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Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente: A "crise da presença" no candomblé de São Paulo

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Academic year: 2021

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Universidade Federal de São Paulo Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo e o

mundo vira gente:

A "crise da presença" no

candomblé de São Paulo

Guarulhos

2015

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Universidade Federal de São Paulo Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo

e o mundo vira gente:

A "crise da presença" no

candomblé de São Paulo

Dissertação de mestrado em Ciências Sociais apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Cristina Pompa.

Guarulhos

2015

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo

Ribeiro, Daniel

Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente: A "crise da presença" no candomblé de São Paulo /

Daniel Ribeiro ; orientadora Cristina Pompa. - Guarulhos, 2015. 150 f.

Dissertação (Mestrado)- Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.

Departamento de Ciências Sociais.

1. Religião. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé. 4. Religiões afro-brasileiras. I. Pompa, Cristina, orient. II. Título.

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4 Universidade Federal de São Paulo

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente:

A "crise da presença" no candomblé de São Paulo

___________________________________ Profa. Dra. Maria Cristina Pompa (Orientadora)

Unifesp

___________________________________ Profa. Dra. Melvina Afra Mendes de Araújo

Unifesp

___________________________________ Prof. Dr. Adone Agnolin

USP

Dissertação de mestrado em Ciências Sociais apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Cristina Pompa.

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Resumo

Esta pesquisa é um esforço teórico-metodológico para identificar o que Ernesto De Martino chamou de “crise da presença”, ao analisar o tarantismo no sul da Itália, no candomblé de São Paulo. A partir de uma possibilidade de comparação histórica apontada pelo autor italiano, busco atualizar o conceito de “crise da presença” para o mundo urbano e articular os postulados de De Martino aos de pensadores contemporâneos, na empreitada de demonstrar como sua teoria antecipa, em mais ou menos meio século, as ideias presentes no debate antropológico atual. Por meio de uma análise de campo e da articulação com outros autores, como Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl e Míriam Rabelo, extrapolo os pressupostos demartinianos ao trazer a questão das interações com os não-humanos.

Palavras chave: 1. Religião. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé. 4. Religiões afro-brasileiras.

Abstract

This research is a theoretical and methodological effort to identify what Ernesto De Martino called "crisis of presence" when he analyzed the tarantism in southern Italy in Candomble of Sao Paulo. From a possibility of historical comparison indicated by the Italian author, I try to update the concept of " crisis of presence" for the contemporary urban world and articulate De Martino's postulates to contemporary thinkers in order to demonstrate how his theory anticipates, in at least half a century, the ideas presented in the current anthropological debate. Through a field analysis and coordination with other authors such as Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl and Miriam Rabelo, I extrapolate the assumptions of De Martino to bring the issue of interactions with non-humans.

Keywords: 1. Religion. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomble. 4. Afro-Brazilian Religions.

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Riassunto

Questa ricerca è uno sforzo teorico e metodologico per identificare ciò che Ernesto De Martino ha chiamato "crisi della presenza", quando ha analizzato il tarantismo nel sud Italia, nel Candomblé di San Paolo. Da una possibilità di confronto storico indicato dall'autore italiano, cerco di aggiornare il concetto di "crisi della presenza" per il mondo urbano e articolare i postulati di De Martino a pensatori contemporanei, al fine di dimostrare come la sua teoria anticipa, in almeno mezzo secolo, le idee presenti nell'attuale dibattito antropologico. Attraverso una analisi sul campo e l’articolazione con altri autori come Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl e Miriam Rabelo, estrapolo le ipotesi di De Martino per portare la questione delle interazioni con i non-umani.

Parole chiave: 1. Religione. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé. 4. Le religioni afro-brasiliane.

Resumen

Esta investigación es un esfuerzo teórico y metodológico para identificar lo que Ernesto De Martino ha llamado "crisis de la presencia" cuando analizó el tarantismo en el sur de Italia en el candomblé de Sao Paulo. Desde una posibilidad de comparación histórica indicada por el autor italiano, trato de actualizar el concepto de "crisis de la presencia" para el mundo urbano contemporáneo y articular los postulados de De Martino a pensadores contemporáneos con la finalidad de demostrar cómo su teoría anticipa, en al menos medio siglo, las ideas presentadas en el actual debate antropológico. A través de un análisis de campo y la coordinación con otros autores como Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl y Miriam Rabelo, extrapolo los supuestos de De Martino a llevar el tema de las interacciones con los no-humanos.

Palabras clave: 1. Religión. 2. Ernesto De Martino. 3. candomblé. 4. Las religiones afro-brasileñas.

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AGRADECIMENTOS

Os pouco mais de dois anos que passei no mestrado foram um grande aprendizado durante o qual eu tive o privilégio de conviver com vários mestres. A todos os que cruzaram meu caminho neste período o meu mais sincero muito obrigado. Com todos os momentos de dúvida, certa solidão da pesquisa, cansaço físico e mental, o mestrado foi um processo prazeroso e feliz.

Aos meus professores do curso de jornalismo da Universidade Metodista que despertaram em mim a semente da vida acadêmica e me estimularam na minha perene busca por conhecimento: Marli dos Santos, Maria Cristina Gobbi, Verónica Aravena Cortes, Maria Luiza Rinaldi Hupfer e Marcelo Carvalho (que reencontrei na Unifesp). Ao Ricardo Pagliuso Regatieri que foi o responsável por eu ter “tomado coragem” para escrever meu projeto e encarar esta empreitada. A Sylvia Caiuby Novaes, por ter reiterado esse encorajamento com preciosas sugestões.

Aos professores da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp que me acolheram e me motivaram. Aos que conduziram as disciplinas que participei: Gabriela Nunes Ferreira, Lindomar Albuquerque e Christina Andrews. E alguns que não foram meus professores diretos, mas em estágios, caronas e conversas informais me inspiraram em temas que vão muito além das suas e da minha pesquisa: Cynthia Andersen Sarti, Ana Lúcia Teixeira, Marcos Pereira Rufino e Alessandra El Far.

Aos professores da Universidade de São Paulo com os quais cursei duas disciplinas e fui orientado em leituras que deram um novo (e melhor) rumo à proposta inicial desta pesquisa: Paula Montero, Renato Sztutman e Stélio Marras.

Aos queridos colegas do mestrado que foram de grande apoio, conforto e compreensão. Em especial a aqueles que se tornaram amigos: Andréa Barbara Azevedo, Bruno Marco Cuer dos Santos, Paulo RIgolin de Moraes, Thiago Fijos e Deise Casado.

Aos queridos Daniela Gonçalves e Douglas Barbosa, da secretaria de pós-graduação da Unifesp, pela atenção e carinho com que sempre me atenderam.

Aos amigos que a vida generosamente me deu e foram essenciais nos momentos de dúvidas e, naturalmente, nos de festa. Mirella Franco, Marcus Samed, Júlia Caiuby,

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Camila Novaes, Débora Costa e Silva, David Santos Jr., Jenifer Souza, Tarcísio Cardoso, Anselmo Calzolari, Claudia Montin Franco, Felipe Gonçalves, Luiz O. Esteves, Elaine, Marcelo, Maria Paula e Jorge Torresi, Patrícia Mara Barros, Paulo Caires, Paulo Henrique Araújo, Hugo Prudente, Daniela Majori, Bruna Stella, Clara Dias e Gil Alessi.

Ao Pai Pedro de Xangô e ao Pai Cristiano de Ogum e suas respectivas famílias de santo pelo acolhimento, paciência e respeito.

Agradeço enfaticamente a professora Melvina Afra Mendes de Araújo por ter acompanhado de forma atenta e carinhosa o desenrolar da minha pesquisa, primeiro como comentadora na disciplina de seminários, depois em minha qualificação com sugestões preciosas. E o Professor Adone Agnolin pela minuciosa e cuidadosa leitura de meu relatório de qualificação que gerou inspiradoras sugestões para a conclusão desta obra.

