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Capítulo 1: o problema e o método

1.6 O mundo mágico demartiniano

Ernesto De Martino dedica a obra Il Mondo Magico, de 1948, a debater as questões da realidade dos poderes mágicos e considera este exercício fecundo para contribuir com a ampliação da autoconsciência humana. Para o autor, a ciência deve livrar-se de um pedantismo e ingenuidade que comprometem a seriedade do pensamento acadêmico.

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“Por meio do problema da realidade dos poderes mágicos, por meio da análise dos conceitos de natureza mágica e pessoa mágica, o pensamento é, de fato, constantemente chamados a lutar contra esta última Thule na qual o realismo ingênuo se refugia, que é a dualidade que opõe o indivíduo, enquanto o dado, a um mundo dos fatos naturais, considerados também como dados” (De Martino, 2004:62).

Aproximar-se então do que ele chama de mundo mágico requer uma pré-disposição a ampliar o método historicista – no sentido em que procura na história o sentido das práticas- em busca de elementos que contribuam para a ampliação da compreensão desses fenômenos.

“Não se trata, então, de renovar a recorrente impotência da etnologia, que se limita a aplicar, em sua esfera própria, os princípios e os resultados de certas tendências especulativas. Tampouco se trata de olhar para mundo mágico como se já se estivesse em posse de um código metodológico pré-formado, e imaginando que se deva apenas fornecer a execução material, em um novo lugar, de um método de trabalho que já deu boas provas da sua adequação em outros setores da compreensão cultural, o que, portanto, levaria a supor que seria igualmente bom sobre o magismo. Esta abordagem denotaria mais zelo de neófito que maturidade histórica, mais ingenuidade e pedantismo acadêmico que seriedade de pensamento” (De Martino, 2004:63)

Para compreender os fenômenos mágicos, De Martino realiza uma profunda análise da vasta bibliografia etnográfica disponível na época. Não percorremos aqui todo o caminho trilhado pelo autor, mas nos ateremos apenas a algumas conclusões a que chega para embasar as posteriores argumentações desta pesquisa.

A compreensão de que o “mundo como dado” não é uma ideia universal, enraizada culturalmente em todos os povos, me parece a chave para compreender certas nuances da cultura, como os problemas dos poderes mágicos, por exemplo, e a vulnerabilidade psíquica que pode levar os indivíduos a crises nas quais a realidade é posta em cheque. Desafiar a consistência do “real” só seria possível num mundo no qual o real fosse passível de questionamento. Para De Martino, como demonstrarei a seguir, o mundo não é dado, no mundo mágico a realidade é uma realidade condenda, ou seja, uma realidade em feitura, em constante fundação.

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“No mundo mágico, a individuação não é um dado, mas uma tarefa histórica, e o ser-no-mundo é uma realidade condenda. Daí um complexo de experiências e de representações, de medidas protetoras e práticas, que expressam ora o momento de risco existencial mágico, ora o resgate cultural, e que formam, em dramática polaridade, o mundo histórico da magia. A própria presença pessoal, o ser-no-mundo, a alma, "foge" de sua morada, pode ser "pega", "roubada", "engulida", etc.; é um pássaro, uma borboleta, um sopro; ou ainda deve ser "protegida", "recuperada"; ou mesmo deve ser "mantida", "fixada", "localizada"” (De Martino, 2004:141)

A garantia do “estar no mundo” é, portanto, um produto cultural. Na civilização ocidental cristã temos por um lado o cristianismo que garante com a narrativa da salvação a presença do homem, de outro, a ciência, que supostamente garante sua presença pelo conhecimento e controle do mundo.

