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Capítulo 1: o problema e o método

1.8 O risco no mundo contemporâneo

O sociólogo Ulrich Beck nos traz aos dias atuais ao relatar a sensação de estar em risco. “O risco é ambivalência. Estar em risco é a maneira de ser e de governar no mundo da modernidade; estar em um risco global é a condição humana no início do século XXI” (Beck, 2008). Para ele, a sociedade moderna é caracterizada pelo constante debate sobre os riscos que a própria sociedade cria, ou seja, a sociedade representa um risco para si mesma. O risco não é a catástrofe senão sua antecipação, um permanente estado de espera pela tragédia.

Beck faz ainda uma interessante afirmação para o problema da pesquisa aqui proposta. “O risco aparece no cenário mundial quando Deus o deixa. Riscos pressupõem decisões humanas. Eles são, em parte, as consequências positivas, em parte negativas, face das consequências das decisões humanas e intervenções” (Beck, 2008). Para ele, os riscos se tornam sólidos na condição dos homens como senhores de si. Dessa forma, ao sentir-se agido pelo mundo, para usar a expressão de De Martino, sob um risco que sua racionalidade não pode resolver, como o de perder a presença no mundo, o sujeito busca no ritual a segurança desejada.

Se De Martino afirma que o exemplum mítico dá garantia de resolução da crise, encontramos em Beck pistas de uma iminente crise no mundo contemporâneo. “Se a destruição e os desastres são antecipados, então isso produz uma compulsão para agir” (Beck, 2008). Beck afirma que a antecipação do desastre é uma força propulsora de

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ação, o sujeito se vê sugerido a agir para se proteger. A ação, no entanto, não elimina o risco por isso deve ser regular. Proteger-se é uma atividade periódica.

Penso nos vírus de computador como exemplo hipotético: a cada e-mail aberto que contenha um anexo, o software pergunta ao usuário se ele correrá o risco de abrir aquele arquivo. Ter o antivírus instalado não elimina o risco, apesar de deixar o usuário com a sensação de proteção. A ameaça da perda da presença é uma constante.

Beck vê a ameaça crescente na medida em que o homem ganha autonomia no mundo. Para De Martino, Stengers e Prigogine, o risco é pelo oposto, o homem nunca conseguiu uma autonomia, ou uma emancipação da natureza. Pelo contrário, a ciência moderna começa a esboçar um diálogo com a natureza que pouco tem de autônomo. E assumir os riscos faz parte de um processo que, para Stengers e Prigogine, faz sentido. Se retomarmos De Martino com sua visão da religião como técnica vemos uma sociedade que se apropria do risco para resolvê-lo, não o evita.

“Como Jacques Monod nos anunciava, chegou o tempo de assumir os riscos da aventura dos homens; mas, se podemos fazê-lo, é porque, doravante, é esse o modo da nossa participação no devir cultural e natural, é essa a lição que a natureza enuncia quando a escutamos. O saber científico, extraído dos sonhos de uma revelação inspirada, quer dizer, sobrenatural, pode descobrir-se hoje simultaneamente como “escuta poética” da natureza e processo natural nela, processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo. Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:226).

O risco de perder-se no mundo torna-se força propulsora para o resgate da presença. Ao assumir e viabilizar a perda da presença em um regime protegido, o ritual garante a coexistência dos sujeitos com o risco, de modo a dar sentido a ele. O risco deixa de ser a ameaça de desaparecimento e torna-se contraponto da presença. Um contraponto com o qual a própria presença dialoga e, por meio desse diálogo, se reafirma.

Anthony Giddens aponta este diálogo do homem com a natureza como um fator de risco em si mesmo. Segundo ele, em O Mundo na Era da Globalização, de 1999, não seria

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possível afirmar se a variação de temperatura que temos experimentado nas últimas duas décadas são fruto da interferência do homem no clima mundial, mas devemos considerar esta possibilidade. Temos atualmente mais evidencias para acreditar que sim, as ações humanas interferem diretamente no clima, para Giddens, no entanto, em 1999, tal fato deveria ser tomado como possibilidade. O autor aponta essa interação como um fator de risco.

"Podemos compreender estas questões se considerarmos que todas elas envolvem risco. Espero persuadi-los de que esta ideia, simples na aparência, põe a descoberto algumas das características do mundo em que estamos a viver" (Giddens, 2006:31)

Em uma breve análise do próprio termo “risco”, Giddens nos dá ainda algumas ideias chave para a interpretação da crise da presença nos moldes demartinianos. Quando me aproprio do conceito de risco para argumentar que a fragilidade da presença identificada pelo autor italiano na análise do tarantismos pode ser um ponto de partida para a compreensão do candomblé brasileiro preciso explicar aqui que a ideia de risco é um conceito recente, como mostra Giddens. Tento neste trabalho juntar peças até este momento soltas para apontar certa coerência entre o pensamento demartiniano e, por um lado, uma recente corrente de pensamento crítico a respeito da chamada modernidade tardia (Giddens, Beck) e, por outro, a perspectiva às vezes chamada “construtivista” de Latour, Stengers e Prigogine, na empresa de contribuir para o pensamento antropológico dos fenômenos que chamamos religiosos.