Toda gratidão e carinho a minha orientadora, Cristina Pompa, que pela imensa ajuda e cuidado com o meu trabalho. Sem ela, nada disso teria acontecido.

Aos colegas do grupo de pesquisa de antropologia e história das religiões: Maria Cristina Coelho Oliveira, Marcus Barreto, Ana Paula Souza, Ricardo Lopes Dias, Willian Shinkai, Gabriela Sartori, Fábio Preturlon e Carol Alvim.

Aos tantos autores, que apesar de nunca ter conhecido de fato, me fizeram companhia e me mostraram “que não estava louco”, ou, pelo menos, não sozinho. Ao Jorge Amado, cujos retratos literários da realidade me inspiraram a olhar com mais generosidade para a vida.

Aos meus pais, Terê e Birinho, irmãos, André e Claudia, e sobrinhos, Taiany, Letícia, Matheus, Lucas e Júlia, por terem sempre sido incentivadores e acolhedores em todos os momentos e decisões da minha vida. A Cleusa Cunha e ao Gilmar Cunha e toda sua grande família. Ao Damián Aloisi.

A CAPES pelo apoio financeiro fundamental à realização deste trabalho. A todos que eu possa ter esquecido de mencionar.

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SUMÁRIO

Apresentação: Guerra e crise... 11

Capítulo 1: o problema e o método ... 16

1.1 A propósito de “religião” ... 16

1.2 Tarantismo e candomblé em perspectiva ... 21

1.3 Crise da presença ... 29

1.4 O candomblé de Pai Pedro de Xangô... 42

1.5 Um mundo em movimento, um mundo em guerra ... 50

1.6 O mundo mágico demartiniano ... 58

1.7 O devir como risco ... 66

1.8 O risco no mundo contemporâneo ... 72

1.9 De que mundo estamos falando? ... 79

Capítulo 2: A análise ... 90

2.1 As pessoas além das pessoas ... 90

2.2 O atabaque comanda o ritual ... 91

2.3 O homem é engolido pelo mundo ... 99

2.4 Olubajé – no banquete do rei tem bolo ... 107

2.5 A religião como técnica – uma proposta demartiniana ... 118

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Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.

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Apresentação: Guerra e crise

Em um artigo de 29 de novembro de 2012, no jornal baiano A Tarde, mãe Stella de Oxóssi, líder do terreiro Opo Afonjá, um dos mais tradicionais do país declara que “E é Xangô, Deus do Trovão, orixá de “olhos de Orogbó”, sempre abertos e atentos, que com sua voz rouca grita para que nos levantemos e, como guerreiros, enfrentemos a nossas lutas diárias” (Santos, 2013). A guerra, eu ousaria afirmar, é o ponto central do candomblé. Poderia dizer que a guerra é a paisagem mítica na qual o candomblé se desenrola, mas talvez esta fosse uma afirmação redutiva, já que nas páginas a seguir tentarei demonstrar como o discurso da guerra é não só o pano de fundo para todo o desenvolvimento do ritual, como a gramática pela qual se vive.

Nas histórias de vida dos filhos de santo e frequentadores dos terreiros é sempre contado com ênfase como as dificuldades foram vencidas com a ajuda dos rituais. O discurso é quase sempre de que há uma guerra. Ou muitas. Desde uma grave doença tratada com o que os antropólogos convencionaram chamar de cura mágica, até os casos mais banais de picuinhas no ambiente de trabalho são relatados como batalhas. A vida é muitas vezes descrita como uma batalha. O corriqueiro modo de cumprimentar que usamos, perguntando “tudo bem?”, suscita respostas como “na batalha” ou “sempre lutando”.

Esta não é uma narrativa singular ao candomblé. A narrativa da guerra está presente no dia a dia em todos os ambientes. Não são somente os filhos de santo que se apresentam como guerreiros. Em discursos políticos, quantas vezes não se ouviram os candidatos ou parlamentares se referir a um povo guerreiro que batalha por sua sobrevivência. A referência corriqueira à vida como luta,no candomblé, é celebrada como força vital. Estar em luta para o seus adeptos é estar vivo e atuante.

O discurso de que há uma guerra, de que a vida é uma batalha, uma sucessão de lutas diárias é uma constante nos terreiros de candomblé. A cura está associada à vitória. As conquistas são vitórias. Aqueles que alcançam seus objetivos, seja ela a cura de uma doença, de uma depressão ou um carro novo, são vitoriosos na batalha. Porque todo processo é uma luta. O candomblé, ao contrário do que possamos pensar em uma análise rasa, é a celebração da guerra e não da paz. A luta diária pela sobrevivência é o

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que dá tônus ao ritual. E quando uma vitória é conquistada, prontamente a pessoa responde que está “pronta para outra”, já que a luta é cíclica.

O primeiro orixá saudado em qualquer ritual, seja público ou privado, é Exú, o orixá do movimento, do caos. A centralidade do culto de Exú no candomblé demonstra como este é um ritual voltado para o movimento e para a luta, que no discurso pode aparecer como sinônimo de trabalho, conquista, movimento, rompimento e poder, como os exemplos etnográficos demonstrarão.

Relatar a vida e a própria história como uma guerra e se colocar como um guerreiro é quase um a priori quando se escuta o relato de qualquer filho de santo. As histórias de vida são sempre contadas com ênfase nas dificuldades e como elas foram vencidas, ou em como a nobreza de cada um e suas virtudes de guerreiro são testadas a todo instante. Guerreiro, por sinal, é elogio dos mais valiosos.

Por meio das oferendas e dos rituais coreico-musicais, os adeptos do candomblé buscam estar em sintonia com os orixás que são as forças da natureza personificadas capazes de agir em seus corpos. A natureza à qual candomblé busca se conectar, no entanto, não é a natureza passiva, regrada e controlada que a ciência clássica procurou esquematizar. A natureza do candomblé é imprevisível e, muitas vezes, violenta. Para os adeptos, é preciso dialogar com a natureza, render-lhe oferendas e atender aos seus desejos para estar em sintonia e beneficiar-se de seus movimentos. Estar em harmonia com a natureza, no entanto, não exclui que eventualmente o homem seja engolido por ela. O ritual procura controlar uma crise que existe. O mundo exterior age no homem e esta é uma condição que não pode ser resolvida, mas apenas controlada. A relação entre a guerra, a crise e o movimento será mais explorada nos próximos capítulos.

A proposta de analisar a magia como uma técnica para a resolução de crises não é uma proposta nova. A cura mágica foi tema amplamente tratado pela antropologia e volto a ela mais à frente. O candomblé, porém, me parece, a partir dessa observação, um campo propício para analisar o ritual como uma técnica para o controle das crises. Técnica essa que não se propõe a resolução definitiva masao controle, assim como propõe o antropólogo italiano Ernesto De Martino, conforme veremos detalhadamente mais à frente.

Se o movimento é a essência do candomblé e é este movimento que dá o sentido para a vida, a ausência de movimento é o maior drama para seus adeptos. Uma pessoa que não

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está em movimento está doente. O movimento, como demonstrarei, está ligado ao ritmo e à velocidade, logo a pessoa que está fora deste modus operandi veloz está doente. A partir disso, minha hipótese central nesta pesquisa é a de que o candomblé tem tido um uso frequente, abundante e bem sucedido como ferramenta para o tratamento das depressões porque as depressões no mundo contemporâneo estão ligadas aos desajustes de movimento e velocidade. A hipótese de que a depressão contemporânea seria uma forma da melancolia freudiana é de Maria Rita Kehl (2009). A religião como técnica foi defendida por Ernesto De Martino (1962, 1977, 1982, 1996, 2004, 2012), assim como o conceito de “crise da presença” foi forjado por ele. Nesta pesquisa, procurarei relacionar a depressão, nos moldes defendidos por Kehl (2009), com a crise da presença demartiniana.

