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Capítulo 2: A análise

2.4 Olubajé – no banquete do rei tem bolo

A festa do olubajé, também chamada de “O banquete do rei” é considerada uma das mais bonitas, complexas e etnografadas do candomblé. A festa é em honra a Omulu6, ou

6 A grafia do nome dos orixás varia entre os autores. Omulu pode ser grafado Omolu, assim como é possível encontrar grafias diferentes para Oxóssi, como Oxóce, Oxóci. Ou Yemanjá e Iemanjá, Iansã e Inhasã, e assim por diante.

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Obaluaiê, o orixá da terra e das doenças. Omulu é retratado na literatura brasileira como o orixá da bexiga, como era chamada popularmente a varíola. Por ser o orixá da doença, Omulu é também o orixá da cura. Explica-se no candomblé que não se pede saúde a ele, pede-se que leve embora a doença.

A lenda de Omulu conta que sua mãe Nanã queria um filho de Oxalá e roubou seu sêmen. Como castigo, Omulu nasceu repleto de chagas pelo corpo e, como era de costume, foi rechaçado por Nanã e abandonado. Iemanjá o criou como seu filho e deu a ele todas as conchas do mar, por isso Omulu dança com um barajá, colar feito de búzios escamados um por cima do outro. Durante a vida, Omulu se curou, mas anda sempre com uma roupa de palha que lhe cobre todo o corpo, roupa essa que Iemanjá fez para ele para que pudesse andar pelo mundo sem ser apontado. Omulu dança no terreiro com uma roupa de palha que o cobre da cabeça aos pés.

A festa de Omulu é um banquete em que todos os orixás oferecem a ele um pouco de sua comida e ele divide com todos. Descreverei bastante resumidamente o complexo ritual com destaques para elementos que me auxiliarão a prosseguir com o argumento que venho desenvolvendo.

Acompanhei diversas festas na casa de Olubajé no Ilê Axé Xangô Airá, de Pai Pedro, e houve sempre algumas pequenas variações entre uma e outra. Conto a de 2012 em que um episódio específico me ajudará a comentar os conceitos trabalhados até aqui.

A festa começa com o Xirê como todas as outras e logo após é servido o banquete do rei. Os filhos de santo saem do espaço onde é realizada a dança, com os atabaques e seguem para um corredor lateral onde estão colocadas em uma mesa grandes recipientes de louça ou barro com comidas. Cada comida é de um orixá, há, por exemplo, os acarajés de Iansã, amalá de Xangô, bananas fritas de Obá, uma farofa de Logun Edé, feijão preto de Ogum e a pipoca de Omulu. Com as comidas na cabeça os filhos de santo entram entoando um canto que será repetido enquanto durar esta etapa do ritual seguindo a equede que dá o ritmo da dança com uma grande esteira de cipó.

A equede estende a esteira no centro do terreiro, e ali os filhos de santo dispõem todos os recipientes em torno da esteira, como em uma mesa, e os filhos de santo, exceto o filho de Omulu e as filhas de Iansã, sentam em bancos baixos em torno da esteira. O pai de santo coloca então alguns pratos na frente do filho de Omulu que se ajoelha e bate o prato em seu peito, sua cabeça, seus ombros, sua testa e sua nuca. O canto segue

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ininterruptamente, mas ganha agora um vigor extra acompanhado pelos atabaques. O filho de Omulu é tomado por um tremor, assim como as filhas de Iansã e uma filha de Oxum, novata, sentada em dos bancos. Logo ouve-se o grito de Omulu, alto e forte. Omulu está em terra, como costumam dizer. As Iansãs também gritam e todos do terreiro gritam saudações tomados por uma emoção coletiva. Atotô é como se saúda “o velho”, como também é chamado o orixá. O filho é levado para o quarto de santo onde irá vestir sua roupa de palha, bem como as Iansãs.

Enquanto Omulu está recolhido para vestir-se, ouvem-se seus gritos. Provavelmente porque “sobe”, ou seja, deixa de possuir o corpo de seu filho de santo, que será tomado pelo erê, entidade infantil ligada ao orixá que será vestido para que o orixá volte e apareça em público. Normalmente, o orixá não fica presente para a realização desta atividade que é feita pelo erê.

