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A Religião da Virtude

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 76-92)

Mas a religião que executa também o velho soberano deve cons­ truir agora o poder do novo; ela fecha a igreja, o que a leva a tentar construir um templo. O sangue dos deuses, que por um segundo respinga no padre de Luís XVI, anuncia um novo batismo. Joseph de Maistre qualificava a Revolução de satânica. Pode-se ver por quê, e em que sentido. Michelet, no entanto, estava mais próximo da verdade ao chamá-la de purgatório. Nesse túnel, uma época lança-se cegamente em busca de uma nova luz, de uma nova felici­ dade e da face do verdadeiro deus. Mas qual será esse novo deus?

É

o que ainda podemos perguntar a Saint-Just.

1 7 8 9 ainda não afirma a divindade do homem, mas sim a do povo, na medida em que sua vontade coincide com a da natureza e a da razão. Se a vontade geral se expressa livremente, ela só pode

H -r a expressão universal da razão. Se o povo é livre, ele é infalível. M orto o rei, rompidos os grilhões do antigo despotismo, o povo i r{t expressar portanto aquilo que em todos os tempos e lugares é,

l().i e será a verdade. Ele é o oráculo que deve ser consultado para Haber o que a ordem eterna do mundo exige. Vox populi, vox naturae.

Princípios eternos comandam a nossa conduta: a Verdade, a Justi­

(�a, a Razão, enfim. Eis o novo deus. O Ser supremo que legiões de

l noças vêm adorar, ao festejarem a Razão, não é mais que o deus ti ntigo, desencarnado, bruscamente cortado de quaisquer amarras

·om a terra, e que foi solto, como um balão, no céu vazio dos gran­

des princípios . Privado de seus representantes, de qualquer i ntercessor, o deus dos filósofos e dos advogados tem apenas o va­ lor de demonstração. Na realidade, ele é bem fraco, e compreende­

i' • por que Rousseau, que pregava a tolerância, achava contudo

que era preciso condenar à morte os ateus. Para adorar por muito I ·mpo um teorema, não basta a fé, é preciso ainda uma polícia. Mas isso só deveria ocorrer mais tarde. Em 1793, a nova fé ainda está intacta, e, se acreditarmos em Saint-J ust, basta governar se­ gundo a razão. Seu ponto de vista era que a arte de governar só produziu monstros porque até o seu tempo não se quis governar de acordo com a natureza. O tempo dos monstros terminou com o fim do tempo da violência. "O coração humano caminha da natu­ reza para a violência e da violência para a moral." A moral, portan­ to, é apenas uma natureza recuperada após séculos de alienação. Se derem aos homens apenas leis "segundo a natureza e o seu cora-

ão", ele deixará de ser infeliz e corrupto. O sufrágio universal, fundamento das novas leis, deve obrigatoriamente levar a uma moral universal. "Nosso objetivo é criar uma ordem de coisas tal que se estabeleça uma tendência universal para o bem."

A religião da razão estabelece de modo natural a república das leis. A vontade geral é expressa em leis codificadas por seus repre­ sentantes. "O povo faz a revolução, o legislador faz a república."

ALBERT CAMUS

As instituições "imortais, impassíveis e a salvo da temeridade hu­ mana" vão reger por sua vez a vida de todos em um acordo univer­ sal e sem contradição, possível, porque todos, ao obedecerem às leis, não estarão obedecendo senão a si mesmos. "Fora das leis, tudo está estéril e morto", diz Saint -J ust.

É

a república romana, formal e legalista. Já se conhece a paixão de Saint-Just e de seus contemporâneos pela Antiguidade romana. O jovem decadente que em Reims passava horas com as persianas fechadas, num quarto de reposteiros pretos, enfeitados com lágrimas brancas, sonhava com a república espartana. O autor de Organt, poema longo e licencio­ so, sentia ainda mais necessidade de frugalidade e de virtude. Em suas instituições, Saint-Just abolia a carne para menores de dezesseis anos e sonhava com uma nação vegetariana e revolucionária. "O mundo está vazio desde a época dos romanos", exclamava. Mas anunciavam-se tempos heróicos - Catão, Brutus, Cévola torna­ vam-se novamente possíveis. Reflorescia a retórica dos moralistas latinos. "Vício, virtude, corrupção" são termos que ressurgem cons­ tantemente na retórica daquele tempo e, mais ainda, nos discursos de Saint-Just, que eles tornavam sempre pesados. A razão é sim­ ples. Como Montesquieujá vira, o belo edifício não podia prescin­ dir da virtude. A Revolução Francesa, ao pretender construir a história sobre um princípio de pureza absoluta, inaugura os tem­ pos modernos e ao mesmo tempo a era da moral formal.