Neste contexto o candomblé contraria a ideia de religião tomada como a priori em muitos estudos, embora tratado como religião por seus adeptos e, por isso, tomarei aqui muitas vezes a liberdade de me referir a este sistema mítico ritual como tal. No candomblé, veremos, a religião não é um caminho para uma suposta “evolução espiritual”, sequer no discurso ou nas práticas que analisaremos.

Esta pesquisa pretende apresentar uma perspectiva de análise do candomblé como técnica de proteção e cura da crise da presença, como propõe o pensador italiano Ernesto De Martino sobre o tarantismo. Grosso modo, o tarantismo é uma prática ritual coreico-musical de celebração e cura da “mordida da tarântula”. Por meio da música e da dança ritualística o atarantado – pessoa possuída pela tarântula que o mordeu – identifica-se com a entidade e a exorciza, quando é o caso. O próprio De Martino a certa altura aponta a possibilidade de comparar o tarantismo com o candomblé, como veremos mais adiante.

A partir de pressupostos anunciados pelo próprio De Martino, apresentarei ao longo desta pesquisa um esforço de encontrar os paralelos históricos entre tarantismo e candomblé, ambos fenômenos de influência africana que se desenvolveram em contextos de marginalização, e aplicar os conceitos demartinianos na análise candomblé urbano.

Para tal tarefa, apresentarei argumentos em prol de uma atualização do que ele chamou de Crise de Presença para o contexto da “modernidade tardia”, assim como definida por alguns autores. Ao articular De Martino, que escreveu na metade do século passado,

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com Ilya Prigogyne e Isabelle Stengers, do fim do século, e Maria Rita Kehl, de produção recente, procuro demonstrar uma tendência que vem se confirmando ao longo de mais de meio século de revisitar certos conceitos e atualizá-los para um momento histórico mais recente (como faz De Martino com o dasein heideggeriano e Kehl com a melancolia freudiana).

Minha empreitada de realizar esse trabalho com a crise da presença e a interpretação técnica da religião embasam-se no debate que proponho a respeito das múltiplas formas de conceber a realidade. Algo que o próprio De Martino havia feito no livro Il Mondo

Magico, de 1948, e, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, em A Nova Aliança, de 1984. A

partir da ideia de que a realidade é condenda, como propõe o italiano, também para o mundo urbano e que a segurança da presença é ameaçada neste contexto, como bem demonstram Beck e Foucault, por exemplo, preparo terreno para mais tarde ilustrar essas afirmações teóricas com meu trabalho de campo.

No texto, apresentarei o trabalho de campo realizado ao longo da pesquisa em um terreiro de candomblé na cidade de Santo André, na Grande São Paulo. Conto também com relatos e observações em outros terreiros e conversas com adeptos do candomblé de outras casas que encontrei ao longo da pesquisa e que podem contribuir para a análise que proporei ao longo deste texto. Também utilizo o recurso de buscar em outros textos antropológicos passagens e relatos semelhantes aos que observei, ainda que as análises desses relatos tenham seguido por outras direções teóricas. No que diz respeito ao terreiro em que realizei a pesquisa, vou apresentar uma etnografia de algumas festas e também relatos de conversas e encontros que tive com os membros em dias fora do calendário do candomblé. A etnografia me ajudará a traçar os paralelos com o tarantismo e me apropriar da teoria demartiniana sobre a crise da presença.

Acompanhei durante pouco mais de dois anos as festas públicas e algumas obrigações privadas do terreiro Ilê Axé Xangô Airá, em Santo André. Neste mesmo terreiro, tive a oportunidade de participar de almoços de confraternização, jantares e festas de aniversário, o que me rendeu um material etnográfico rico sobre a história de vida das pessoas, além de me esclarecer muitas dúvidas que nos dias de rituais não tinha a oportunidade de perguntar. Fui convidado a ajudar a organizar algumas festas, buscar flores, comidas, limpar o terreiro e outras atividades “menores” e esse período foi

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igualmente frutífero para compreender alguns processos e conversar mais descontraidamente com os filhos de santo.

Durante a pesquisa visitei outros terreiros e com mais frequência o Ilê Axé Ogunjá, em Juquitiba, no interior de São Paulo, comandado por Pai Cristiano de Ogum. O terreiro, apesar de sua localização, é frequentado apenas por pessoas de São Paulo e sua região metropolitana, já que na época em que o conheci, estava recentemente instalado ali, vindo de Osasco, também na Grande São Paulo. Ali tive a oportunidade de assistir a algumas festas e conversar com filhos de santo por diversas vezes. Alguns relatos poderão estar presentes na etnografia para efeito de comparação. No Ilê Axé Ogunjá participei de rituais reservados devido á distância. Com efeito, por ser no interior e eu ir de carona, não teria como voltar antes dos filhos de santo que me levavam, assim assisti a alguns rituais privados. Em duas saídas de iaô – primeiro ritual público de um iniciado, quando seu orixá se apresenta para aqueles que não são filhos de santo – pude conversar com pais de santo mais velhos que Pai Cristiano trazia da Bahia para ajuda-lo.

Ao longo desse período, tive ainda acesso a muitos filhos de santo de outros terreiros e visitei algumas outras casas de candomblé, além de compartilhar experiências com outros pesquisadores das chamadas religiões afro. Alguns relatos podem ser igualmente úteis para a compreensão do candomblé nos contextos urbanos e para exemplificar a relação dos candomblés têm entre si, que tende a apresentar conflitos que serão um elemento importante em minha análise.

No primeiro capítulo “O problema e o método” faço uma contextualização da escolha teórica e metodológica com a apresentação dos conceitos demartinianos e a possibilidade de atualização desses postulados. Articulo as ideias de De Martino com autores que tratam da relação do homem com a natureza, como Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, e trago as ideias de Maria Rita Kehl, Arjun Appadurai, Mar Augé, Ulrich Beck, Anthony Giddens para validar a atualidade do debate inaugurado por De Martino. No segundo capítulo “A análise”, realizo uma interpretação do candomblé a partir dos pressupostos apresentados e introduzo as ideias de outros autores que pensaram o candomblé, como Márcio Goldman, Míriam Rabelo e Rosa Maria Susanna Barbara. Apresento, neste capítulo, uma esforço de introduzir uma outra possibilidade de articulação com o autor Tim Ingold.

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Capítulo 1: O problema e o método

1.1 A propósito de “religião”

A hipótese de que a violência e o caos podem fazer parte da “experiência religiosa” foi explorada por José Jorge de Carvalho em seu estudo sobre o culto da Jurema no Recife. Carvalho compara a desordem que identifica no culto da Jurema com os cultos dionisíacos gregos com o argumento de que o caos é gerador da ordem. No momento do caos ritual surge a oportunidade de criar-se, recriar-se, reinventar-se e recolocar-se no mundo.

Embora enverede por outros caminhos, ele traz uma importante reflexão para a presente pesquisa. A ideia de que a homem religioso seria aquele que foi da desordem à ordem, da maldade à bondade, da violência à paz (Carvalho, 2003:87) deve ser prontamente descartada. Neste estudo, defenderei a ideia de controle. Esta ideia me parece adequada porque admite a recorrência das crises, apesar de não descartar a cura compreendida como solução definitiva.

