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Lautréamont e a Banalidade

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 54-57)

Lautréamont demonstra que o desejo de parecer fica também es­ camoteado, no caso do revoltado, pela vontade de banalidade. Em ambos os casos, crescendo ou se rebaixando, o revoltado quer ser algo que não é, mesmo quando se tenha insurgido, para ser reco­ nhecido em seu verdadeiro ser. As blasfêmias e o conformismo de Lautréamont ilustram igualmente essa infeliz contradição que no seu caso resolve-se na vontade de não ser nada. Longe de haver nisso palinódia, como geralmente se pensa, a mesma fúria de ani-

! 1 u ilação explica o apelo de Maldoror à grande noite primitiva e as

I lanalidades laboriosas das Poésies.

Com Lautréamont, compreende-se que a revolta é adolescen­

le. Nossos grandes terroristas da bomba e da poesia mal saem da infância. Os Chants de Maldoror (Cantos de Maldoror) são obra de u m estudante quase genial; o seu aspecto patético surge justamen­

I'C das contradições de um coração de criança voltado contra a cri­

ação e contra si mesmo. Como o Rimbaud das Illuminations (Ilu­ minações) , lançado contra os limites do mundo, o poeta prefere fi­

car com o apocalipse e a destruição a aceitar a regra impossível que o faz ser o que é, num mundo como ele é.

'�presento-me para defender o homem", diz Lautréamont, sem simplicidade. Maldoror será, então, o anjo da piedade? Sim, de certa forma, ao ter piedade de si mesmo. Por quêr Isso ainda está para ser descoberto. Mas a piedade desiludida, ultraj ada, inconfessável e inconfessa, levá-lo-á a extremos singulares. Maldoror, segundo os seus próprios termos, aceitou a vida como uma ferida, proibindo o suicídio de curar a cicatriz (sic ). Como Rimbaud, ele é aquele que sofre e que se revoltou; mas, ao recuar misteriosamente para não ter que dizer que se revolta contra o que ele é, ele antecipa o eterno álibi do revoltado: o amor pela humani­ dade.

Simplesmente, aquele que se apresenta para defender o ho­ mem escreve ao mesmo tempo: "Mostre-me um homem que seja bom." Esse movimento perpétuo é o da revolta niilista. Revoltamo­ nos contra a injustiça feita a nós mesmos e à humanidade. Mas, no instante de lucidez em que se percebe simultaneamente a legitimi­ dade dessa revolta e sua impotência, o furor da negação acaba por se estender justamente àquilo que se pretendia defender. Não con­ seguindo reparar a injustiça pela edificação da justiça, prefere-se, pelo menos, afogá-la em uma injustiça ainda mais generalizada, que finalmente se confunde com a aniquilação. "O mal que você

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me fez é grande demais, e é grande demais o mal que eu lhe fiz para que seja voluntário." Para não se detestar a si próprio, seria necessário declarar-se inocente, audácia sempre impossível ao ho­ mem só; seu impedimento é que ele se conhece. Pode-se, pelo me­ nos, declarar que todos são inocentes, embora sejam tratados como culpados. Neste caso, Deus é o criminoso.

Dos românticos a Lautréamont, não há portanto progressos reais, a não ser na inflexão. Lautréamont ressuscita uma vez mais '

com alguns aperfeiçoamentos, a figura do Deus de Abraão e a ima- gem do rebelde luciferino. Ele coloca Deus "em um trono feito de excrementos humanos e de ouro", onde está sentado, "com um orgulho idiota, o corpo recoberto com uma mortalha feita de len­ çóis sujos, aquele que se auto-intitula o Criador". O horrível Eter-

" d /b " " b d'd " "

no, com cara e v1 ora , o an 1 o esperto , que vemos provo- car incêndios em que morrem velhos e crianças", rola, bêbado, na sarjeta ou vai procurar no bordel prazeres ignóbeis. Deus não está morto, mas foi destronado. Diante da divindade derrotada '

Maldoror é pintado como um cavaleiro convencional de manto negro. Ele é o Maldito. "Os olhos não devem testemunhar a feiúra que o Ser supremo, com um sorriso de ódio poderoso, me conce­ deu." Ele tudo renegou, "pai, mãe, Providência, amor, ideal, a fim de só pensar em si próprio". Torturado pelo orgulho, esse herói tem todas as ilusões do dândi metafísico. "Um rosto mais do que humano, triste como o universo, belo como o suicídio." Da mesma forma, como o revoltado romântico, sem esperança na justiça divi­ na, Maldoror tomará o partido do mal. Fazer sofrer e com isso ' '

sofrer, esse é o projeto. Os Chants são verdadeiras litanias do mal.