Do lado de fora, os filhos colocam uma pequena porção de cada alimento em uma folha de mamona e servem primeiramente aos convidados externos e depois a cada filho de santo, inclusive os ogans. Nenhum destes alimentos é temperado com sal. Cada pessoa recebe a folha com as comidas, come – muitas comem “simbolicamente” por não gostar do sabor das comidas e só pegam um pouco – depois cada pessoa se dirige ao canto do terreiro onde há uma bacia em frente à porta da casa de Omulu, passa a folha pelo corpo terminando na cabeça e coloca na bacia. Os filhos de santo servem ainda uma bebida do orixá que lembra uma garapa. Depois que todos comem o olubajé, há um intervalo de 10 minutos, quando as comidas são colocadas todas dentro do quarto do santo, assim como as folhas limpas que sobraram e as usadas pelas pessoas.

O orixá vem então dançar. Saem do quarto de santo, Iansã e Omulu, ambos vestidos. Iansã com uma roupa em tom que varia entre o vinho e o cobre. Omulu com uma vestimenta que impressiona, uma grande cobertura de palha com uma coroa de material na mesma cor da palha adornada com cabaças, que pertencem ao orixá, e búzios. Iansã e Omulu dançam em roda uma cantiga e então Iansã é coloca na lateral do terreiro onde fica enquanto Omulu dança.

Omulu dança primeiro o Opanijé, um ritmo sem letra em que dança primeiro uma coreografia completa para os atabaques, e depois de frente para as pessoas que assistem ao ritual. O Opanijé é dançado com ritmo bem marcado. Omulu aponta para a boca três vezes, andando com o corpo para a direita, depois, três, para a esquerda. Com o mesmo

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gesto aponta para os olhos, para o ouvido, para a cabeça, para os braços e para o coração. Em uma batida mais acelerada, Omulu “varre o chão” do terreiro com sua palha abaixando e balançando com a ajuda das mãos a palha freneticamente enquanto o público grita sua saudação vigorosamente “Atotô!”.

Depois do Opanijé, Omulu dança ainda por mais ou menos meia hora variando entre ritmos mais tranquilos e mais agitados quando corre o terreiro girando e pulando. Omulu grita um urro forte e longo, mais longo que os de Xangô ou Ogum.

O momento mais frenético da festa, já quase no fim é quando Omulu se dirige para os atabaques e começa a abaixar-se em direção ao chão. Conforme Omulu abaixa, filhos de santo e pessoas da comunidade ali presentes gritam sua saudação, batem palmas no ritmo do atabaque, choram. Muitas colocam as mãos sobre os lugares onde têm doenças, fecham os olhos e rezam. Neste momento, Omulu vai representar sua febre, quando Iansã o cura e, por isso, ela está ali incorporada. Já vi, em outras festas, Iansã chegar apenas neste momento. Não é sempre que ela fica incorporada o ritual inteiro. Omulu então se atira ao chão na frente dos atabaques e treme energicamente. Muitos filhos de santo incorporam em meio aos gritos cada vez mais intensos de “Atotô” e as Iansãs dão seus gritos, mais curtos. Omulu rola de um lado para o outro na frente dos atabaques. Nesse momento, a equede e outro filho de santo cobrem o orixá com um lençol branco e o pai de santo corre o terreiro jogando pipoca em Omulu e nas pessoas todas. É um momento de grande entusiasmo. Quando Omulu não realiza este ato é sinal de algo o desagradou ou de que o ano vindouro não será bom. Omulu levanta, dança uma coreografia rápida e tira o capacete com as palhas que cobrem o resto de seu corpo ficando apenas com a saia de palha. Omulu volta para o quarto de santo com o rosto à mostra. Este também é um sinal de que a festa o agradou. No candomblé, os orixás nunca desincorporam na frente das pessoas. O processo é sempre feito nos quartos de santo e cobertos com um pano.