“Por trás das concepções clássicas substantivas do campo religioso, concebido como terreno do absoluto, do sublime, está implícita uma visão moralizante da experiência religioso, tida como boa, pacífica, harmônica, geradora de ordem” (Carvalho, 2003:87)

A apropriação acrítica de conceitos como “religião”, “transcendência”, “fé”, “sobrenatural”, etc. vem sendo discutida por uma série de autores, dos quais uma parcela significativa aponta para um ponto comum: a construção histórica das categorias. Por este caminho seguem autores que tratam da religião com o objeto direto de suas pesquisas, como Talal Asad, José Casanova, Paula Montero, Cristina Pompa, Adone Agnolin, Patrícia Birman, Regina Novaes, Silvia Mancini, George Saunders, somente para citar alguns. Outros, como Isabelle Stengers, Ilya Prigogine, Bruno Latour e Tobie Nathan, têm a religião como objeto colateral de pesquisa, mas constituem-se como grandes contribuições para esta reflexão.

Como bem nos mostra Asad, a visão de que a religião da Idade Média teria a mesma essência que tem hoje é falsa e nos levaria a ter que definir a religião como um

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fenômeno trans-histórico e transcultural. O que a história nos mostra, no entanto, é que a religião muda, não é algo imutável e estático. Asad reforça seu argumento colocando que as pré-condições e os efeitos socialmente identificáveis daquilo que era considerado religião na época cristã medieval são diferentes do que chamamos religião na sociedade moderna (Asad, 1993). Desse modo, a leitura de qualquer dos fenômenos que chamamos religião deve ser historicamente localizado para compreendermos em que momento as práticas se legitimam sob a categoria de religião.

A religião é para a maior parte dos pesquisadores um “a priori do pensamento social”, como coloca Paula Montero, mas tratar-se-ia, na verdade, de “uma representação resultante de um processo histórico de longa duração centrado no cristianismo e suas mutações” (Montero, 2010:259)

Retomo aqui o argumento de que o conceito disseminado de religião enquanto universal remete à tradição ocidental cristã, especificamente à Igreja Católica dominante na Europa onde nasceu a antropologia e de onde saíram o grande número de viajantes e etnógrafos, muitos deles missionários, responsáveis por catequizar os nativos.

“Essa aspiração universal, constatada no nível etnológico desde o início da antropologia como ciência, seja no campo, seja na literatura, é na verdade um construto intelectual de uma ciência que acabou herdando categorias construídas pelo Ocidente cristão e utilizadas na conceptualização das alteridades étnicas com que ele vinha tendo contato, principalmente pela obra dos missionários, os primeiros a fazer uma “história comparada” das religiões. Vale lembrar que os relatos missionários, bem como as elaborações conceituais feitas a partir deles (Las Casas, Acosta, Lafiteau) foram as fontes principais da etnologia “de gabinete” em seu início.” (Pompa, 2006:114)

Questionar a categoria de religião é um exercício recente e pode apontar para caminhos frutíferos para a compreensão da complexa sociedade contemporânea. A antropologia viciou-se na busca da compreensão de diversos fenômenos por meio de uma chave metodológica e interpretativa comum. Tradicionalmente nas ciências sociais, a religião não é apenas um campo empírico privilegiado de investigação, mas, antes, um fundamento epistemológico das disciplinas:

“Evocam-se imediatamente a efervescência religiosa como celebração do próprio social e as categorias religiosas de entendimento de Durkheim, as formas

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de religião como diferencial evolutivo na definição dos estágios culturais, de Tylor e, naturalmente, o conceito de secularização de Weber, fundamento da modernidade, como distinção irreversível entre religioso e civil. Ora, é justamente essa distinção, conquista histórica do ocidente moderno, o pressuposto epistemológico das pesquisas sobre religião, até nossos dias, em que raramente há problematização histórica (ou, desconstrução, como preferem alguns), dos binômios sagrado-profano, público-privado, religioso-civil, tão frequentemente utilizados ambiguamente, como categorias analíticas e como realidades empíricas anteriores à análise.” (Pompa, 2012:159)

Até mesmo a perspectiva simbólica de Clifford Geertz, que exerceu grande influência, principalmente a partir da metade dos anos 80, nas pesquisas voltadas para a compreensão do sentido atribuído aos símbolos religiosos pelos próprios atores sociais, não chega a questionar, todavia, o próprio conceito de religião (Ibid.).

O antropólogo Talal Asad, preocupado com a apropriação e aplicação descuidada do termo religião pela antropologia, realiza uma minuciosa análise do trabalho de Geertz em que critica o lugar da religião na pesquisa social. Mais do que uma crítica ao autor em questão, trata-se da crítica à universalização da categoria.

“A insistência na tese de que a religião teria uma essência autônoma – que não poderia ser confundida com a essência da ciência, da política ou do senso comum – convida-nos, contudo, a definir a religião (assim como qualquer essência) como um fenômeno trans-histórico e transcultural.” (Asad, 2010:264) Para Asad, a história é chave para a compreensão do uso da categoria “religião” e sua apropriação pela antropologia. Sendo o próprio termo fruto de uma construção histórica, ele não poderia ser universalizado, embora assim pretendesse Geertz.

“O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos.” (Asad, 2010:264)

Esta perspectiva tinha sido elaborada, bem antes de Geertz, por uma corrente de pensamento pouco conhecida no Brasil: a chamada Escola Italiana de História das Religioes. Esta dissertação é um esforço teórico-metodológico analisar o candomblé de São Paulo à luz da teoria forjada por um dos expoentes desta corrente: o antropólogo e

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historiador das religiões Ernesto De Martino. De modo inevitavelmente resumido e interessado, apresentarei a seguir as linhas gerais desta linha de pesquisa.

A “Escola Italiana de História das Religiões” aponta para o debate entre história e religião como cerne dos pressupostos teórico-metodológicos desses autores. Os autores dessa corrente, como aponta Agnolin, partem de uma crítica à vertente sistemática de Müller, Tylor e Durkheim, e à fenomenologia de Otto e Eliade.

“Para delinear as precípuas características desta última, isto é, as próprias tendências historiográficas peculiarmente italianas, quem entre os nossos historiadores falou, em primeiro lugar, em “escola romana de História das Religiões” foi Angelo Brelich, que a denotou enquanto crescida ao redor de um centro referencial (o Instituto di Studi Storico-Religiosi) da Universidade La Sapienza, e de um nome, Raffaele Pettazzoni, o fundador dessa perspectiva historicista com relação à análise (comparativa) das religiões” (Agnolin, 2013:54)

Cabe a Raffaelle Pettazzoni a tarefa de inaugurar esta corrente com o pressuposto “cada

phainomenon é um genomenon”:

“formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade, queria destacar como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetificação – é possível re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-objetizá-lo””. (Agnolin, 2008: 21).

A perspectiva de Pettazzoni, em oposição à fenomenologia, foi a base desta corrente de pensamento, como coloca Pompa.

"O proposito de Pettazzoni foi sempre uma conciliação entre historicismo (que na Itália teoricamente recusava, com Benedetto Croce, a autonomia categorial do religioso) e fenomenologia, à qual é estranho o conceito de historização dos fenômenos religiosos, de devir." (Pompa, 1995:52-53)

Agnolin, herdeiro desta tradição, assim como Pompa e Mancini, aponta a perspectiva histórica como alternativa à armadilha de analisar a religião a partir de uma categoria universal e, ao mesmo tempo, localizada.

“O fato é que, se a religião pode ser analisada segundo diferentes perspectivas (filosófica, teológica, psicológica, etc.), sendo, todavia, a cultura o objeto

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específico e limitativo do próprio historiador, a partir do momento em que a religião é objeto de pesquisa histórica não pode ser posta de lado sua observação em função de uma determinada cultura.” (Agnolin, 2008:22)

Somente a partir deste ponto de vista é possível realizar um estudo comparativo das religiões sem que este resulte em uma análise universalizante das categorias.