Nesse momento decisivo, não se defende mais a criatura. Muito pelo contrário, "atacar, por todos os meios, o homem, esse animal selvagem, e o criador ... " - esse é o propósito anunciado nos Chants. Perturbado pelo pensamento de ter Deus como inimigo, embria­ gado com a poderosa solidão dos grandes criminosos ("só eu con-

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l l':t a humanidade"), Maldoror vai lançar-se contra a criação e o

l ' U autor. Os Chants exaltam "a santidade do crime", anunciam

1 1 111a série crescente de "crimes gloriosos", e a estrofe 20 do canto l i i naugura até mesmo uma verdadeira pedagogia do crime e da violência.

Um ardor tão belo, nessa época, é convencional, não custa nada.

/\ verdadeira originalidade de Lautréamont não reside nisso.18 Os mmânticos sustentavam com precaução a oposição fatal entre a :ml idão humana e a indiferença divina, sendo expressões literárias

l lc.:ssa solidão o castelo isolado e o dândi. Mas a obra de Lautréamont

l:da de um drama mais profundo. Parece, efetivamente, que essa solidão lhe era insuportável e que, insurgindo-se contra a criação,

·!e tenha desejado destruir os seus limites. Longe de procurar re­ forçar o reino humano com torres armadas, ele quis confundir to­ los os reinos. Fez a criação remontar aos mares primitivos em que

a moral perde o seu sentido ao mesmo tempo em que todos os

problemas, entre os quais, segundo ele o mais assustador, o da imor­ talidade da alma. Ele não quis construir uma imagem espetacular do rebelde ou do dândi diante da criação, mas sim confundir o homem e o mundo na mesma aniquilação. Investiu contra a pró­ pria fronteira que separa o homem do universo. A liberdade total,

a do crime em particular, implica a destruição das fronteiras hu­ manas. Não basta lançar à execração todos os homens e a si pró­ prio.

É

preciso ainda fazer o reino humano remontar ao nível dos reinos do instinto. Encontra-se em Lautréamont essa recusa da consciência racional, esse retorno ao elementar, que é uma das marcas das civilizações em revolta contra si mesmas. Não se trata mais de parecer, por um esforço obstinado da consciência, mas sim de não mais existir como consciência.

I BEla faz a diferença entre o canto I, publicado em separado, de um byronismo bastante banal, e

os cantos seguintes, em que resplandece a retórica monstruosa. Maurice Blanchot observou a importância desse corte.

Todas as criaturas dos Chants são anfíbias, porque Maldoror recusa a terra e suas limitações. A flora é feita de algas e de sargaços. O castelo de Maldoror fica sobre as águas. Sua pátria é o velho oceano. O oceano, símbolo duplo, é simultaneamente o lugar de aniquilação e de reconciliação. Ele sacia a seu modo a intensa sede das almas fadadas ao desprezo por si mesmas e pelos outros, a sede de não mais existir. Os Chants seriam deste modo as nossas Meta­ morfoses, em que o sorriso antigo é substituído pelo riso de uma boca de contornos nítidos, imagem de um humor furioso e rosnante. Esse bestiário não consegue esconder todos os sentidos que se quis nele encontrar, mas revela, pelo menos, uma vontade de aniquila­ ção que tem sua origem no âmago mais obscuro da revolta. O "emburreçam-se" pascaliano assume, com Lautréamont, um sen­ tido literal. Parece que ele não conseguiu suportar a fria e implacá­ vel claridade em que é preciso durar para viver. "Minha subjetivi­ dade e um criador, isso é demais para um cérebro." Ele então re­ solveu reduzir a vida, e sua obra, ao fulgurante nado da sépia no meio de uma nuvem de tinta. O belo trecho em que Maldoror copula, em alto-mar, com a fêmea do tubarão, "uma cópula longa, casta e medonha", e sobretudo o relato significativo em que Maldoror, transformado em polvo, ataca o Criador são expressões claras de uma evasão fora das fronteiras do ser e de um atentado convulsivo contra as leis da natureza.