Que é a virtude, na verdade? Para o filósofo burguês de então, é a conformidade com a natureza38 e, em política, a conformidade com a lei que expressa a vontade geral. ''A moral", diz Saint-Just, "é mais forte que os tiranos." Efetivamente, ela acabava de matar Luís XVI. Toda desobediência à lei não decorre portanto de uma imperfeição, supostamente impossível, dessa lei, mas de uma falta

"Mas a natureza, tal como a encontramos em Bernardin de Saint-Pierre, é em si mesma confor­ me uma virtude preestabelecida. A natureza também é um princípio abstrato.

O HOMEM REVOLTADO

de virtude no cidadão refratário. Por isso, a república não é somen­

te um senado, como diz Saint-J ust com veemência, ela é a virtude.

Toda corrupção moral é ao mesmo tempo corrupção política, e vice-versa. Oriundo da própria doutrina, instala-se então um prin­ cípio de repressão infinita. Sem dúvida, Saint-Just era sincero em seu desejo de idílio universal. Ele sonhou realmente com uma re­ pública de ascetas, com uma humanidade reconciliada e entregue aos castos jogos da inocência primeira, sob a guarda desses velhos sábios que ele, antecipadamente, enfeitava com um lenço tricolor e um penacho branco. Sabe-se também, que desde o início da Revo­ lução Saint-Just se pronunciara, junto com Robespierre, contra a pena de morte. Exigia somente que os assassinos se vestissem de preto pelo resto da vida. Desejava uma justiça que não procurasse "achar que o acusado era culpado, mas sim fraco", e isso é admirá­ vel. Sonhava também com uma república do perdão que reconhe­ cesse que, se a árvore do crime era dura, sua raiz era tenra. Pelo menos um de seus brados vem do coração e não pode ser esqueci­

do:

uma coisa terrível atormentar o povo." Sim, é terrível. Mas

um coração pode senti-lo e submeter-se, contudo, a princípios que implicam em última instância o tormento do povo.

A moral, quando é formal, devora. Parafraseando Saint-Just, ninguém é virtuoso inocentemente. A partir do momento em que as leis não fazem reinar a concórdia, em que a unidade a ser criada pelos princípios é destruída, quem é culpado? As facções. Quem são os facciosos? Aqueles que negam por sua própria atividade a unidade necessária. A facção divide o soberano. Ela é portanto blasfema e criminosa. Ela, e só ela, deve ser combatida. Mas e se houver muitas facções? Todas serão combatidas, sem remissão. Saint-Just exclama: "Ou as virtudes ou o Terror."

É

preciso endu­ recer a liberdade, e o projeto de constituição na Convenção mencio­ na então a pena de morte. A virtude absoluta é impossível, a repú­ blica do perdão conduz, por uma lógica implacável, à república

das guilhotinas. Montesquieu já havia denunciado essa lógica como uma das causas da decadência das sociedades, ao dizer que o abuso de poder é maior quando as leis não o prevêem. A lei pura de Saint­ J ust não tinha levado em conta a verdade, velha como a própria his­ tória, de que a lei em sua essência está fadada à transgressão.

