. De Martino chama o momento ritual em que a crise é performatizada de de-historificação, ou seja, a garantia da presença no mundo é que no tempo mítico a crise já foi resolvida. A repetição e atualização do mito confere ao homem a segurança de recuperar seu tempo e dar sentido a uma história que não é um dado, mas uma construção.

A história como devir torna-se um fim e um meio em si mesma, assim como Heidegger tratou da questão técnica. Se perfomatizar a história mítica, como diz De Martino, coloca o sujeito na história corrente, o simbolismo mítico ritual, ou seja, o que é geralmente definido religião, pode ser lido como técnica. Uma técnica que protege o homem do risco do devir ao desabriga-lo do mundo nebuloso do risco e armar sua presença no mundo histórico.

A mais, a apropriação de regimes psíquicos alterados de forma controlada e institucionalizada é também um uso técnico desse regimes psíquicos de forma a “arma-los”, usando o termo heideggeriano. Mancini observa este aspecto:

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“Apoiando-me em uma tese proposta na década de 40 pelo historiador italiano das religiões Ernesto De Martino, gostaria, antes de salientar o seguinte. Considerado do ponto de vista do seu modo de funcionamento e da eficácia, o dispositivo mítico-ritual - enquanto instituição cultural - paira precisamente sobre uma busca pela contribuição dos estados psíquicos dissociados, que esse dispositivo submete a uma economia específica. Se percebermos esta hipótese, então, na vida mágica religiosa, estaríamos enfrentando o que poderia ser qualificado como o uso "estratégico" dos diferentes regimes psíquicos que não é improvisado ou deixado ao acaso: ele é feito de acordo com protocolos sociais rigorosamente estruturados, e está enquadrado por uma tradição coletiva e requer procedimentos técnicos precisos" (MANCINI, 2008:23)

O que De Martino chama de “estar aí como se não estivesse” é um recurso técnico para atuar na história sem estar na história. Para o autor este recurso é fundamental para o resgate da presença em crise. O risco de perder a presença no mundo é salvo pelo ato de perder-se simbolicamente.

“No mito, é atribuída a entidades não-humanas e meta-históricas a responsabilidade de toda a criação humana; no rito, são os seres humanos que atuam. No entanto, agem como "se não "agissem" porque para que esse ato seja eficaz é necessário tirar do alcance todas as implicações históricas. Mas, paradoxalmente, é precisamente por conta dessa recusa institucional da atividade histórica que acabam por não só dar sentido à sua vida, mas também para lidar pragmaticamente as contingências críticas. E é por isso que eles estão equipados com uma capacidade amplia de ação e instalados, graças a esse rodeio estratégico, em um regime de existência protegido. Nesse reside o caráter efetivo do dispositivo mítico-ritual, eficácia muito real, ainda que bastante particular na verdade, que não responde aos critérios usuais da eficácia” (MANCINI, 2008:27)

O autor, por outro lado, reconhece na ampla variedade de estados psíquicos uma força da cultura em resolver as crises pelo estímulo para que esses momentos de descontrole aconteçam em um regime protegido. Quando o sujeito está em crise, o grupo encontra no ritual, uma maneira de “evocação, configuração, liberação e resolução dos conflitos psíquicos (De Matino, 2000: 64). A religião como técnica pode ser compreendida como

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um método gradual de resolução de crises psíquicas individuais e coletivas que buscam reintegrar o indivíduo em grupo e a ordem do mundo.

“Podemos afirmar que o tarantismo como rito está representado pela resolução gradual coreico-musical de um estado de crise dominada pela queda da presença individual, de modo que, se o discurso musical é interrompido ou não se observa rigorosamente sua coerência melódica, o processo de resolução passa por uma detenção automática e crise se reprouz. Tudo acontece como se certa ordem rítmica de sons desbloqueasse ese elementaríssimo da vida que é o movimiento, ao mesmo tempo, a disciplina do ritmo impedisse que o movimiento se liquide em uma mera descarga desarticulada: a ordem coreico-musical se configura assim como um amplíssimo horizonte simbólico de recuperação, o mais amplo do que aquele que o tarantismo dispõe, quase como uma ponte entre Escila e Caridbis, ou seja, entre a suspensão angustiante de esturpor inerte e a explosão frenética de uma vitalidade delusória direcionada sem destino humano para consumo rápido e aniquilamento total” (De Martino, 2000:139)

A sofisticação do candomblé está no fato de que ao realizar uma manutenção do conflito e da diferença, replasma a presença do risco como ferramenta e não mais como ameaça. O risco de não ser no mundo torna-se a força propulsora para ser. A possibilidade de ser animal, ser cachoeira, fogo ou terra é garantidora da possibilidade de estar no mundo com autonomia.

Os filhos de cada orixá são essencialmente diferentes uns dos outros, embora absolutamente complementares. O candomblé estimula seus adeptos a observar que está na diferença a força complementar de cada um. As filhas de Oxum e Iansã terão episódios de conflitos e desentendimentos, mas dividem o amor de Xangô e precisam da força vital uma da outra para sobreviver. O homem integrado à natureza, como a concebemos em nossa cultura ocidental, é o ser da presença garantida, embora constantemente sob ameaça.

No tarantismo, como no candomblé, o problema, a desordem, ou a doença, não está no fato de animalizar-se, mas sim na incapacidade de transitar entre humano e não-humano. A possessão por entidades não-humanas de toda sorte é uma capacidade a ser exercitada, não evitada. O contexto em que essas manifestações acontecem é que

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determina se o fenômeno será considerado doença ou ritual. Uma possessão que acontece em um supermercado é uma doença, mas uma festa de candomblé em que não há possessão, em que o orixá não vem toma o corpo de seus filhos para saudar a comunidade é um infortúnio.

