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Capítulo 2: A análise

2.2 O atabaque comanda o ritual

Há uma figura de linguagem na língua portuguesa, a personificação, que consistem em atribuir características humanas a objetos e animais. Assim aprendemos, com exemplos como: “o céu está mostrando sua face mais bela”, e “o cão mostrou grande sisudez”. Não tendo o céu uma face, e o cão, sisudez, o recurso também é chamado de personificação. Ou seja, atribuir características e habilidades das pessoas a outros seres. Para ser antropologicamente coerente, quero colocar aqui que entenderemos os seres inanimados dos manuais de língua portuguesa, como “entidade não-humanas”. Segundo o linguista Orlando Pires, a prosopopeia dá vida e sentimentos humanos a coisas inanimadas.

Apresento este recurso linguístico porque ele é amplamente usado nos relatos de vida dos filhos de santo do candomblé. O recurso demonstra, na linguagem, as sensações, muitas vezes difíceis de descrever, dos adeptos do candomblé ao viverem suas crises e ao contar as histórias que antecedem sua adesão à religião.

Em qualquer descrição dos rituais, a figura de linguagem é usada e, como veremos a seguir, o recurso não representa um simbolismo, mas as entidades não-humanas de fato, têm vida no candomblé. O atabaque chama as entidades, por exemplo.

Na ocasião da morte de um ogan de um terreiro amigo, uma conversa entre filhas de santo me chamou a atenção. O diálogo seguiu mais ou menos assim:

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- O atabaqueiro lá de cima morreu. Da Mãe Cleusinha.

- Vixe. O povo lá deve estar triste. E agora fica muito sem trabalho.

- Acho que lá eles fazem diferente. Na minha outra casa a gente chegava a ficar um ano fechado quando era assim.

- Lógico, o tabaqueiro é o mais importante, sem ele não tem festa. Ele que levanta ou derruba a festa.

O diálogo demonstra a centralidade do atabaque nos ritos do candomblé. O candomblé se faz com objetos materiais. Todos os objetos têm sua importância e estão ligados a uma lenda, a um itã. Seria um exercício possível e curioso descrever todo um ritual a partir dos objetos. A danças do candomblé é uma coreografia de pessoas e de coisas. A orixá Oxum tem uma dança em que coloca uma série de pulseiras nos braços, que em muitos terreiros se faz simbolicamente, somente indicado o gesto de colocar as joias, mas há terreiros em que Oxum coloca, de fato, as pulseiras. Depois de encher os braços com muitas delas e mostra-las vaidosa a toda gente, Oxum as joga para longe. Já me disseram que nesta dança Oxum quer mostrar que pode ficar bonita com ou sem as pulseiras, transmite a mensagem de que não precisa dos adereços para estar bonita. Xangô dança com fogo na cabeça e carrega um machado, Iansã com uma quartinha de água, Oxumarê entra em uma bacia com água e cospe para o alto, Ogum tem suas armas, espadas, Omulu carrega cabaças e dessa forma cada orixá tem seus objetos. O terreiro é repleto de coisas físicas, os assentamentos são as representações, ou melhor dizendo, as porções físicas dos orixás.

O objeto mais importante de um terreiro, porém, são os atabaques. São os atabaques, como disse a filha de santo, que conduzem as festas. As cantigas dos orixás são acompanhadas de toques específicos dos tambores que podem ser tocados com as mãos ou com varas. Além dos atabaques, toca-se também o agogô e o adjá, que não tem a função de um instrumento musical, mas é tocado pelas equedes e por pessoas mais graduadas no candomblé para “chamar”, conduzir e acompanhar os orixás em suas danças.

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Os atabaques são frequentemente chamados de curimba, palavra que pode significar o ritual em si. Geralmente há um número ímpar de atabaques, três ou cinco, sendo três o mais tradicional. Ogan é o nome que se dá aos homens não-rodantes – que não viram no santo – e tocam os atabaques. O ogan alabê é o mais graduado entre eles e acumula a função de puxar as cantigas. Diz-se que os ogans são o segundo cargo na hierarquia do candomblé.

Nas ocasiões de festas, os ogans chegam a passar o dia ensaiando para saber cada toque que o pai de santo possa chamar. Cada orixá tem suas cantigas que, por sua vez, têm seu jeito de ser tocadas. De Martino observa no tarantismo um status parecido dos músicos.