Depois de dançar, Omulu é levado para o quarto de santo e Iansã é puxada para a roda para algumas danças, a mais importante das quais leva uma quartinha com água na cabeça até a porta da rua do terreiro e despeja a água na rua. Os orixás dançam sempre acompanhados de uma equede ou de um filho de santo mais velho. Apenas os orixás mais velhos, isto é, com mais tempo de santo, é que podem dançar sozinhos. Iansã dança por cerca de dez minutos e é levada embora.

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O pai de santo puxa uma cantiga para Oxalá e todos dançam. Oxalá é sempre o último a ser saudado, enquanto Exú o primeiro e Oxalá o último. Depois que dançam para Oxalá, o pai de santo abaixa dobrando os joelhos, gesto acompanhado por todos os presentes, e batem palmas em um ritmo pré-estabelecido marcando o fim do ritual. A festa, no entanto, não acabou. Neste momento, todos os presentes, inclusive a família de santo, é convidada para o jantar. No jantar não há um protocolo do que é servido, o pai de santo pode preparar a carne de algum dos animais que foi oferecido aos orixás, ou, qualquer outro prato de seu agrado. Esta refeição final é um momento de confraternização, de realocamento. Uma filha de santo de Pai Pedro uma vez me disse algo importante a respeito desse momento.

“Agora é que a gente vai ver as pessoas, descansar, se encaixar, né?”

Talvez ela mesma não saiba do quanto sua frase carrega de significados antropológicos. Neste momento, a comida serve como agente reestabelecedor da ordem social.

No ritual que descrevi, não parece haver qualquer espaço para caos, desordem, ou imprevistos. Tudo parece muito bem preparado para o que vai acontecer. Os santos tinham suas roupas separadas, o lençol branco estava a postos para cobrir Omulu e a pipoca estourada em quantidade o suficiente para que fosse atirada a Omulu e aos demais participantes. O regime protegido de que fala De Martino, em que a crise da presença pode ser vivida de forma controlada em um contexto em que seu resgate já está garantido, está aqui representado. Os adeptos podem entregar-se ao transe porque tudo o que precisam está aí preparado, à mão. As oferendas já foram feitas e há, depois da dança e do êxtase, o jantar, o momento de confraternizar e “voltar” para o mundo. Os atos que precedem o ritual, no entanto, são mais caóticos. Nesta festa que relatei, há uma particularidade: no fim da festa cantaram parabéns para um jovem que fazia aniversário, cuja família é uma grande contribuinte do terreiro. Embora não seja oficialmente membro da família de santo, oferece ajuda financeira para a realização das festas. O curioso é que dias antes, enquanto realizavam-se as obrigações internas, Omulu pediu um bolo.

O pedido foi recebido com estranheza e, por isso, confirmado nos búzios, mesmo tendo o próprio orixá incorporado ter feito o pedido. Bolo não é comida de qualquer santo e, por isso, não faz parte do Olubajé. Tampouco é costume servir bolo de sobremesa, mas para aquele ano, Omulu pediu um bolo. Explicou que queria um doce grande como o

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que fazem para o panã e cantam para as crianças novas. Um bolo? Perguntaram. Sim, um bolo. Omulu então disse que queria um bolo pelos dezesseis odus –as combinações formadas na queda dos búzios e podem representar um ano - de uma pessoa que viria à festa.

No dia da festa após o jantar, Pai Pedro chamou a atenção de todos e disse: “Vamos cantar parabéns para um grande amigo do terreiro, filho de grandes amigos nossos e que hoje completa 16 anos, 16 voltas no destino”.

Pai Pedro e outros filhos de santo comentaram que até a tarde do dia da festa houve uma grande tensão em relação ao bolo. Até que alguém da comunidade comentou sobre o aniversário do garoto que, por gostar tanto de Omulu e do olubajé, viria ao candomblé ao invés de ir comemorar seu aniversário com os amigos. Todos então sentiram um alívio ao descobrir a informação. Algo tão fora do esperado no ritual, sobretudo na festa, poderia não ser um bom presságio.

A festa é o momento de organização, de celebração e de o santo mostrar sua majestade. A riqueza teatral da festa pública onde certa pompa e extrema organização são exibidas contrastam enfaticamente com a característica lambuzada dos rituais internos.