A presença, no entanto, é algo que se fortalece com o tempo. Quanto mais tempo de santo, menos frequentes são as manifestações dos orixás e menos lambuzadas são as obrigações. Na medida em que a pessoa gradua-se no candomblé, sua presença é fortalecida e menos ela a perde. Os filhos de santo mais velhos chegam a passar um ano sem a manifestação de seu orixá pessoal (Barbara, 2002).

O candomblé exercita a aproximação e desligamento contínuo com o mundo exterior, tratado aí por natureza, de modo a incorporar os riscos à vida cotidiana. Na narrativa da guerra, de que a vida é uma batalha, os adeptos encontram uma prática ritual que confirma tal discurso promovendo uma harmoniosa relação com os conflitos diários e com o risco perene de perder e perder-se. Ao tratar o conflito como agente de mudanças e a mudança ela mesma como como geradora de vida, os adeptos do candomblé dão sentido às “lutas diárias” como sendo parte de uma grande guerra que devem combater.

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Conclusão: Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente

O romancista baiano, Jorge Amado, relatou em “Capitães da Areia”, de 1937, a vida de um bando de moleques pobres que vivem em um trapiche abandonado de Salvador. Os meninos são corajosos e temidos pela sociedade soteropolitana de classe média por tirarem seu sustento das atividades ilegais como roubo e pequenas trapaças. À margem da sociedade, os capitães da areia têm alguns amigos, como um padre e uma mãe de santo que a certa altura pede ao líder dos meninos, Pedro Bala, que a ajude a recupera a imagem de Ogum de um terreiro amigo que havia sido levada pela polícia e causado a irritação do orixá. Todos os terreiros da cidade tocavam incessantemente para acalmar o santo enquanto Mãe Aninha foi pedir ajuda ao bando. Caia uma tempestade. Xangô trovejava em solidariedade a Ogum e Omulu podia estar em algum dos terreiros já anunciando a vingança dos pobres. Pedro Bala, que não é adepto do candomblé, mas é um amigo da ialorixá, compromete-se em recuperar a imagem de Ogum. No caminho de volta para casa, a mãe de santo diz aos meninos com uma voz amarga, conforme escreve Amado.

“Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus. – Sua voz era amarga, uma voz que não parecia de mãe de santo Don’Aninha. – Não se contentam de matar os pobres à fome. Agora tiram o santo dos pobres... – e alçava os punhos” (Amado, 1973:107)

Amado escreve que Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si e sabia que, como dizia o padre, os pobres iriam para o céu, mas sentia que a justiça na terra sempre pesava contra os menos abastados. Pedro Bala avisou aos outros que iria encarar a missão mais complexa que já enfrentara e poderia ir parar no reformatório. Amado escreve que:

“Mas Don’Aninha bem que merecia que se corresse esse risco por ela. Quando tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas, tratava dele, muitas vezes o curava. E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava como a um ogã, dava-lhe do melhor para comer, do melhor para beber” (Amado, 1973:113)

Ele foi então até a delegacia e depois de uma noite e uma longa história inventada, o garoto recuperou a imagem do santo.

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A passagem do romance de Jorge Amado ajuda a ilustrar como o candomblé se relacionada historicamente na sociedade brasileira. Elaborado entre os negros, a história do candomblé é uma história de perseguições e resistência. O candomblé sempre foi a casa dos excluídos. Aqueles que não eram mais aceitos em qualquer outra esfera social encontravam nos terreiros acolhimento e proteção.

Se o candomblé foi o refúgio dos negros e pobres no passado, ainda hoje é a casa daqueles que se sentem à parte em outras esferas da vida social. A narrativa da guerra não é apenas um recurso linguístico, mas histórias reais de pessoas que buscam estar inseridas em um sistema que pouca ou nada as acolhe. Aquelas pessoas que foram diagnosticadas como loucas, ou, ainda pior, não tiveram seus males identificados, os gays, os negros, aqueles que se sentem perdidos e toda sorte de excluídos compõem as rodas de santo a cantar para os orixás. O candomblé reconstrói o mundo daqueles que não se sentem parte dele.

Ao defender a prática ritual como uma técnica para o resgate da presença no mundo, De Martino nos fornece a chave para entender o sofisticado mecanismo do candomblé de manutenção da presença e da dignidade de seus adeptos. Ao promover práticas que integram seus membros ao mundo, no sentido mais literal, ao mergulha-los em um rio, derramarem porções de comida em suas cabeças e faze-los dançar rastejando como cobra ou voando como borboleta, os pais e mães de santo ajustam a presença de seus filhos, e as suas próprias, demonstrando como podem fluir entre o estado mais desconectado e o mais coeso daquilo que chamamos civilização.

Ingold nos mostra como, ao procurarmos nos diferenciar dos animais, ao mesmo tempo em que reconhecemos no fato de sermos animais, temos uma compreensão melhor de nós mesmos. Ser animal, ser pedra, ser vento ou ser cachoeira é uma condição dialógica. Quando descrevo que Iansã dança como uma borboleta, não afirmo apenas que a pessoa animaliza-se, mas o animal humaniza-se. Na prática ritual, a borboleta toma emprestado os movimentos das articulações dos braços para alçar seu voo bípede. O relacionamento da pessoa com o mundo no candomblé é uma via de mão dupla, um diálogo no qual ambos têm voz e as mesmas condições de expressão.

De Martino, quando fala das tarântulas, observa que a elas são atribuídas caraterísticas humanas e personalidade. Cada tarântula tem sua música e sua dança de acordo com

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seus gostos e temperamento. O autor não se aproxima de minha afirmação sobre os animais que se humanizam, mas dá pistas para que eu tenha chegado a esta ideia.

“Tem (a tarântula) tonalidade afetiva especial, que se reflete em quem foi