“A importância do simbolismo coreico-musical no tarantismo dava aos músicos o papel de exorcistas, médicos e artistas, já que o sucesso da “exploração” musical e a cura eficiente dependiam de sua intervenção e sua habilidade para tocar a música “adequada”” (De Martino, 1999: 154)

Os atabaques são os condutores do ritual porque são eles que induzem ao transe, chamam os orixás e estimulam a possessão. Gilbert Rouget dedicou um extenso volume à relação da música com o transe. E a primeira diferença que faz notar é uma conceitualização de êxtase, transe xamânico e o transe de possessão. Para ele, o êxtase é um estado de silêncio, imobilidade e solidão. Já o transe é uma crise evidente marcada pelo movimento. O transe xamânico é, segundo o autor, uma viagem ao mundo dos espíritos. O transe de possessão é quando um espírito passa a agir no corpo do possuído. No caso do candomblé, o transe de possessão é a crise recorrente no ritual.

“O transe si, em outras palavras, o período durante o qual o sujeito se instala, por assim dizer, na sua outra persona e coincide totalmente com ela, tem, pelo contrário, uma relação bastante estável com música. Em sua forma mais plena, e refiro-me à forma que exibe durante as cerimônias públicas de possessão, o transe consiste, na maioria das vezes, em dançar ao som da música que pertence à divindade, ou, se existem várias pessoas, ao som da música que corresponde coletivamente a todas as divindades presentes” (Rouget, 1985:323)

A música, para Rouget, opera três papeis fundamentais nas cerimônias. O primeiro é criar a atmosfera adequada para que os adeptos se conectem emocionalmente com os

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outros membros e o ritual. O segundo é conduzir os adeptos à uma “mutação” de seus estados. E o terceiro é a condução da manifestação do transe.

A condução do transe é um ponto fundamental para De Martino, já que o simbolismo mítico-ritual é o controle da crise, ou seja, as manifestações que parecem descontroladas ganham uma razão de ser na prática ritual. A técnica ritualística molda as crises espontâneas em modelos culturalmente aceitos e, por isso, passíveis de resolução por meio da repetição do exemplum mítico.

Toda a coreografia do ritual organiza a crise de modo que ela possa ser celebrada em segurança, em um momento de suspensão do tempo histórico que o autor chama de “regime protegido”. O ritual é regrado em completude.

Analisando os rituais do que o autor chamou de “mundo mágico”, De Martino esclarece que o uso das técnicas rituais são intencionais e controlados.

“A análise das técnicas mágicas para produzir as condições do transe parece, pois, ter como finalidade o enfraquecimento ou atenuação do ser-no-mundo, a dissolução da consciência como presença. Mas esta é apenas uma aparência, um engano da abstração própria de nossa análise. Mais uma vez, o risco que expõe o "estou aqui" é, mais um momento do drama existencial mágico: no outro momento se dá o resgate do ser- no-mundo, a afirmação da presença, a articulação de um mundo significativo no qual se está presente” (De Martino, 2004:155-156)

A perda da presença é, segundo De Martino, uma “de-historificação irrelativa”, ou seja, a perda por si só, pura descarga emocional e psicopatológica, doença. Quando esta ocorre em um contexto ritualístico planejado, protegido, se torna “de-historificação institucional”: é a cura.

“A técnica de "de-historificação mítico-ritual" pode de fato ser considerada uma aplicação orientada e instrumental da capacidade da mente humana de funcionar em diferentes registos ou regimes de consciência. Esta técnica seria, na verdade, uma variação entre múltiplas formas históricas e culturais possíveis, de exploração de determinados recursos psíquicos bastante espontâneos nos homens e podem ser chamados para a cultura para para fins de construção, de

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preservação. Esses recursos incluem a capacidade de de-realização se si ou parte do si, à qual o eu é submetido, por exemplo, para fins terapêuticos, no contexto do médico e da hipnose” (Mancini, 2008: 58-59)

Mancini aponta a sofisticação do pensamento demartiniano neste trecho, ao relacionar a compreensão do autor de que o uso da técnica de de-historificação é uma aplicação particular historicamente localizada da cultura. A de-historificação institucional é eficaz porque se apoia em um horizonte metahistórico compartilhado.

À distinção da de-hisotorificação irrelativa e institucional, Marcello Massenzio dedica especial atenção no artigo “Il Problema Della Destorificazione” (1986).