“Esta preciosa ferramenta metodológica, enfim, constitui a comparação histórica, não enquanto uma comparação horizontal estéril dos fenômenos culturais dados, mas enquanto uma comparação de processos históricos: isto significa que não se trata de uma comparação dedicada a nivelar e reduzir “fenômenos religiosos”, mas, ao contrário, de um instrumento comparativo destinado a diferenciar e a determinar as peculiaridades precípuas de cada processo histórico (que só a comparação pode destacar), para entender também, além das texturas fundamentais comuns, as não repetíveis soluções criativas concretas, historicamente realizadas.” (Agnolin, 2008:25)

Neste contexto, Ernesto De Martino desenvolve seu pensamento e torna-se o mais famoso (Agnolin, 2013: 68) expoente dessa escola. Pouco conhecido no Brasil, De Martino é autor de uma extensa bibliografia, que recentemente vem sendo retomada em artigos, principalmente europeus, devida à sua grande conexão com pensadores contemporâneos, pois, como tentarei demonstrar ao longo deste texto, ele anuncia uma série de pressupostos que só recentemente estão sendo trazidos ao debate.

A obra de Ernesto De Martino não foi traduzida para o português e poucos pesquisadores o conhecem no Brasil. Em outros países, a obra do italiano vem sendo debatida e considerada, tendo sido traduzido para o alemão, francês, espanhol – em edições espanholas e argentinas, e inglês – nos Estados Unidos. Suas ideias vêm sendo retomadas e postas com destaque no debate por pesquisadores de diversos países, ocupados em compreender os “movimentos religiosos” do mundo contemporâneo. A proposta de De Martino é encarar a religião como uma técnica, no sentido Heidegeriano, para garantir a presença. O conceito de Presença foi elaborado pelo italiano a partir do Dasein do filósofo alemão. O “estar-aí” no mundo, conforme traduzido do italiano esserci nel mondo por Cristina Pompa (1998), é para De Martino a capacidade do homem de reconhecer-se no mundo.

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“Naquilo que o autor (De Martino) chama de “mundo mágico”, isto é, nas sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo é uma realidade a ser (constantemente) (re)construída. A simbologia mítico-ritual é a técnica protetora contra a ameaça suprema de não”ser/estar no mundo” (possibilidade sempre aberta e contra a qual se constitui a ação protetora da simbologia mítico-ritual): é ela, portanto, que funda a presença do homem no mundo e seu constante esforço para reafirmar essa sua realidade” (Agnolin, 2013:71)

A contribuição de De Martino é particularmente fértil para a antropologia, no sentido em que o autor realiza uma etnografia interpretativa da prática ritual.

“Levando em consideração essa preciosa herança de De Martino para a postura interpretativista da Antropologia contemporânea – e tendo em vista seu desenvolvimento com relação a quanto dissemos anteriormente a respeito desse rito, isto é, como da problemática tradicional, relida segundo essa nova perspectiva, surge essa nova postura intelectual e metodológica -, nós a encontramos, de fato, já implícita e ricamente delineada na primeira obra de nosso autor” (Agnolin, 2013: 73)

1.2 Tarantismo e candomblé em perspectiva

Ernesto De Martino publicou em 1956 o livro La Terra del Rimorso1 dedicado à análise do tarantismo da Puglia, no sul da Itália. O tarantismo é um conjunto simbólico mítico-ritual, como dito pelo próprio autor, uma “religião menor” que existiu por alguns séculos naquela região e até meados do século XX conservava certos resquícios que puderam ser observados por ele. O tarantismo de forma bastante resumida consiste na cura coreico-musical da possessão que resulta da “mordida da aranha” em camponeses. Depois de “mordidos”, os camponeses passam a adotar um comportamento alterado e só podem ser curados com os rituais de músicas e danças específicas.

“Fenômeno “histérico convulsivo” que, preparado e acompanhado por danças fortemente rítmicas, com base em crenças difundidas na área mediterrânea desde

1 O título do livro baseia-se no duplo sentido da palavra italiana, “rimorso”, que pode significar tanto

“re-mordida” (da tarântula), seja “remorso”. O “remorso”, no caso, é, para o autor, tanto o sentimento de culpa do afetado pela crise psíquica (o “mordido”), quanto o remorso do intelectual de esquerda, qual ele era, frente ao processo de opressão social e política das classes asubalternas do suul da Itália.

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a Antiguidade, teria sido provocado pela picada de aranhas (as tarântulas); fenômeno ainda presente no Sul da Itália na época em que o autor empreende uma importante pesquisa etnográfica e histórico-religiosa a respeito” (Agnolin, 2013:77)

De Martino dedica todo o livro à descrição e análise do fenômeno. As pessoas que sofriam a mordida entravam em um transe do qual a comunidade se apropriava para a realização de um ritual que envolvia diversas pessoas, assim como ambientes específico, roupas, objetos e música. Os comportamentos, no entanto, são distintos na medida em que cada aranha tem uma personalidade particular, que exige uma música e uma dança próprias para seu exorcismo.

A certa altura o autor sugere que a análise de cultos africanos de possessão deve ser considerada, com certos limites, um fenômeno molecular, de modo que dele podem derivar outras práticas como o tarantismo e outros cultos de estrutura semelhante, como o candomblé no Brasil. A comparação com cultos africanos seria possível dada as origens da cultura do sul da Itália que recebeu forte influência durante a expansão Islâmica.

"Essa perspectiva é ainda mais justificada historicamente se o objeto de estudo é o Tarantismo, porque esta não se refere apenas à história dos cultos orgiásticos e iniciáticos da civilização clássica e aos paralelos africanos que, dentro de certos limites, são próprios de civilizações proto-mediterrâneas, mas deve a sua formação de fenômeno molecular identificado historicamente ao fato de que durante a Idade Média a vida cultural da população costeira do sul da Itália foi particularmente exposta - especialmente a partir da rápida expansão do Islã no século VII – à influência plurissecular que podemos chamar genericamente de afro-mediterrâneas "(De Martino, 1999: 196)2.

Tal enunciado já seria suficiente para justificar o estudo do candomblé brasileiro sob a perspectiva demartiniana. O autor, no entanto, insere uma nova observação a respeito do trabalho do historiado das religiões francês Henri Jeanmaire, sobre o tarantismo em comparação com os cultos africanos, na qual sugere um paralelo com o candomblé.

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“Ao que destacou Jeanmaire debemos somar a do mundo afro-americano (afro-brasileiro, adro-cubano e afro-haitiano), onde se desenvolveram uns cultos de estrutura afim com modalidades particulares e nomes diferentes (macumba, candomblé, santería, vodú)” (De Martino, 1999:197)

De Martino aponta ainda o caminho para um estudo comparativo indicando algumas semelhanças encontradas no trabalho de Jeanmaire entre o tarantismo e os cultos africanos. Tais apontamentos servem ao mesmo tempo como facilitador e como problema do presente estudo, já que o candomblé pensado por De Martino nos anos 40 e 50 ganhou novas características com o passar das décadas e peculiaridades fornecidas pelas mudanças de contexto histórico.

“Nesta descrição global, necessariamente genérica, advertimos - postos os importantes diferenciais – algumas afinidade notáveis com o tarantismo, como a limitação do fenômeno ás classes populares, a ampla participação feminina, a coexistência de formas superiores de vida religiosa (cristianismo, islamismo) com as conseguintes combinações sincréticas, a terapia coreico-musical da crise, a variedade de personagens e tendências do espirito possessor que retoma a tarântula “libertina”, “tempestuosa” ou “triste e muda” do tarantismo, assim como a relação entre cada espirito e o tipo de música e comportamento coreico associado à sua manifestação” (De Martino, 1999: 199)

Há ainda outros aspectos acerca do tarantismo assinalados pelo autor que são passíveis de comparação com o candomblé.