Nos atos que precedem as festas públicas, reservados aos filhos de santo, a impressão de desordem é mais nítida. Nestes momentos, os orixás podem aceitar ou não suas oferendas, dar corretivos em seus filhos – um costume menos frequente, descrito por alguns membros mais antigos, era o orixá dançar enquanto dava chibatadas em seu filho de santo para corrigir alguma má conduta - e até mesmo recusar oferendas. Ou, como aconteceu no olubajé que descrevi, o orixá pode fazer um pedido absolutamente inusitado.

Ainda que haja um protocolo do que se espera dessas obrigações, é comum os orixás, principalmente dos filhos mais novos, virem a qualquer momento. E quando digo que esses rituais são lambuzados, é literal. Em muitas ocasiões durante os borís ou obrigações sazonais os filhos recebem comida em suas cabeças, são derramados certos líquidos e, nos dias em que há matança, alguns orixás dançam lambuzados com um pouco de sangue derramado em sua cabeça.

As roupas que se usam para esses atos são mais simples. Durante a iniciação, por exemplo, o filho de santo recebe alguns cortes nos braços, nas costas e na cabeça. Derrama-se sangue e colocam-se certos elementos orgânicos em seu corpo, como ervas,

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penas e comida. Há rituais em que o filho de santo tem sangue e penas grudadas em seu corpo. Nesse momento de completa liminaridade, como coloca Turner, ou seja, suspensão da ordem social estabelecida, as fronteiras entre homens e mundo externo são completamente rompidas. Ao realizar esta observação em relação à comida, Rabelo me inspira a pensar nessas obrigações internas em que as pessoas banhadas em sangue, por exemplo, são absorvidas pelo mundo.

Durante as iniciações dos candomblés de queto há certos atos realizados para cada orixá que rompem definitivamente com as categorias humanas com as quais estamos habituados. Na iniciação dos filhos de Oxumaré, o orixá que é parte do tempo cobra e outra parte arco-íris, eles são levados à beira de um rio, ou de um poço, e o orixá é chamado. Incorporado, ele deve se atirar na água e nadar como uma cobra. Oxóssi, o caçador, é chamado para que busca um animal que é solto no meio do mato – normalmente um pequeno porco. Naturalmente, esses atos podem sofrer severas adaptações no candomblé urbano, mas a animalização, por assim dizer, do homem é uma etapa fundamental dos rituais

A perda da presença em um regime protegido, sobretudo durante a iniciação, é completa. O filho de santo se propõe a renascer durante este processo, o que significa renunciar simbolicamente à sua vida cotidiana e assumir uma nova identidade, uma nova vida, garantida, dessa vez. Ao renascer como filho de Ogum, o filho de santo tem a garantia de que sua luta é a luta de Ogum, sua vida é a vida de Ogum e Ogum está lá, sempre esteve. Ao animalizar-se, ou nadar como cobra, ou banhar-se de lama, como faz Nanã, o homem integra-se à natureza, como a entendemos em nosso contexto ocidental, para poder emancipar-se dela, mas nunca definitivamente. Ao integrar-se a ela momentaneamente e separar-se, o sujeito assume sua dependência e relação com aqueles elementos que são constitutivos da vida e de sua identidade. E que sua identidade, ou seja, sua construção como pessoa é um processo em longo prazo.

O movimento de integrar-se ao mundo, perder-se para ele, replasmar a presença e recuperar a vida cotidiana é um ciclo vivido praticamente no candomblé. Me parece superficial dizer que a perda da presença é simbólica ao observar tais atos. Simples banhos de cachoeira para as filhas de Oxum são uma integração completa com o elemento e, consequentemente, com o orixá. Quando uma filha de Oxum está debaixo da queda de uma cachoeira, ela é a cachoeira, a água que corre por seu corpo é, naquele

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momento, parte de seu corpo. E, se for rodante, essa pessoa poderá ser possuída por sua orixá ao entrar em uma cachoeira. Por isso, os filhos de santo têm restrições para ir a certos lugares nos primeiros meses ou anos após sua feitura, até que aprendam a ter controle da possessão e não sejam tomados pelo orixá em qualquer momento. A possessão do orixá, ou, a perda da presença se torna mais controlável a medida em que o filho de santo tem mais experiência no candomblé. Essas possessões fora de um contexto ritual são menos frequentes até que o filho de santo consiga um controle mais consistente (Goldman, 1985).