“Se a crença e a prática do Turik nos parecem "supersticiosas", é porque as comparamos indevidamente (anti-históricamente) com o "estou aqui" determinado e garantido do nosso mundo cultural: elevamos dogmaticamente a modelo válido para todas as formas culturais o nosso modo histórico de existir como presenças individuais, nossa experiencia occidental (relativamente recente) de encontramo-nos solidamente idénticos mesmo na diversidade de conteúdos. De fato, a respeito deste modo histórico de existir, a crença e a prática d o turik não tem fundamento real e se coloca em uma superestrutura arbitrária, decretamos que se trata de uma superstição. Na verdade, nossa soberba cultural nos fecha aqui ao drama existencial mágico e nos impede de compreender seus temas culturais características” (De Martino, 2004: 141-142) De Martino coloca aqui novamente a necessidade do pesquisador reconhecer o lugar desde onde realiza sua observação para não cair no lugar comum de universalizar conceitos historicamente calcados localmente. Por conta de nossa formação cultural histórica cristã, a primeira vista, não nos parece razoável questionar a realidade da presença. Desse modo a crise da presença seria uma característica particular legada aos doentes. A relação do homem ocidental moderno com aquilo que chamamos de natureza, ou mundo exterior, é uma relação de inação: o homem dotado de autoconsciência domina e usufrui do mundo objetificado. Quando o sujeito rompe a

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distinção prevalente entre o homem e o mundo exterior, há aí uma crise da presença, um momento de fragilidade psíquica em que a autoconsciência pode se perder momentaneamente e deve ser resgatada.

“Derruba-se a distinção entre a presença e o mundo que está presente: o sujeito, em vez de ver ou ouvir o sussurro de folhas, se torna árvore cujas folhas o vento agita; em vez de ouvir a palavra , se torna a palavra que escuta, etcétera” (De Martino, 2004:137)

Essa análise permitiu a De Martino compreender no tarantismo a relação dos atarantados com o próprio animal, a aranha. A aranha e o homem deixam de ser seres distintos e independentes e passam a ter uma relação. O homem em relação ao mundo é um homem em risco, em crise. É preciso que esse homem tenha controle do mundo para que sua presença esteja garantida.

“Para esta resistência da presença que quer ser, o colapso da presença se torna um risco preso em uma angustia característica, e para a reconfiguração deste risco, a presença se abre para a tarefa de seu resgate mediante a criação de formas culturais definidas. Para uma presença em colapso sem compensação, o mundo mágico ainda não apareceu; para uma presença resgatada e consolidada, que já não percebe o problema de sua instabilidade, o mundo mágico já desapareceu” (De Martino, 2004:139)

O mundo mágico é a cultura na qual há a possibilidade de resgate da presença pelo uso de técnicas que, a partir de um estado de vulnerabilidade ao mundo, reintegram o homem à sociedade e, ao mesmo tempo, reintegram o mundo. Em um mundo de realidade em construção, a presença do homem e a natureza têm momentos de maior relação e podem fundir-se. Para De Martino, desde o pensamento grego há uma tendência a colocar a pessoa no centro do mundo, mas somente com o advento do cristianismo essa empresa é, de fato, iniciada.

“tal consciência da autonomia da pessoa tem, no curso da história da civilização ocidental, uma espécie de vértice ideal, que é a descoberta da unidade transcendental da autoconsciência. Enquanto na reflexão especulativa, o assunto foi entendido no sentido psicológico, como consciência para a qual são dados determinados conteúdos, ficavam impedidas todas as vias para fundar a "possibilidade" de a autonomia do indivíduo” (De Martino, 2004:226)

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O homem detentor de autoconsciência e conhecimento do mundo estaria pois garantido? Este sujeito seria a priori integrado ao mundo sem a necessidade de técnicas para desabrigar sua presença e coloca-lo como protagonista de sua história social? De Martino anuncia que o princípio supremo da unidade transcendental comporta um risco supremo para pessoa.

“Este risco surge quando a pessoa, ao invés de conservar a própria autonomia a respeito dos conteúdos, abdica dessa tarefa, deixando que os conteúdos se façam valer fora da síntese, como elementos dominados, como dados no sentido absoluto. Mas quando aparece tal ameaça, é a própria pessoa que corre o risco de disolver-se, desaparecendo como presença, precisamente por não ser compatível com elementos e com dados” (De Martino, 2004: 228)

A relação do homem com o mundo representa em muitos níveis um risco. O risco de perder a presença no mundo mágico é assimilado e combatido com o uso das técnicas de resgate.

