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Capítulo 1: o problema e o método

1.7 O devir como risco

A religião, segundo De Martino, é uma técnica protetora da “crise da presença”. Como bem alerta o antropólogo americano George Saunders este risco pode ser erroneamente interpretado como a morte do sujeito apenas. O risco de “não estar aí”, de “não ser no mundo” é uma crise “para significar um problema mais profundo e sutil: um colapso no sentido de self, culminância na passividade e engajamento ineficaz com o mundo exterior” (Saunders, 1995:324). Como já dito anteriormente, a “crise da presença” envolve uma dificuldade em objetivar o mundo exterior.

De Martino reconhece esse risco nas sociedades que chama de Mundo Mágico. “No mundo mágico a individuação não é um fato, mas a tarefa histórica, e o ser-no-mundo é uma realidade condenda” (De Martino, 2004:141). Ao aplicar o termo “realidade condenda”, De Martino retoma o tema da historicidade e coloca o problema de que o mundo físico, a natureza, não deve ser tomado como dado, mas o antropólogo deve refazer um percurso histórico da construção das categorias que definem a própria realidade em cada sociedade.

De Martino atribui à história da civilização ocidental a ideia do indivíduo no centro de todas as coisas. Ele defende que desde o pensamento grego, o sujeito ocidental vem sendo constituído e o cristianismo coroa a ideia de trajetória individual (ver De Martino, 2004:225-227). A ideia desenvolvida pelo italiano em relação à construção histórica do sujeito se aproxima da reflexão de Marcel Mauss em “Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do “eu”” (1938) quando descreve um panorama de como algumas culturas entendem a noção de individualidade. No Mundo Mágico, no entanto, o grupo tem valor fundamental para o resgate e a garantia da presença.

“Vamos agora considerar o assunto a partir deoOutro aspecto. O risco e o resgate do feiticeiro não constituem um drama estritamente individual. Através da figura do feiticeiro, através de seu drama existencial, é a Comunidade em um todo, ou pelo menos um ou mais membros dela, que se abre para o risco de ser-no-mundo que se perde e reencontra-se” (De Martino, 2004:160)

A apropriação da crise individual pela cultura e a salvação do sujeito em crise ser a salvação do coletivo não é uma ideia distante da defendida por Lévi-Strauss em seu

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ensaio A Eficácia Simbólica, de 19495. No artigo, o autor analisa a etnografia de um ritual Cuna em que a comunidade entoa cânticos liderados por um xamã para salvar uma parturiente em processo complicado para dar à luz.

“A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois a paciente crê e é membro de uma sociedade que crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, os monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo” (Lévi-Strauss, 2008:213)

A participação social é fundamental para dar sentido à crise individual. Mais para frente trataremos da questão do fim do mundo, em que sem a apropriação da natureza pela cultura, o mundo perde o sentido e passa mesmo a não existir. Objetivar a dor e compreende-la em um horizonte meta-histórico, como diria De Martino, é a chave para resgatar a parturiente que se perde em uma dor “incoerente e arbitrária” para o mundo, ou para o sistema, em que tudo se encaixa.

Sem a participação do grupo, ou melhor, sem a aceitação da crise pelo grupo, a parturiente seria apenas uma descontrolada, uma louca, ou como vieram a descrever alguns sociólogos, uma outsider. “A paciente, tendo compreendido, faz mais que resignar-se, ela fica curada” (Lévi-Strauss, 2008:213). Outro conceito demartiniano pode ser percebido na análise de Lévi-Strauss, quando fala da linguagem fornecida pelo xamã, o que cria um “regime protegido”.

“O xamã fornece à sua paciente uma linguagem na qual podem ser imediatamente expressos estados não formulados, e de outro modo, informuláveis” (Lévi-Strauss, 2008:213).

Lévi-Strauss inicia então uma comparação da técnica xamânica com a técnica psicanalítica. Segundo ele, em ambos os casos, conflitos e resistências recalcadas no

5Vale ressaltar que o texto de De Martino é de 1948, de um ano anterior à publicação do artigo de Lévi-Strauss. Na obra de De Martino há escassas referências à escola sociológica francesa, apesar dele ter coordenado e prefaciado a publicação de três ensaios de Durkheim, Mauss e Hubert, com o título Le

origini dei Poteri Mágici. Em outros textos demartinianos, Lévi-Strauss, embora Tristes Trópicos

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inconsciente são trazidos à tona para a cura. Para o autor, o xamã é assimilável ao psicanalista, pois suas técnicas trabalham níveis variados da consciência.