O Terror

Saint -J ust, contemporâneo de Sacie, chegou à justificação do crime, se bem que partindo de princípios diferentes. Saint-Just é sem dúvi­ da o anti-Sacie. Se a fórmula do marquês podia ser: ''Abram as pri­ sões ou provem sua virtude", a do convencional seria: "Provem sua virtude ou entrem nas prisões." Ambas, no entanto, legitimam um terrorismo, individual no libertino, e estatal no padre da virtude. O bem absoluto ou o mal absoluto, se aí aplicarmos a lógica necessária, exigem o mesmo furor. Há certamente ambigüidade no caso de Saint­ Just. A carta que escreveu a Vilain d' Aubigny, em 1792, tem algo de

loucura. Essa profissão de fé de um perseguido perseguidor termina com uma confissão histérica: "Se Brutus não mata os outros, vai se matar." Um personagem tão obstinadamente sério, tão voluntaria­ mente frio, lógico e imperturbável, permite imaginar todos os desequilíbrios e todos os distúrbios. Saint-Just inventou essa espécie de seriedade que faz da história dos dois últimos séculos uma tediosa novela policial. ''Aquele que brinca à frente de um governo tende à tirania", diz ele. Máxima estarrecedora, sobretudo se pensarmos no que acarretava uma simples acusação de tirania, e que prepara em todo o caso o caminho para a era dos Césares pedantes. Saint-Just dá

o exemplo; o seu próprio tom é definitivo. Essas afirmações peremp­ tórias em cascata, esse estilo axiomático e sentencioso servem para retratá-lo melhor do que as mais fiéis pinturas. As sentenças ronro­ nam, como a própria sabedoria da nação, as definições, que constituem a ciência, sucedem-se como mandamentos frios e claros. "Os princí­ pios devem s�r moderados; as leis, i m placáveis ; as p enas, irreversíveis." E o estilo guilhotina.

Um tal endurecimento da lógica supõe, entretanto, uma pai­ xão profunda. Aí, como em outros lugares, voltamos a encontrar a paixão pela unidade. Toda revolta supõe uma unidade. A de 1789 exige a unidade da pátria. Saint-Just sonha com a cidade ideal, na qual os costumes, finalmente conforme à lei, proclamarão a ino­ cência do homem e a identidade de sua natureza com a razão. E se as facções vêm atrapalhar esse sonho, a paixão vai exagerar a sua lógica. Não se imaginará então que, se as facções existem, os prin­ cípios talvez estejam errados. As facções são criminosas porque os princípios continuam intangíveis. "Chegou o momento em que todo mundo deve voltar à moral, e a aristocracia, ao Terror. " Mas as facções aristocratas não são as únicas, deve-se contar com as repu­ blicanas, e com todos aqueles que em geral criticam a ação do Legislativo e da Convenção. Estes também são culpados, já que ameaçam a unidade. Saint-Just proclama então o grande princípio das tiranias do século XX: "Patriota é todo aquele que apóia a república no geral; quem quer que a combata no detalhe é um traidor." Quem critica é traidor; quem não apóia ostensivamente a república, um suspeito. Quando nem a razão nem a livre expressão dos indivíduos conseguem firmar sistematicamente a unidade, é preciso decidir-

eliminar os corpos estranhos. A guilhotina tor­ na-se desse modo um enredador cuja função é refutar. "Um ban­ dido que foi condenado à morte pelo tribunal diz que quer resistir à opressão, porque quer resistir ao cadafalso!" Fica difícil compre­ ender a indignação de Saint-Just já que, até aquele momento, o

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cadafalso era justamente apenas um dos símbolos mais evidentes da opressão. Mas no interior desse delírio lógico, no extremo dessa moral de virtude, o cadafalso é liberdade. Ele garante a unidade racional, a harmonia da cidade. Ele depura - o termo é esse - a república, eliminando as fraudes que vêm contradizer a vontade geral e a razão universal. "Contestam-me o título de filantropo", exclama Marat, com um estilo totalmente diferente. ''Ah! Que in­ justiça! Quem não vê que desejo cortar um pequeno número de

cabeças para salvar um grande número delas?" Um pequeno nú­ mero, uma facção? Sem dúvida, e toda ação histórica paga esse preço. Mas Marat, ao fazer os seus cálculos finais, exigiu duzentas e setenta e três mil cabeças. Mas ele comprometia o aspecto terapêutico da operação, urrando durante o massacre: "Marquem­ nos com ferro em brasa, cortem-lhes os polegares, rachem-lhes a língua." O filantropo escrevia com o vocabulário mais monótono que existe, dia e noite, sobre a necessidade de matar para criar. Ele continuava escrevendo nas noites de setembro, no fundo de seu porão, à luz de vela, enquanto os verdugos instalavam bancos para os espectadores nos pátios de nossas prisões - homens à direita, mulheres à esquerda -, para oferecer-lhes, como um gracioso exemplo de filantropia, a degola de nossos aristocratas.