“No limite, qualquer relação da presença com o mundo torna-se um risco, uma queda de horizonte, um não-manter-se, um abidcar sem compensação; algo semelhante à situação que força o ezquisofrênico a uma imobilidade estatuária de estupor catatônico, ou seja, a vontade travada, espasmódicamente fechada ao assédio do mundo. A magia retoma este declive e se opõe definitivamente ao processo de dissolução. Operando uma série de distinções mediante as quais o risco é identificado e combatido” (De Martino, 2004: 235)

A cultura ocidental coloca o homem em uma posição de alteridade em relação ao seu próprio mundo. Isabelle Stengers e Ilya Prigogine colocam na introdução de “A nova aliança” a afirmação de Jacques Monod que, em uma clara alusão bíblica, diz: “A velha aliança rompeu-se; o homem sabe finalmente que está só na imensidão indiferente do Universo que emergiu por acaso” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:2). Para Stengers e Prigogine, mais que uma interpretação de certos resultados da biologia, Monod anuncia o desenvolvimento de três séculos da “ciência clássica” que conclui “que o homem é um estranho no mundo em que ele descreve”.

Se no mundo mágico a comunicação com a “mundo natural” se dá por meio da magia, no mundo moderno, a ciência se encarregou de ser sua intérprete. Talvez por sua história menos distante e melhor registrada, vemos com facilidade os meios pelos quais

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a ciência se construiu como categoria. Stengers e Prigogine dizem que “a ciência (clássica) podia ser descrita como uma tentativa de comunicar com a natureza, estabelecer com ela um diálogo, donde se destaquem, pouco a pouco, perguntas e respostas” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:2). Os autores seguem sua definição colocando mais argumentos para que seja possível, segundo eles, diferenciar o homem de ciência moderna de um mago ou dum feiticeiro.

A ciência busca na sua experimentação algo além da interpretação da natureza, mas sim criar métodos de interferir em seu funcionamento, assim como a magia busca o diálogo como o mundo para, por meio de sua compreensão, realizar o resgate da presença em risco.

“A experimentação não supõe a única observação fiel dos fatos tais como se apresentam, nem a única busca de conexões empíricas entre fenômenos, mas exige uma interação da teoria e da manipulação prática, que implica uma verdadeira estratégia.” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:3).

A ascensão do pensamento científico em oposição à religião cristã colaborou para reduzir o pensamento religioso, posteriormente universalizado pela tradição das ciências sociais, a um modo equivocado e menor de compreender a realidade do mundo físico. A oposição da Igreja à produção científica, sobretudo ao questionamento científico, considerado herético, colaborou para que Igreja e ciência se estabelecessem como rivais e incompatíveis.

Stanley Tambiah defende que tanto ciência quanto religião são construções históricas e que os conceitos são definidos a posteriori de uma certa prática. Ou seja, não há um conjunto de práticas e ideias que nascem como ciência, ou religião, ou qualquer outra categoria , mas a uma certa distância, essas ideias são chamadas ciência, religião, etc.

“Ora, não se pode dizer que os antigos gregos desenvolveram esta mentalidade científica de uma só vez ou de forma generalizada. Os gregos não tinham a concepção de "ciência", que pode ser considerada equivalente ao nosso próprio conceito de ciência que se desenvolveu no século XVII (e tornou-se atual, digamos, na Royal Society de Londres por volta de 1645)” (Tambiah, 1990:9) Isto quer dizer que, num primeiro momento, a ciência não se opõe, e sim surge no interior do próprio pensamento religioso (ou mágico). É somente no século XVII que há uma separação formal entre essas categorias. Uma separação historicamente construída.