“Também em ambos os casos, os conflitos e resistências se dissolvem, não porque a paciente deles vá tomando progressivamente conhecimento, real ou suposto, mas porque esse conhecimento torna possível uma experiência específica, na qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenrolar e conduzem ao seu alcance” (Lévi-Strauss, 2008:214).

A performatização da crise da presença é para De Martino o ponto chave para compreender o tarantismo. Na técnica coreico-musical, o atarantado vive sua crise em um regime controlado no qual sua dor pode se expressar livremente de uma forma que ganhe sentido e seja aceita por seus parentes e vizinhos que acompanham o ritual, de forma muito semelhante ao ritual Cuna de que trata Lévi-Strauss. A relação do social com o individual é determinante para que o exorcismo seja bem sucedido.

“Em geral, o símbolo mítico-ritual do tarantismo articula-se de modo a oferecer evocação, libertação e resolução para alguns conteúdos críticos conflitivos determinados pela pressão exercida pela ordem social, num regime existencial determinado, desde a primeira infância até a maturidade e a velhice ” (De Martino, 1999:179).

Chamo a atenção aqui para o uso o termo “crise existencial” que torna a crise da presença algo mais profundo que o simples medo da morte. No momento de crise, não é o fim da vida que resulta da perda, mas sim o fim do próprio mundo. A falta de capacidade de objetivar o que é o sujeito e o que é o mundo, causa neste sujeito a perda do mundo, a perda do referencial histórico. Perder a presença no mundo é perder o próprio mundo no sentido de que este não é dado, mas sim constantemente construído pela história.

“Uma vez que a relação que a presença estabelece é a mesma relação que faz com que a cultura seja possível, o risco de uma história humana não existente se forma como o risco de perder a cultura e recuar sem atenuação na natureza. Quando esse risco cresce em um determinado momento "crítico" da existência histórica, a presença perde o poder para defini-lo conscientemente ou superá-lo,

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e fica enroscada, entrando em uma profunda contradição existencial com ela mesma” (De Martino, 2012: 435)

A presença para De Martino, assim como em Heidegger e Hegel, sugere uma autonomia do sujeito, o que Hegel chama também de “consciência”, ou seja, uma intenção de estar aí. Essa consciência do estar no mundo, a presença, em termos demartinianos, é a capacidade do indivíduo de produzir a si mesmo. Quando há a incapacidade de fazê-lo, pode-se falar em crise da presença.

“A crise de presença, além disso, implica a possibilidade de perda de um lugar na história, uma vez que a história é o trabalho de pensar, agir, sentir, e, talvez acima de tudo, "distinguir" os seres humanos. A capacidade de distinguir as categorias e conteúdos da própria consciência é a base de uma interação dinâmica com o mundo, e da dialética da "presença no mundo" e "o mundo que se apresenta" sempre reflete (e determina) a postura do indivíduo com relação a uma história que se desdobra” (Saunders, 1995:10)

Essa frágil presença é constantemente ameaçada pelo risco do devir. Um mundo exterior imprevisível, que pode absorver o homem e quebrar sua distinção entre pensar e agir, perceber e ser, é um risco.

“Utilizando as contribuições da psicanálise, De Martino mostra que qualquer crise, até mesmo pessoal e existencial, é um fim do Mundo, até que a cultura não a recupere dando-lhe sentido através da transformação do que acontece historicamente, sem ou contra o homem, num momento de-historificado, protegido sacralmente e, sobretudo, gerido pelo homem, pela comunidade, que se reconhece e identifica naqueles atos “que todo mundo faz”. Tudo isso é história, história cultural” (Pompa, 1995:56-57)

A relação do homem com o tempo é crucial para a tese demartiniana. Não apenas no sentido de defesa do método de observação histórica que não deixa de sugerir uma leitura processual das práticas, mas também pela relação do sujeito com o devir. Por um lado, há uma percepção do tempo cíclico no mundo mágico e o ritual como uma paralisação desse tempo para a resolução da crise a partir de uma atualização do mito de “um tempo outro”. Nisso está a diferença entre De Martino e Mircea Eliade, que as noções de “dehistorificação” e de “eterno retorno” poderiam aproximar. Com efeito, De

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Martino vê na sociedade ocidental a herança judaico-cristã da irreversibilidade do tempo. A narrativa da salvação quebra o eterno retorno do tempo mítico e, aparentemente, elimina o risco do devir uma vez que a salvação está dada. A salvação está dada, mas não está. Há que se realizar uma série de atos rituais, marcados pelos momentos do ano litúrgico, para sua garantia.