“Sem dúvida, no caso do tarantismo, a relação com o latrodectismo, a influência da noção cristã da possessão diabólica e as confusões sincréticas com os santos católicos, atenuaram consideravelmente a transformação da tarântula em um autêntico “espirito protetor” como o bori sudanês ou o zar egípcio. Mas também neste caso, sobretudo nas formas mais antigas do tarantismo, os diálogos e negociações com a tarântula, os poderes de clarividência, o cenário agradável do rito, o cuidado com que as mulheres, ao se aproximar do lugar cerimonial, se submetiam a tabus de alimentação, faziam abstinência sexual e guardavam dinheiro, apontam uma relação que não pode ser atribuída ao tema da “expulsão do espirito maléfico”, e melhor se aproxima da “transformação dos fatores

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depressivos” e a “normalização da crise” que destaca Jeanmaire como características das práticas africanas” (De Martino, 1999: 199)

Nestes breves textos, De Martino fornece a chave para todo o estudo que se segue. Ao analisar o candomblé paulista como uma prática que normaliza uma crise por meio de uma técnica coreico-musical será possível traçar paralelos com o tarantismo e, mais importante, com a teoria desenvolvida pelo autor a respeito do sistema mítico ritual como técnica protetora da crise da presença. É importante frisar que, justamente na linha com o pensamento demartiniano e da Escola italiana de História das Religiões, o critério de comparabilidade não será analógico, em busca de semelhanças formais, e sim histórico, em busca de especificidades histórico-culturais de realização de uma estrutura ritual geral. Nesse sentido, espera-se também com o texto que segue, extrapolar a teoria demartiniana de que a crise está diretamente relacionada ao que ele chama de “mundo mágico”, um mundo fundamentalmente rural e “subalterno”, para usar o termo gramsciano tão caro ao autor, e buscar identificá-la em um contexto urbano, como o próprio autor apontou inicialmente em seu texto “Furore in Svezia”, publicado no volume Furore, Simbolo, Valore de 1962, quando analisa grupos de jovens enfurecidos em Estocolmo.

Para se apropriar das ideias demartinianas para observar o candomblé de modo semelhante ao que ele utilizou para a análise do tarantismo, parece-me necessário compreender de modo mais apurado as proximidades entre esses dois fenômenos. De Martino entende o tarantismo testemunhado por ele na metade do século XX como resquícios de uma prática que fora mais presente e importante. O candomblé de São Paulo dos anos 2000 é uma prática pulsante, que não pode ser tratada como “resquício” de algo maior, mas uma prática de resistência construída na história inicialmente pelos escravos e negros libertos, que depois ganhou adeptos brancos e hoje é um ritual que recebe pessoas de diversas origens sociais, econômicas e culturais, como será demonstrado ao longo do texto. Ainda no prefácio de La Terra del Rimorso, De Martino coloca de forma breve sua definição para o tarantismo.

“Trata-se de uma formação religiosa “menor”, sobretudo camponesa – ainda que houve uma época em que também estiveram envolvidas classes mais elevadas -, caracterizada pelo simbolismo da tarântula que morde e envenena, e da música,

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da dança e das cores, que libertam dessa picada envenenada” (De Martino, 1999: 13)

O candomblé, assim como o tarantismo, é conhecido como uma religião que se utiliza do simbolismo da música, da dança e das cores para realizar seus rituais. No candomblé, a manifestação nas pessoas é creditada aos orixás, seres espirituais ligados às forças da natureza. O simbolismo coreico-musical no candomblé busca uma conexão com o orixá, assim como o tarantismo com a tarântula. O atarantado – pessoa em transe – tem uma identificação com a tarântula, que é objeto e sujeito ao mesmo tempo. Assim como na possessão do orixá em que o possuído é o próprio orixá.

O candomblé se desenvolveu e proliferou principalmente pelo Estado da Bahia e foi objeto de estudo de Roger Bastide que publicou em 1958: O candomblé da Bahia. De lá para cá, a participação de brancos nos rituais foi ampliada e atualmente o candomblé é uma religião diversa daquela registrada pelo sociólogo francês.

Os terreiros do século XXI nas grandes metrópoles têm muitos de seus líderes brancos de sobrenomes europeus e formação urbana. A presença desses pais de santo brancos e oriundos de estratos da classe média e da burguesia na comunidade religiosa não permite mais que se diga que o candomblé de São Paulo é negro e pobre. (Prandi, 1991:20). Parece-me crucial assinalar esta diferença logo em princípio, embora esta seja consequência do caráter urbano do candomblé em relação ao caráter rural do tarantismo, como será problematizado mais adiante.

"Assim, o candomblé paulista é provavelmente o mais heterogêneo do Brasil em termos de configuração racial e classial. Isso se explica em parte pelo próprio processo de inserção dessa religião na região para a qual as grandes contingentes populacionais migraram a partir da década de sessenta, vindos de todas as partes do país. Entre os muitos migrantes, chegaram também pais e mães de santo que instalaram terreiros em vários pontos da capital, não só oferecendo seus serviços mágicos, mas também iniciando pessoas, muitas delas tendo já passado pela umbanda, então muito difundida entre a classe média paulista.

Recrutando seus adeptos entre os habitantes de São Paulo, o candomblé paulista formará, então, uma inédita família de santo, com negros, brancos, japoneses, turcos, judeus, professores, militares, domésticas etc. E as questões raciais e classiais postas pela convivência das mais diferentes pessoas, grupos, estilos de

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vida e visões de mundo imporão uma dinâmica específica ao candomblé desse estado" (Silva & Amaral, 2003:99)

De Martino relata que seu entusiasmo pelo estudo do fenômeno foram fotos de atarantadas na Capela de San Paolo di Galatina. Nas imagens, as mulheres “possuídas” pela tarântula aparecem saltando na mesa do altar e repousando sobre a mesa eucarística. Ele chama a atenção para a relação entre o tarantismo e o cristianismo.

“Estas simples reflexões sugeriam que por trás dos excêntricos personagens das fotografias havia uma história substancial, uma história que apontava para algum onde, quando e como de certas limitações do processo de expansão da Civilização Cristã” (De Martino, 1999:31)

Verger dedicou-se de forma mais breve à relação do candomblé com o catolicismo. Ele relata que todos os negros eram batizados quando chegavam ao Brasil como escravos e recebiam catequese. Apesar disso, segundo Verger, esses negros permaneciam ligados às suas antigas práticas rituais e crenças. Ele conta ainda que quando questionados sobre o que significam aqueles cantos e danças por seus senhores respondiam que ao seu modo e em sua língua adoravam São Jerônimo, Santa Bárbara ou o Senhor do Bonfim.

“É que cada divindade africana havia sido assimilada aos santos e virgens da religião católica. Foi assim que, ao abrigo de um aparente sincretismo, as antigas tradições mantiveram-se através do tempo” (Verger, 1999:23-24)

Atualmente não se veem mais imagens de santos católicos nos terreiros de candomblé com a mesma frequência e os orixás são tratados por seus nomes originais na maioria das casas. Um informante me contou durante a pesquisa que na Bahia, após o ritual de iniciação no terreiro, o filho-de-santo precisava participar de uma missa. Tal tradição nunca teve força no candomblé de São Paulo.