“A de-historificação religiosa é uma instituição cultural absolutamente fundamental que, graças à peculiar dialética que a sustenta, permite a afirmação do plano histórico justamente por sua negação preliminar, de acordo com os diferentes modos, que emergem nas passagens citadas. A de-historificação irrelativa é a-dialética e de caráter natural: ela sinaliza a regressão à natureza sem compensação, a perda, sem resgate, da dimensão histórica. A primeira forma não deve ser entendida apenas como a antítese da segunda, mas também - e acima de tudo - como uma expressão da tensão coletiva para recuperar-remodelar a outra, como a resposta cultural solicitada pelo risco permanente representado pelo surgimento da outra” (Massenzio, 1986:24)

Ao analisar o tarantismo apuliano, De Martino encontra nos gregos uma chave para a compreensão da relação da música com a possessão. O antropólogo italiano busca na história da civilização ocidental uma certa referência estrutural do uso ritual da catarse musical. De Martino alerta que sua comparação faz sentido porque existiu um “complexo arcaico protomediterrâneo” (De Martino, 1999:239) que conecta a cultura apuliana dos anos 50 ao mundo grego antigo.

De Martino busca em Platão, em seus escritos sobre os cultos orgásticos, a chave para a interpretação da catarse musical no tarantismo.

“Platão, além de não confundir a loucura com o rito religioso, as desordens psíquicas com a ordem mítico-ritual dos cultos orgásticos, adverte que a ordem

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mítico-ritual se concentra na crise, imitando-a para liberta-la, para mudar de signo e conduzir à sua resolução” (De Martino, 1999:242)

É por meio da performance, ou seja, da coreografia musicada, que a crise é configurada, ganha forma e sentido. Em um anexo de La Terra del Rimorso, o etnomusicólogo que acompanhou De Martino em sua viagem etnográfica, Diego Carpitella, apresenta uma análise intitulada “O exorcismo coreico-musical do tarantismo”.

“'Módulo coreico-musical' significa técnica protetora em um contexto mágico-religioso; também significa proteção da crise por meio de modelos tradicionalizados de gestos, sons, imagens, ritmos e melodias; significa, acima de tudo, fidelidade cultural a certos modelos, que funcionan como instrumentos de evocação e controle admitidos socialmente que se põem em prática a cada vez que se desencadeia a crise do tarantismo. Crise, ritmo, melodia, imitação e resolução terapêutica: no tarantismo há um vínculo orgánico entre todos eles, conpõem um drama que desde a laceração inicial continua conquistando seu próprio fim. Em particular, a relação entre a crise e os sons adquire um enfático caráter de reciprocidade” (Carpitella in De Martino, 1999:345)

Como no tarantismo, o som tem uma característica de reciprocidade. A pessoa responde ao toque do atabaque que indica quais gestos, quais coreografias e quando os orixás devem se manifestar. Os adjás, tocados pelas equedes, produzem o som também capaz de “ordenar” o transe, conduzindo o orixá na direção em que deve dançar, por exemplo.

Carpitella afirma que a proteção da crise se dá por meio de gestos, sons, figuras, etc. que compõem um modelo tradicionalizado e aceito socialmente. Isto é, a crise que é tomada inicialmente como algo fora de padrão, é modelada de modo a ganhar sentido em um horizonte mítico compartilhada. Fora do contexto ritual, a coreografia pode significar uma desordem, mas quando a crise é apropriada pelo grupo e significada ela se torna um poder organizador da vida. Ao fazer o que todos fazem, o sujeito é incluído em um tempo-espaço no qual pode dar vazão ao seu potencial catártico.

Carpitella distingue a dança profana da coreografia ritual. Segundo ele, a coreografia ritual conta uma história, um drama que narra da crise à resolução. A dança profana não

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necessita de um sentido narrativo coerente. Assim como no candomblé, ou nos odissis indianos, a dança conta uma história.

A relação do som com o movimento é física, conforme explica José Miguel Wisnik, em seu livro “O Som e o Sentido”. O som são as ondas produzidas pelas vibrações dos corpos – corpos como porções de matéria, no sentido da física- alternando entre impulsões e repousos.

“Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos" (Wisnik, 2002:17)

A partir dessa concepção fica muito mais evidente a relação que o candomblé tem com o som. A música é o elemento central de uma prática corporal (coreica) para garantir a presença, ou seja, a presença atuante na história. A música estimula o corpo a uma coreografia ritmada de modo a conectar corpo e som, mundo físico e mundo psíquico em um movimento coordenado e contínuo.

Argumentei anteriormente que a crise da presença, cujo um dos sintomas é a depressão em suas diferentes formas, é um descompasso entre tempo e espaço. O sujeito em crise tem uma dificuldade de objetivação do mundo exterior e perde a capacidade de localizar-se temporal e espacialmente. O ritual coreico-musical, em seu uso terapêutico, estimula a pessoa a encontrar uma coerência rítmica que a ajuda a replasmar sua presença no mundo.