Na sociedade cristã, a ideia do homem salvo dá a esse mesmo homem a autonomia de sua salvação. De Martino usa as palavras de Jesus a respeito do sábado fariseu para exemplificar sua hipótese. “O sábado foi feito para homem, e não o homem para o sábado” (Marcos 2:27). Essas palavras confirmam ao homem sua certa responsabilidade autônoma pelo agir no tempo.

“ou seja, a tarefa de lutar contra o sábado fariseu e dissipar o equívoco, sempre renovado, segundo o qual o produto da atividade pessoal escapa ao drama de produzir e, portanto, é considerado como isolamento do dado. Tal Consciência da autonomia da pessoa tem, no curso da história da civilização ocidental seu vértice ideal, que é a descoberta da unidade transcendental da autoconsciência” (De Martino, 2004:226)

A crise da presença é, de fato, um momento de fragilidade psíquica caracterizada por uma dificuldade de relacionamento do self com a história (Saunders, 1995). O sujeito em crise tem problema em produzir-se no tempo e por isso “não está aí”, não está presente. Segundo De Martino, as práticas mágicas oferecem uma solução cultural para este problema (De Martino, 2012:434).

O risco do devir não desapareceu da história com o desenvolvimento da sociedade ocidental. Se o cristianismo buscou eliminar esse risco com a narrativa da salvação, a Ciência buscou em sua trajetória uma estratégia de dominação da natureza e, consequentemente, do devir. Na conclusão do livro “A nova aliança”, Prigogine e Stengers afirmam que a história da Ciência e da Filosofia compartilham de um tema obsessivo: “É a questão da relação entre o ser e o devir, entre a permanência e a mudança” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:203).

A Ciência clássica buscava reduzir uma natureza controlada a um pequeno número de leis imutáveis. O modelo do sistema dinâmico concebe uma natureza “estranha ao

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homem que a descreve”... “Numerosos críticos da ciência moderna acentuaram o caráter de passividade e submissão que a física matemática empresta à natureza que descreve” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:205).

Esta natureza passiva, este mundo exterior dominado e controlado certamente não justifica uma crise da presença no modelo demartiniano, pois não tem a capacidade de “atacar” o sujeito com imprevistos. A natureza dominada e passiva, apesar de estranha, não oferece o risco. A respeito disso, lembramos que De Martino concebe o mundo mágico como composto de indivíduos sem o conhecimento científico desta natureza. Nessa chave seria um exercício frustrante a empresa de encontrar alguma crise de presença no mundo ocidental urbano contemporâneo.

A natureza, no entanto, se mostrou para a ciência instável e imprevisível em certa medida. No nível microscópico, os cientistas depararam-se com uma instabilidade intrínseca da natureza desbancando o ideal da dinâmica e com a mecânica quântica, protagonistas da “revolução científica”.

“Abriram-se, por isso, ao diálogo com uma natureza que não pode ser dominada mediante um golpe de vista teórico, mas somente explorada, com um mundo aberto ao qual pertencemos e em cuja construção colaboramos” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:209).

A trajetória da ciência resultou em uma compreensão de mundo qualitativamente diverso. O tema da multiplicidade dos tempos retoma a história do desenvolvimento científico em três séculos e foi Einstein que encarou a questão com mais destaque em tempos recentes. Novamente encontramos uma tensão entre o cristianismo e a ciência moderna quando esta trata de questionar a irreversibilidade do tempo. A física contemporânea reconhece esta irreversibilidade, ou, melhor, reconhece certa pluralidade de tempos.

“Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, ratificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A história, seja de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:211)

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É o surgimento dessa natureza em construção (talvez pudéssemos chama-la de natureza

condenda) que Prigogine e Stengers chamam de reencantamento do mundo. “A natureza

começa onde as trajetórias deixam de ser determinadas, onde se quebram os foedera fati que regem o mundo em ordem e monótono das evoluções deterministas” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:218).

A ciência aberta, como chamam esses autores à ciência contemporânea, se abre novamente às possibilidades do devir e, dessa forma, assume novamente os riscos da presença.