Não misturemos, nem por um segundo que seja, a pessoa gran­ diosa de um Saint-Just com o triste Marat, macaco de imitação de Rousseau, como é chamado com muita propriedade por Michelet. Mas o drama de Saint-Just, por motivos superiores, e por uma exigência mais profunda, foi ter feito coro, em certos momentos, com Marat. As facções somam-se às facções, as minorias às mino­ rias, já não se pode dizer com certeza que o cadafalso funcione a serviço da vontade de todos. Saint-Just, porém, não deixará de afir­ mar até o fim que ele funciona a serviço da vontade geral, já que funciona a serviço da virtude. "Uma revolução como a nossa não é um processo, mas uma tempestade sobre os maus." O bem fulmina,

O HOMEM REVOLTADO

a inocência se faz raio, e raio justiceiro. Mesmo aqueles que buscam

os prazeres, e sobretudo estes, são contra-revolucionários. Saint-Just, que disse que a idéia de felicidade era nova na Europa (na verdade era nova sobretudo para Saint-Just, para quem a história parava em Brutus ), se dá conta de que algumas pessoas têm uma "idéia terrível da felicidade e confundem-na com o prazer". Também contra eles é preciso usar de rigor. No final, não se trata mais de maioria nem de minoria. O paraíso perdido e sempre cobiçado da inocência univer­ sal se distancia; na terra infeliz, cheia dos gritos da guerra civil e nacional, Saint-Just decreta, contra si próprio e contra os seus prin­ cípios, que todo mundo é culpado quando a pátria está ameaçada. A série de relatórios sobre as facções do estrangeiro, a lei do dia 22 do mês revolucionário Prairial, o discurso de 1 5 de abril de 1 794 sobre

a necessidade da polícia marcam as etapas dessa conversão. O ho­

mem que com tanta grandeza considerava infâmia depor as armas enquanto existissem, em algum lugar, um senhor e um escravo é o mesmo que iria aceitar a suspensão da Constituição de 1 793 e o exer­ cício do arbítrio. No discurso que fez em defesa de Robespierre, ele nega a fama e a posteridade e só se refere a uma providência abstrata. Ao mesmo tempo, reconhecia que a virtude, da qual fazia uma reli­ gião, só tinha como recompensa a história e o presente, e que ela devia, a qualquer preço, fundar o seu próprio reino. Ele não amava o poder "cruel e mau", e que, segundo dizia, "sem regras, marchava para a opressão". Mas a regra era a virtude e vinha do povo. Com o enfraquecimento do povo, a regra ficava obscurecida, e a opressão crescia. Logo, o povo era culpado, e não o poder, cujo princípio de­ via ser inocente. Uma c;ontradição tão extrema e tão sanguinária só podia ser resolvida por

a lógica ainda mais extrema e pela aceita­ ção final dos princípios, no silêncio e na morte. Saint-Just ao menos permaneceu neste nível de exigência. Nisso, afinal, ele deveria en­ contrar a sua grandeza, e a vida independente no tempo e no espaço da qual falou com tanta emoção.

Há muito ele pressentira que a sua exigência pressupunha de sua parte um dom total e sem reservas, dizendo ele próprio que aqueles que fazem as revoluções no mundo, "aqueles que fazem o bem", só podem dormir no túmulo. Seguro de que os seus princí­ pios, para vencerem, deviam culminar na virtude e na felicidade de seu povo; consciente talvez de que exigia o impossível, descartou de antemão a própria retirada, ao declarar publicamente que se apunhalaria no dia em que perdesse a esperança nesse povo. Ei-lo, no entanto, que se desespera, já que duvida do próprio terror. ''A