“A música encarna uma espécie de infraestrutura rítmica dos fenômenos (de toda ordem). O ritmo está na base de todas as percepções, pontuadas sempre por um atabaque, um modo de entrada e saída, um fluxo de tensão/distenção, de carga e descarga. O feto cresce no útero ao som do coração da mãe, e as sensações rítmicas de tensão e repouso, de contração e distenção vêm a ser, antes de qualquer objeto, o traço de inscrições das percepções" (Wisnik, 2002:29)

Pai Pedro me disse mais de uma vez que é muito importante monitorar o filho de santo enquanto ele está irradiado do orixá, uma das palavras que usam para falar da possessão. “A gente fica o tempo todo medindo a pulsação do filho de santo enquanto está de

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orixá. A irradiação é muito forte e a gente precisa controlar, pedir pro santo parar de dançar um pouco às vezes para baixar os batimentos” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, ago. 2013).

F., filho de Omulu e um dos mais velhos da casa de Pai Pedro, tem um dos orixás que realizam as danças mais vigorosas do terreiro. As danças de Omulu são rápidas e repletas de pulos e giros. A família adotiva de F. sempre frequentou o candomblé e sua mãe adotiva era iniciada para Iemanjá. Apesar de ter contato com sua mãe biológica e relacionar-se bem com ela, os detalhes da história de sua adoção nunca me foram revelados. O curioso é que F. foi feito para Omulu que, segundo a lenda, foi adotado por Iemanjá após ser rejeitado por Nanã.

F. é gay, como muitos dos outros filhos de santo de seu terreiro, e apesar de muito bem sucedido, um de seus assuntos preferidos em rodas de conversa é reclamar o quanto é dura sua vida profissional. Ele ocupa um cargo de confiança em uma empresa que presta serviços para altos executivos de grandes corporações. F. lida diariamente com trâmites de alto valor financeiro.

O filho de santo conta que em sua iniciação ele sofreu um infarto dentro do roncó – quarto onde ficam os iaôs durante a iniciação ou suas obrigações periódicas. F. foi iniciado por outro pai de santo e somente depois de algum tempo tomou obrigações com Pai Pedro. Ele conta que teve um transe mais cedo naquele dia e estavam raspando sua cabeça e achou que teria outro, mas o pai de santo chamou uma ambulância. Ele foi levado ao hospital com metade da cabeça raspada e “sujo de roncó”, como ele mesmo descreve. No hospital foi identificado que ela estaria sofrendo “princípio de infarto”. Depois de medicado e estabilizado, ele assinou um documento assumindo a responsabilidade de sua saída do hospital. F. voltou ao terreiro, teve um transe e deram “rum” em seu orixá – conduzir o orixá em um circuito coreográfico - e os outros dias da iniciação correram normalmente.

Míriam Rabelo, ao propor o estudo da religião a partir do corpo, reforça a ideia de que a estabilidade social depende de uma estabilidade entre corpo e lugar. Estar aí, ou a presença em termos demartinianos, é estar presente, alocado, ter um lugar. Os corpos localizam-se em um mundo em movimento por meio do movimento orientado pelo som.

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No ritual do candomblé o som conduz os corpos a um movimento ritmado que os alinha com todo o universo vibrante. Ao analisar um ritual de bori, ela diz:

“Mas a compreensão que se produz aqui é menos captação de significado do que prática corporal: o estabelecimento de uma sintonia entre corpo e entorno, pelo qual o primeiro integra a si uma situação, respondendo e ajustando-se a ela” (Rabelo, 2011: 19)

A ideia do corpo ajustado ao entorno está de acordo com a ideia, que defendo aqui, de que a música é central no candomblé ao promover o encontro do corpo com o som e com “o sentido”, o significado a ser atribuído à crise e, portanrto, sua resolução. Rabelo (2011:25) avança ainda em sua hipótese ao analisar a relação dos objetos no candomblé e afirma que a pedra do assentamento dos orixás – otá – não é uma representação do orixá, ou seja, ela não simboliza o orixá, ela é o orixá.

Baseado nessa ideia, retomo o que afirmei no começo deste capítulo que o atabaque é o elemento central do terreiro. O ogan é importante porque faz produzir som do atabaque, mas é o atabaque em si que comando o ritual. O atabaque é cuidado com a mesma cerimônia que os outros objetos do ritual, recebendo reverência e zelo.