A questão do sincretismo é tema para uma vasta discussão na qual poderíamos evocar toda uma bibliografia especializada no tema 3. Neste ponto, nos interessa saber que

3

A ideia do sincretismo no candomblé, inaugurado por Roger Bastide (1958) embora já estivesse presente em Nina Rodrigues, veio se tornar um ponto de partida para um vasto número de autores que se ocuparam no candomblé. Entre os estudos mais recentes, podemos citar Sérgio Ferreti (1995), que realiza um estudo sobre o estado da arte da do sincretismo, no qual o considera uma condição sine

qua non para o campo. Pierre Sanchis (2001) afirma que o uso da categoria pode ser frutífero para

pensar as religiões afro-brasileiras, fazendo seu uso tanto como categoria analítica quanto dado. Melvina Araújo (2011) critica a naturalização da categoria pelos cientistas sociais. A crítica de Araújo é menos ao uso que a ausência da problematização da categoria ”sincretismo”, que oscila permanentemente entre conceito e dado objetivo.

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assim como indicado por De Martino sobre o tarantismo, o candomblé também contém em sua história uma profunda relação com o cristianismo dominante. A respeito da hegemonia e posição dominante do catolicismo na sociedade brasileira, Montero observa que os estudos do catolicismo foram majoritariamente tema de estudo da sociologia, mais preocupada com as instituições, enquanto os estudos afro-brasileiros foram mais vezes objeto da antropologia, por sua vez com enfoque mais cultural.

“O catolicismo goza de uma dupla legitimidade: é uma religião tradicionalmente percebida como expressão dos valores culturais da nação, e está organizada institucionalmente na mesma escala do Estado, aparecendo muitas vezes como seu contraponto. As religiões africanas, ao contrário, sempre representadas como sobras de superstição e ignorância encapsuladas nas margens da sociedade não mereciam senão o combate ideológico dos católicos (e dos sábios).” (Montero, 1999:340)

Montero coloca ainda uma importante questão a respeito do “modo tradicional” como as religiões de matriz africana foram interpretadas. As questões políticas e sociais dessas práticas foram sempre observadas do ponto de vista marxista.

“Em segundo lugar, pode-se observar que as questões da dominação política e da exclusão social organizavam, em chave predominantemente marxista, o campo reflexivo sobre o catolicismo, o tema das classes e da dominação propriamente políticas estão totalmente ausentes dos estudos sobre os cultos afros” (Montero, 1999:341)

Oscar Calavia Saez postula que as religiões populares ou subalternas foram tratadas pela literatura como uma versão empobrecida de cultos mais sofisticados. A respeito disso, ele afirma que:

“A única alternativa real a esse paradigma não é mostrar a fluidez ou o hibridismo do popular, mas postular que a religião popular é a religião normal, não uma versão empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiência – algo que boa parte dos estudos sobre religião subalterna manifesta à revelia do paradigma em que se desenvolvem” (Saez, 2009:201)

O candomblé, considerado uma religião popular ou subalterna, sustenta esta relação com a igreja católica, como demonstra a história da prática, para poder coexistir na

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sociedade. Como o culto “popular” aos santos católicos era permitido, o candomblé disfarçou-se assim por muito tempo.

“Sabemos com Peter Brown (1980) que o que costumamos chamar de “popular” no contexto cristão não deve ser visto em função de um contraste entre “povo” e “elite”, mas de um conflito entre o clero letrado e as elites leigas, esse patriciado que quer prestigiar sua genealogia com o culto dos santos, e que tem, de resto, os meios para sufragá-lo: construir santuários, encomendar imagens, publicar hagiografias, sufragar festas suntuosas. O que se opõe à religião dos santos é a elaboração letrada (bíblica e doutrinária) de um setor dessa elite, o clero” (Saez, 2009:202)

Marcio Goldman observa a diversidade de influencias que compõem o candomblé ao tentar defini-lo em um artigo de 2005 sobre a diversidade de ontologias presentes na prática.

“Constituído, aparentemente, a partir do século XIX – ao menos tal qual como o conhecemos hoje -, o candomblé inclui, também, em maior ou menor grau, elementos de cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia. Pode-se observar, igualmente, uma bem marcada diversidade entre os diferentes grupos de culto, diversidade ligada à região da África de onde provém a maior parte do repertório de cada grupo, assim como às modalidades e intensidades de suas conexões “sincréticas” com outras tradições religiosas” (Goldman, 2005: 102-103)

De Martino se mostra novamente como uma possibilidade teórica inovadora no sentido em que apresenta uma nova abordagem da participação das classes subalternas nessas práticas. A esse respeito, Pompa introduziu uma parcela deste pensamento demartiniano em seu trabalho sobre o Pau de Colher, movimento messiânico “rustico”, considerado tão “marginal” pelas elites letradas do começo do século quanto o tarantismo e o candomblé.

A abordagem do autor traz a atenção para a questão da “crise” que caracteriza a possessão, tema central para o desenvolvimento desta pesquisa, e uma possível interpretação a partir do plano psicopátológico para este estado alterado do corpo e da mente, sem, no entanto, cair no redutivismo da “doença mental”.

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“Por outro lado, a comparação entre o tarantismo e os cultos africanos como o bori e o zar, e com os cultos afro-americanos conhecidos com os nomes de macumba, candomblé, santería e vodu, também se reveste de um especial interesse a partir de um outro ponto de vista porque estes cultos, assim como o tarantismo, também tiveram que passar pela interpretação naturalista que os “reduzia” à doença” (DE MARTINO, 1999:204)

A partir deste ponto me parece razoável que mergulhemos um pouco mais em profundidade no pensamento demartiniano, para então seguir a análise do candomblé como sistema mítico-ritual e técnica coreico-musical de cura da crise da presença, a partir dos dados etnográficos.

1.3 Crise da presença

A noção de realidade condenda4 em De Martino proporciona uma conjuntura específica para o aparecimento de crises. Viver em um mundo incerto e tomar consciência da fragilidade de sua presença leva o homem a questões para as quais pode não haver resposta e tal vulnerabilidade o deixa suscetível a crises existenciais. A noção de presença dopensador italiano vem do Dasein de Heidegger, e também das leituras de psiquiatria, chamadas por De Martino de “ciências da mente”, em Il Mondo Magico (2004 [1948]).

Uma participação efêmera na história ameaçada pelo perene e misterioso devir atiça o sujeito a questionar-se e, em alguns casos, desesperar-se diante do risco de não mais ser-no-mundo. Nesses casos identificam-se os indícios da crise que pode resultar numa perda ou alteração temporária da consciência.

De Martino procura investigar a fragilidade psíquica que essa situação gera no sujeito. Deslocar-se do olhar sociológico e se munir de fontes das ciências da mente, como o autor defende, pode resultar em uma interpretação mais rica das crises coletivas (De Martino, 2004). Para fazer um retrato coletivo de uma crise que se resolve em um horizonte meta-histórico comum, podemos compreender, de forma interessada e

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abreviada, a gênese das crises individuais que se encontraram e se resolverão nas técnicas sociais. Para isso, mais adiante, apresentarei as aproximações entre o postulado demartiniano e a “Eficácia Simbólica” levistraussiana. Por meio do exorcismo do “poder do negativo”, conforme o autor italiano descreve, a sociedade garante a presença atuante na história.

A crise da presença, conforme define o autor, é uma incerteza existencial de estar no mundo, de fazer parte da história, de estar inserido no curso dos acontecimentos e ter participação neles. O ser em crise é alguém que põe em cheque sua presença, alguém que está vulnerável a perdê-la no mundo e perder-se de si mesmo desse modo.

A relação do sujeito em crise com seu espaço e seu tempo são adversas no sentido em que ele não pode viver o aqui e o agora, pois perde a relação com o passado e com o futuro. O futuro se torna ameaça e o passado se perde em sua mente em processos psíquicos de fragilidade.

Em um artigo de 1956, intitulado “Crisi della presenza e reintegrazione religiosa”, De Martino já anunciava o argumento que defenderei aqui de que a depressão é um sintoma desta crise existencial que ele chamou de crise da presença.