revolução está paralisada, todos os princípios, enfraquecidos; só restam os barretes vermelhos usados pela intriga. O exercício do terror estragou o crime, assim como os licores fortes estragam o paladar." A própria virtude "une-se ao crime nos tempos de anar­ quia". Ele tinha dito que todos os crimes decorriam da tirania, que era o maior de todos, e, diante da incansável obstinação do crime, a própria Revolução recorria à tirania, tornando-se criminosa. Não se pode portanto reduzir o crime, nem as facções, nem o terrível espírito de gozo; é preciso perder a esperança nesse povo e subjugá­ lo. Mas também não se pode mais governar inocentemente. É ne'­ cessário, pois, sofrer o mal ou a ele servir, admitir que os princípios estão errados ou reconhecer que o povo e a humanidade são culpa­ dos. Então, Saint-Just desvia sua misteriosa e bela face: "Não ha­ veria muito a perder abandonando uma vida na qual se precisaria ser cúmplice ou testemunha muda do mal." Brutus, que devia se matar se não matasse os outros, começa matando os outros. Mas os outros são muitos, não se pode matar tudo. É preciso então morrer, demonstrando uma vez mais que a revolta, quando é des­ regrada, oscila da aniquilação à destruição de si próprio. É uma tarefa fácil; basta, ainda uma vez, seguir a lógica até o fim. No discurso em defesa de Robespierre, pouco antes de sua morte, Saint­ Just reafirma o grande princípio de sua ação, o mesmo que irá condená-lo: "Não sou de nenhuma facção e combaterei todas."

Reconhecia assim, e antecipadamente, a decisão da vontade geral, quer dizer, da Assembléia. Aceitava marchar para a morte por amor aos princípios e contra toda realidade, já que a opinião da Assem­ bléia só podia ser vencida, justamente, pela eloqüência e pelo fana­ tismo de uma facção. Mas, qual! , quando os princípios enfraque­ cem, os homens só têm um modo de salvá-los, que é morrer por eles. No calor abafado de Paris no mês de julho, Saint -J ust, recu­ sando ostensivamente a realidade e o mundo, confessa que entrega sua vida à decisão dos princípios. Dito isso, ele parece entender, de modo fugaz, uma outra verdade e termina com uma denúncia moderada de Billaud-Varenne e de Collot d'Herbois. "Desejo que les se justifiquem e que nós nos tornemos mais sensatos." O estilo

l: a guilhotina ficam suspensos por um instante. Mas a virtude não

· a sensatez, por ter orgulho demais. A guilhotina vai tornar a cair sobre essa cabeça bela e fria como a moral. A partir do momento

em que a Assembléia o condena, até o momento em que oferece a

nuca à lâmina, Saint-Just emudece. Este longo silêncio é mais im­ portante do que a própria morte. Ele lamentara que o silêncio rei­ nava em volta dos tronos e foi por isso que havia desejado falar tanto e tão bem. Mas no fim, desprezando a tirania e o enigma de um povo que não se conforma à Razão pura, ele próprio retoma ao silêncio. Seus princípios não podiam adequar-se ao que existe, as coisas não são o que deveriam ser; logo, os princípios estão sós, mudos e fixos. Abandonar-se a eles é na verdade morrer, e morrer de um amor impossível que é o contrário do amor. Saint-J ust mor­ re, e com ele morre a uma nova religião.

"Todas as pedras são para o ediflcio da liberdade", dizia Saint-Just. "Com as mesmas pedras, vocês podem construir­ lhe um templo ou um túmulo." Os próprios princípios do Contrato social presidiram à construção do túmulo que Napoleão veio lacrar. Rousseau, a quem não faltava bom senso, compreendera efetiva­ mente que a sociedade do Contrato só convinha aos deuses. Seus

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sucessores levaram-no ao pé da letra e trataram de criar a divinda­ de do homem. A bandeira vermelha, símbolo da lei marcial, e por­ tanto do Executivo, sob o antigo regime, torna-se símbolo revolu­ cionário no dia 1 O de agosto de 1 7 92. Transferência significativa,

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que aures comenta essa orma: os, o povo, e que somos o direito ... Não somos revoltados. Os revoltados estão nas Tulherias." Mas ninguém se torna deus com tanta facilidade. Os próprios deu­ ses antigos não morrem ao primeiro golpe, e as revoluções do sé­ culo XIX deverão completar a liquidação final do princípio divi­ no. Paris levanta-se então para colocar o rei uma vez mais sob a lei do povo, impedindo-o de restaurar uma autoridade de princípio.

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