Rabelo, ainda em suas observações acerca da comida, nota que a duração desses elementos são informações relevantes. Os atos que envolvem a produção dos alimentos, como cortar, descansar, moer, descascar, cozinhar, assar, são essenciais para o sucesso das oferendas.

Ao entregar as oferendas, é feita uma consulta com o lançar dos obis –sementes de cola - que ao caírem demonstram pelo modo como repousam se o orixá ficou ou não satisfeito com as entregas. É comum que quando os obis caiam de modo favorável, o orixá tome o corpo de seu filho.

“Nesse sentido, pode-se dizer que o candomblé não apenas ressalta e cultiva a transformação – fato bastante visível na centralidade que assumem, nesta religião, atividades relacionadas à comida – mas que no terreiro cultiva-se a atenção e a sensibilidade às várias e diferentes (às vezes bastante pequenas) durações em que os materiais (e as pessoas) se transformam” (Rabelo, 2013:97) A transformação, como tenho demonstrado, é o elemento central do candomblé e se dá pelo conflito. Não há mudança sem conflito. O filho de santo deve entrar em conflito com tudo o que o separa da natureza, entregar-se a ela e, novamente, entrar em conflito com ela para separar-se. Rabelo observa em um outro artigo que as obrigações representam “uma ruptura restauradora nas suas rotinas de trabalho pesado, durante a qual podiam –e, de fato, deviam – simplesmente deitar, dormir e comer” (Rabelo, 2011:16).

A autora evoca estas experiências para propor a centralidade do corpo na prática do candomblé. Rabelo retoma ainda uma relação que construí anteriormente quando evoquei Augé(a relação do corpo com o lugar) e . Appadurai ( rituais como a construção de lugares).

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“Há uma sintonia ou reforço mútuo entre corpo e lugar da qual depende a estabilidade da vida social bem como nosso senso de pertença e o relativo ajustamento a ela. A configuração dos lugares que habitamos demanda certos modos de engajamento corporal, reforçando e naturalizando padrões de ação e interação (com base em diferenças de classe, gênero, geração,etc.); assim como as disposições e técnicas corporais socialmente constituídas revelam os lugares como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e às classificações ou ideias estereotipadas que elas corporificam” (Rabelo, 2011:19) O encontrar-se com o mundo no candomblé se dá em dois sentidos, o lugar e o corpo. Ir para o mato, para a cachoeira e mesmo para o terreiro dar suas obrigações é um encontro do sujeito com o lugar que não é o cotidiano do trabalho, da vida familiar, social (no caso do candomblé urbano que venho analisando). E o corpo que encontra o sangue animal, a comida, a terra, as folhas e todos os elementos ali. A coreografia é a técnica corporal que permite este encontro. Como já disse antes, há uma coreografia para tudo no candomblé, desde o cumprimento aos atos rituais mais sofisticados. Essa coreografia pode ser alterada nos ritos internos, o que causa sempre grande preocupação, como foi ilustrado quando Omulu pediu um bolo para o Olubajé. As mudanças inesperadas nesta coreografia podem acontecer, mas são sempre sinal de algo fora do normal, ou seja, um certo descontrole.

Quando dança sobre o fogo Xangô realiza este duplo encontro do corpo com o elemento e da criação de um lugar. Um lugar que é do orixá, mas também do filho de santo. Deste mesmo modo, ao encontrar-se com o mundo, fundir-se com ele e animalizar-se, o homem toma para si lugares que antes não lhe pertenciam (ou aos quais não peertencia). O mundo que o ameaça, incluídas nessa ideia as criaturas que o ameaçam, são agora parte dele mesmo. A comida, o barro, os búzios, o sangue e os próprios animais constituem a presença do homem. Neste sentido, minha proposta extrapola a de