"Da mesma forma, a depressão melancólica, com os seus sentimentos de culpa e monstruosas abjeção, contém uma forma inadequada de defesa interpretativa, que se manifesta precisamente estes sentimentos. Esta experiência é, certamente, fundada em uma impotência radical do ser-aí, mas tão pouco aberto a valores e história que às vezes pode assumir a forma de um ciclo naturalista, isto é, uma oscilação periódica entre depressão e mania (o chamado maníaco - psicose depressiva). O caso limite de defesa inadequada é o bloqueado vontade de estupor catatônico quando todos os conteúdos possíveis tornar-se perigoso e cada momento se torna perigoso para a presença. Em seguida, tem-se a reação patológica do bloco psíquico, ou a tentativa espasmódica de fazer-se prisioneiro de um conteúdo particular. Para manter esta prisão, todas as mudanças impostas do exterior são rejeitadas até o ponto de exaustão física, como em catalepsia, ou repetidamente espelhado, como em ecolalia ou eco-mimetismo” (De Martino, 2012:436-437)

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Tal argumentação nos permite a, talvez ousada, tarefa de atualizar a crise da presença para a sociedade contemporânea. Tarefa que o próprio autor iniciou no livro Furore,

Simbolo, Valore de 1962 e em La Fine del Mondo”, compilado de rascunhos publicado

após sua morte, em 1977, no qual ele analisa os apocalipses culturais. No inicio de sua obra, no entanto, De Martino, atribui esta crise, sobretudo a padrões de atraso de desenvolvimento em relação ao mundo moderno. Em “Sud e Magia”, de 1959, o autor caracteriza a crise na Lucania, região extremamente pobre do sul da itália, como devida à precariedade de bens e condições básicas de vida, o que ele chamou de “regime arcaico de existência” (De Martino, 1982:78). Neste mesmo texto sobre a magia no sul da Itália, De Martino define de forma mais elaborada o conceito de “crise da presença”. Para ele, a vida de um indivíduo na região da Lucania é marcada desde seu nascimento até a morte por fatos negativos, como a preocupação de sua mãe com a mortalidade infantil e suas experiências prévias com abortos espontâneos, por exemplo, que ele sintetiza na poderosa expressão “poder do negativo”. A partir da história da região e o drama existencial ali presente por todas as dificuldades de ordem socio-econômica, De Martino identifica a relação entre a historia daquela sociedade e a fragilidade da presença.

"Mais conclusivo torna-se o discurso analítico quando tentamos trazer o significado psicológico de quanto indicamos como “poder do negativo” no regime existencial lucano. Agora, este significado psicológico destaca um negativo mais grave do que a falta de um bem particular: destaca o risco da mesma presença individual se perder como o centro de decisão e escolha, e naufrague em uma negação que afeta a própria possibilidade de qualquer comportamento cultural" (De Martino, 1982:79)

Defensor de que a literatura psicanalítica poderia ajudar na interpretação das crises culturalmente apropriadas pelas técnicas de resgate e proteção da presença que são, ao mesmo tempo, individuais e coletivas, De Martino faz essa defesa ainda em Il Mondo

Magico, quando afirma que as ciências da mente nos fornecem as chaves para a

compreensão desses fenômenos. Essa bibliografia se faz presente em toda a obra demartiniana, na qual o autor recorre em diversos momentos a Freud, mas também a Jung (De Martino, 1977).

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A psicanálise para De Martino é uma importante ferramenta para compreender a crise, não a cura. O argumento demartiniano defende a ideia de se apoiar em uma literatura psicanalítica para compreender a crise e os diversos estados psíquicos dos quais o rito se apropria para promover a cura. Nesse sentido, a psicanálise ajuda a compreender a relação dialógica que os ritos mantêm com a crise, conferindo sentido a ela. Essa literatura não explica o rito, mas ajuda a compreender a “doença” para qual o simbolismo mítico ritual constitui a cura.

A busca de soluções mágicas é, para o autor, o reflexo da instabilidade da vida na região gerada pela falta de recursos e conexões históricas consistentes, como pertencer de fato a um Estado-Nação. No horizonte mágico, a fragilidade daquele povo ganha sentido encontra proteção contra o risco de não-ser-no-mundo.

"Em um regime de existência em que a força do negativo afeta o próprio centro de positividade cultural, isto é, a presença enquanto energia operacional, mantém valor e função o uso da potência técnica do homem, não no sentido profano de produzir os bens materiais econômicos, ou os instrumentos materiais para um melhor controle da natureza, mas no sentido de defesa do bem fundamental que é a própria condição de participação, por mais estreita que seja, na vida cultural" (De Martino, 1982:85)

A magia é, então, para De Martino uma técnica que protege a presença, criando ritualmente condições de participação na vida sociocultural. O sujeito que está em vias de perder essas capacidades – de se colocar socialmente – está em crise e ele mesmo, ou algum de seus próximos procura a magia como forma de solução do apuro. Nesse sentido, a presença, como já comentei anteriormente é coletivamente retomada. A magia não tem por finalidade eliminar o risco do mundo, mas fortalecer a presença e dar condições ao homem de ser-no-mundo, ainda que este mundo esteja em risco. Nesse caso, os riscos seguem representando riscos. Esses perigos, no entanto, são suportados pela presença mediante sua recuperação.

"Plano realístico e plano mágico da técnica não entram em contradição subjetiva um com outro porque a magia não tem exatamente como objetivo, como a técnica profana, a supressão deste ou daquele mal, mas a proteção da presença contra o risco de a crise existencial frente à manifestação do negativo" (De Martino, 1982:85)

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A crise existencial provoca pelo risco do devir pede uma técnica resolutiva que dê conta de alocar o devir num plano meta-histórico, para que ele se integre a uma sequência tradicional de fatos “sagrados”. Desse modo, o devir histórico deixa de ser uma ameaça desconhecida e torna-se uma ameaça conhecida e, portanto, passível de ser controlada. É a de-historificação:

"Em primeiro lugar, o plano funda um horizonte representativo estável e tradicionalizado no qual a variedade de riscos de uma possível crise individual encontra o seu momento da parada, de configuração, de unificação e de reintegração cultural. Ao mesmo tempo, o plano meta-histórico funciona como lugar de "de-historificação" do devir, isto é, como um lugar no qual, por meio da interação de modelos operacionais, pode ser recorrentemente reabsorvida a proliferação histórica do acontecimento, e aqui amputado sua negatividade atual e possível" (De Martino, 1982:85-86)

De Martino chama a possibilidade de estar na história como se aí não estivesse de de-historificação. Por meio da repetição ritualística de um modelo de crise e solução do tempo mítico, o sujeito e o grupo conseguem restabelecer-se enquanto presença no mundo em um regime protegido, para usar o termo demartiniano.

“Nessas culturas, a simbologia religiosa permite, ocasional ou institucionalmente, a de-historificação do devir, instaurando um regime protegido em que é possível "estar na história como se aí não se estivesse". Neste tempo, como que suspenso e sacralmente protegido, a execução do rito reatualiza os tempos míticos dos primórdios em que tudo foi decidido. À perda da presença, isto é, à alienação do ser, que o autor chama de "de-historificação irrelativa", contrapõe-se uma "de-historificação institucional", fixada numa ordem meta-histórica (mito), com a qual entra-se em contato através de uma ordem meta-histórica de comportamentos (rito)” (Pompa, 1998: 195)

Na repetição do modelo mítico, a presença é replasmada na medida em que a crise se torna história, ou seja, o sujeito vê na repetição ritual do mito sua crise já resolvida. A de-historificação não é a suspensão da historicidade (Pompa, 1998), mas a atuação histórica do mito em um regime protegido em que se pode passar da crise à cura.

Mancini observa que ao tomar a religião como dispositivo técnico – tema que será abordado no capítulo 2 - entende-se como o rito “reprograma” sus objetos (Mancini,

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