“Chegados a este ponto, deparamo-nos com algo verdadeiramente interessante. Postos de lado alguns contextos marginais, na Idade Média não existia o conceito de risco. E nunca existiu na maioria das culturas mais tradicionais, tanto quanto me é dado saber. A noção de risco parece ter adquirido expressão durante os séculos XVI e XVII, e começou por ser usada pelos exploradores ocidentais quando partiam para as viagens que os levaram a todas as partes do mundo. A palavra "risco" parece ter chegado ao inglês através do espanhol ou do português, línguas em que era utilizada para caracterizar a navegação em mares ainda desconhecidos, ainda não descritos nas cartas de navegação. Por outras palavras, na origem, a palavra incluía a noção de espaço. Mais tarde, quando usada pelo sistema bancário e em investimentos, passou a incluir a noção de

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tempo, indispensável para o cálculo das consequências prováveis de determinado investimento, tanto para os credores como para os devedores. Acabou por se referir a uma enorme diversidade de situações onde existe a incerteza" (Giddens, 2006:32)

Neste breve parágrafo encontramos uma complexa ideia também trabalhada por De Martino, como espero ter demonstrado anteriormente. A relação que Giddens aponta entre o risco ter sido historicamente relacionado ao espaço e ao tempo, ou melhor, dizendo, às incertezas que conectam espaço e tempo, é bastante semelhante à ideia de fragilidade da presença de De Martino, que coloca a técnica do simbolismo mítico-ritual como um tempo e espaço protegidos para o resgate da presença. Se Giddens nos aponta a incerteza como essência do risco, também De Martino coloca a incerteza das possibilidades como fragilidade da presença sempre em risco de perder-se.

Naturalmente não tento produzir aqui uma concordância fictícia entre os autores. Giddens aponta o risco como exclusivo das sociedades modernas, da era industrial, orientadas para o futuro (ver Giddens, 2006:33). Ele vê as sociedades tradicionais conectadas ao passado e argumenta que situações que na atualidade entendemos claramente como risco eram entendidas como “destino”, ou “vontade dos deuses”.

"Na cultura tradicional se alguém sofre um acidente ou, pelo contrário, se alguém prospera, bem, são coisas que acontecem, ou fez-se a vontade de Deus. Houve cultura que negaram pura e simplesmente que o acaso pudesse existir. Os Azande, membros de uma tribo africana, acreditam que qualquer desgraça é sempre o resultado de um bruxedo. Se uma pessoa cai, por exemplo, a queda foi provocada por alguém que lhe fez magia negra" (Giddens, 2006:33)

Como demonstrado anteriormente, não avaliamos o simbolismo mítico-ritual, ou a religião se preferir, como um conjunto de crenças, já que este nos parece um conceito enfraquecido, dados os argumentos dos autores que já foram aqui citados (De Martino, Mancini, Asad, Montero e outros). Neste ponto nos distanciamos de Giddens no sentido de focar nas práticas rituais e considerar algo fora das preocupações do autor: a fragilidade psíquica. De Martino, ao considerar uma certa vulnerabilidade psíquica que coloca a presença em risco, nos aponta um caminho novo de pensamento.

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Ao considerar o risco de perder a presença no mundo como resultante de um processo histórico da formação social associado a uma vulnerabilidade psíquica, De Martino rompe algumas barreiras conceituais que no forçam a entender os processos técnicos de resgate da presença em um sentido mais complexo em que não cabe reduzir a magia à crença.. O resgate da presença, ou a salvação do risco de perder-se no mundo observado pelo italiano em diversas sociedades tradicionais e analisado em Il Mondo Magico (1948), nos dá argumentos para observar a ocorrência de tais fenômenos no mundo moderno, como ele fez em La Terra del Rimorso (1956). Por isso, a compreensão do conceito de risco no mundo moderno nos é de grande valor, ainda que Giddens desconsidere o risco naquilo que De Martino chamou e “mundo mágico”.

O risco na compreensão de Giddens se afasta ainda mais da noção de risco em Stengers, que vê na consciência do acaso na natureza o maior risco do homem. Para Stengers, a natureza como possibilidade tira o homem de seu eixo de controle e o coloca em risco. Já para Giddens, a emancipação da natureza gera risco no sentido em que o homem é autônomo e responsável por se colocar no futuro. Os autores aqui se distanciam ao mesmo tempo em que se aproximam. Ambos, ao lado de De Martino, reconhecem o desejo do homem de protagonizar sua história e estar “garantido” no mundo. Stengers o faz pelo caminho do reconhecimento da natureza em diálogo, da qual o homem faz parte. Giddens argumenta com a autonomia do homem em relação a uma natureza exterior, da qual o homem é observador. Giddens entende o risco, diferentemente do perigo, como algo calculado que, para ele, é fruto do mundo moderno.