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“A primeira vez em que um escrito grego - na verdade, alega-se, na literatura ocidental existente - quando um conjunto de crenças foi explicitamente declarado mágico estava em um texto médico da última parte do quinto ou o início do quarto século A.C., o texto em questão era A doença sagrada. Ele pertencia ao Corpus Hippocraticum e seu objeto era a epilepsia” (Tambiah, 1990:9)

A possibilidade de encontrar uma verdade universal e de uma “natureza autômata” que funcionava independente da vontade de um Deus soberano fez da linguagem científica o meio mais eficiente de conhecer e compreender o mundo. A ciência clássica produziu então a imagem de uma natureza simples e passiva a um pequeno número de leis imutáveis. “A ciência moderna começou por negar as visões antigas e a legitimidade das questões postas pelos homens a propósito da sua relação com a natureza (...) A ciência moderna constitui-se como produto de uma cultura, contra certas concepções dominantes dessa cultura (o aristotelismo em particular, mas também a magia e a alquimia)” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:4).

“Durante muito tempo, o caráter absoluto dos enunciados científicos foi considerado como um sinal de irracionalidade universal” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:14).

O desenvolvimento da ciência do século XX e XXI, principalmente com a mecânica quântica, acaba ele mesmo por negar a ideia de uma natureza passiva sujeita a um pequeno número de leis. “As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:5). Essa evolução e constante movimento da ciência é uma ideia que não se apresenta com espanto. A hipótese de uma religião em movimento, ao contrário, é uma ideia que causa estranheza, já que pela lógica do que tentei demonstrar até aqui, a única evolução possível da religião seria a própria ciência. Tento argumentar aqui que estas hierarquias que parecem funcionar para efeitos de classificação perdem suas distinções na observação das práticas. Religião e ciência continuam a ser práticas distintas conectadas pela tentativa de comunicação com o mundo.

Para De Martino, o conceito de “estar no mundo” reintegra o indivíduo ao mundo físico, ou à natureza. Este pensamento encontra correspondências interessantes na antropologia

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contemporânea que se dedica a pensa na separação (ou, melhor, a não separação) entre sociedade e natureza (Latour, 1979; Wagner,1981; Stengers,1984). De Martino encontra no rito uma técnica que reintegra o homem no mundo, num mundo que compreende sociedade e natureza já em seus escritos dos anos 1950, quando esta era uma hipótese inovadora. O regime protegido para o autor é o que permite uma alteração da ordem “dada” para a compreensão dessa ordem num tempo outro pelo indivíduo “como se aí não estivesse”.

“No mundo mágico a alma pode se perder no sentido de que na realidade, na experiência e na representação ainda não é dado, mas é frágil presença (para expressarmos com uma imagem) pode engolir o mundo e fazer desaparecer” (De Martino, 2004:140)

De Martino aponta em “Il Mondo Magico”, a necessidade de recorrer às ciências da mente para que os praticamente dessas técnicas, em particular aqueles que expressam alguma sensibilidade extra-sensorial, não sejam colocados apenas como um retrato do bizarro, ou pior, deixados à parte das observações já que não se pode explicá-los.

Analisar a religião como técnica é, de fato, cotejar os dados de pesquisa e observação a partir da eficácia. Como bem demonstrado por De Martino, por meio de uma exaustiva análise bibliográfica, há uma série de observações que comprovam o “poder” de certas práticas “mágicas”.

“De fato, o conjunto de resultados obtidos na maioria dos casos apresentaram um caráter que não pode ser explicado pelo acaso. Além disso, em um grande número de testes não explicáveis pela sorte, deve-se descartar completamente o uso de vias sensoriais normais” (De Martino, 2004:105).

A busca por fontes alhures à antropologia pode ser um caminho frutífero ao antropólogo que busca uma compreensão ampliada dos fenômenos que estuda. Esta pode ser também uma ferramenta valiosa para escapar de certa linha de pensamento que vê no ritual um sinal de atraso e falta de uso “correto” da razão.

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