"O risco é a dinâmica estimuladora de uma sociedade empenhada na mudança, apostada em determinar o seu próprio futuro, em vez de depender da religião, da tradição ou dos caprichos da natureza." (Giddens, 2006:34)

A compreensão do homem exterior à natureza, embora o argumento que referencia este estudo seja contrário me parece importante, sobretudo para compreender como a noção de risco está associada ao diálogo do homem com o mundo físico.

"A nossa sociedade vive pra lá do fim da natureza. o fim da natureza não significa, como é óbvio, que o mundo físico e os processos físicos tenham deixado de existir. Refere-se ao fato de agora existirem poucos aspectos do

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ambiente material que nos rodeia que não tenham sido afetados pela intervenção humana" (Giddens, 2206:36)

A ideia apresentada acima por Giddens nos dá pistas de como o risco da presença é perene na sociedade contemporânea. Se é verdade, como diz Giddens, que chegamos ao fim da natureza e todo o mundo físico foi tocado pelo homem, uma corriqueira enchente, comum em grandes centros urbanos é como disse Pompa “um fim de mundo”. O transbordar de um rio que invade as casas e faz as pessoas perderem móveis, por exemplo, representa para o mundo urbano o fim de uma ordem estabelecida pelo homem em oposição à natureza. Comumente escutamos comentários sobre desastres naturais como sendo uma “vingança”, ou “resposta” da natureza às ações humanas. O diálogo com o mundo põe em risco a ordem estabelecida, a presença do homem neste mesmo mundo. Se a ciência moderna instituiu a ideia do homem como intruso em seu próprio mundo, como bem coloca Stengers, a insistência da natureza em não acabar ameaça o mundo constituído pelo homem.

Se a contribuição de De Martino em Il Mondo Magico é nos apontar que há sociedades em que o mundo não é dado, proposta deste ensaio é extrapolar este conceito demonstrando como a realidade está em permanente construção. Aproprio-me nesta pesquisa das ideias de Stengers para colocar a ciência em transformação como uma fonte de relacionamento de possibilidades como o mundo exterior e não de controle e emancipação. Até este momento, tentei articular os autores citados na tentativa de demonstrar como o mundo não é um dado também na sociedade contemporânea ocidental cristã e científica. O mundo exterior está em permanente transformação e diálogo com o homem que dele faz parte e não “está aí” apenas como observador, mas como participante de um diálogo, ainda que involuntário.

“A civilização humana e a história são sempre refundadas - hoje como em qualquer mais remoto ou arcaico "então" - e, assim, elas vão nascer no futuro até que a palavra "homem" faça sentido, em virtude do poder de categorização de acordo com detemrinadas formas ou valores. Além disso, a presença cultural, isto é, estar-na-história [l'esserci nella storia], continua a ser definido precisamente por esta energia de categorização" (De Martino, 2012:435-436 [1956])

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Cabe aqui dizer que também Michel Foucault se dedicou a pensar o que chamou de “dispositivos de segurança”. Para Foucault o surgimento do mundo urbano está diretamente relacionado à gestão dos riscos. O filósofo argumenta que os dispositivos de segurança são as ferramentas essenciais para manter a ordem no meio urbano. Os governos, segundo Foucault, mantém a ordem social por meio da garantia de segurança. Essa ideia surge em um momento oportuno quando argumentamos que o risco de perder a presença no mundo mágico demartiniano é provável no mundo urbano moderno.

"Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade a que ela responde - anule, ou limite, ou freie, ou regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dispositivos de segurança" (Foucault, 2008:61)

A regulação da presença no mundo por meio de rituais compostos de proibições e prescrições é a função dos simbolismos mítico-rituais aqui mencionados: o tarantismo e o candomblé. Foucault diz ser fundamental a relação que a segurança tem com a realidade. Se tomarmos a realidade condenda de De Martino, temos aqui uma segurança igualmente condenda, ou seja, a ser sempre regulada. Se a segurança de Foucault trabalha no plano da realidade e entendemos a realidade como construção histórica e não como dado, temos um importante aspecto que colabora no pensamento da técnica como protetora da presença, isto é, a técnica como segurança da presença.

"Enfim, a segurança, ao contrário da lei que trabalha no imaginário e da disciplina que trabalha no complementar da realidade, vai procurar trabalhar na realidade, fazendo os elementos da realidade atuarem uns em relação aos outros, graças e através de todo uma série de análises e de disposições específicas" (Foucault, 2008:62)

Claramente focado em uma compreensão política, Foucault aborda neste curso de 1978 diversos exemplos para explicar os dispositivos de segurança, como a escassez de alimento e a epidemia. Evoco-o aqui apenas para ressaltar o argumento de que a preocupação com a segurança e com a solução das crises estão apontadas de diferentes

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formas por pensadores da sociedade. De Martino, Prigoggine e Stengers, Beck, Giddens e Foucault pensam o risco cada um a seu modo.