Aqueles que se vêem banidos da pátria harmoniosa, na qual justiça e paixão finalmente se equilibram, preferem ainda a solidão aos reinos amargos em que as palavras não têm mais s entido, em que reinam a força e o instinto de criaturas cegas. Esse desafio é ao mesmo tempo uma mortificação. A luta com o anjo do canto li termina com a derrota e o apodrecimento do anjo. Céu e terra tor­ nam a despencar nos abismos líquidos da vida primordial, com os quais se confundem. Dessa forma, o homem-tubarão dos Chants "só tinha conseguido a nova mudança das extremidades de seus

braços e de suas pernas como castigo expiatório por algum crime desconhecido". Há com efeito um crime ou a ilusão de um crime ( seria a homossexualidade ?) nessa vida mal conhecida de Lautréamont. Nenhum leitor dos Chants pode deixar de pensar que falta a esse livro uma Confissão de Stavroguin.

Na falta de confissão, é preciso ver nas Poésies o redobramento Iessa misteriosa vontade de expiação. O movimento próprio a cer­ J·as formas de revolta, que consiste, como veremos, em restaurar a razão ao termo da aventura irracional, em reencontrar a ordem à Força de desordem e em acorrentar-se voluntariamente com gri­ l hões muito mais pesados do que aqueles de que se tentou libertar, desenha-se, nessa obra, com uma tal vontade de simplificação e um tal cinismo que é preciso efetivamente que essa conversão te­ nha um sentido. Aos Chants que exaltavam o não absoluto sucede­ se uma teoria do sim absoluto; à revolta sem perdão, o conformis­ mo sem nuances. Isso, na lucidez. A melhor explicação dos Chants nos é dada, na verdade, pelas Poésies. "O desespero, ao alimentar­ ::;e com os preconceitos dessas fantasmagorias, conduz os literatos i nexoravelmente à abolição em massa das leis divinas e sociais, e à maldade teórica e prática." As Poésies denunciam também "a cul­ pabilidade de um escritor que despenca pelas encostas do nada e despreza a si próprio com gritos alegres". Mas, para esse mal, elas só têm um remédio - o conformismo metafísico: "Se a poesia da dúvida chega, assim, a um tal ponto de desespero melancólico e de maldade teórica, é por ser radicalmente falsa, simplesmente pelo motivo de que nela se discutem os princípios, e os princípios não devem ser discutidos." (Carta a Darassé.) Essas belas razões resu­ mem, portanto, a moral do menino de coro e do manual de instru­ ção militar. Mas o conformismo pode ser furioso, e por isso mes­ mo insólito. Quando se exaltou a vitória da águia maléfica sobre o dragão da esperança, pode-se repetir obstinadamente que só se canta a esperança, pode-se escrever: "Com a minha voz e a minha pom-

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pa dos grandes dias, eu clamo por ti, ó esperança abençoada, para que venhas a meu lar deserto", mas é preciso ainda convencer. Consolar a humanidade, tratá-la como irmã, voltar a Confúcio, Buda, Sócrates, Jesus Cristo, "moralistas que percorriam as aldeias morrendo de fome" (o que é historicamente duvidoso), são ainda projetos do desespero. Dessa forma, no âmago do vício, a virtude e a vida organizada têm um cheiro de nostalgia. Isso porque Lautréamont recusa a oração e, para ele, o Cristo é apenas um moralista. O que ele propõe, ou melhor, o que ele se propõe é o agnosticismo e o cumprimento do dever. Um belo programa como esse implica, desgraçadamente, a resignação, a suavidade do entardecer, um coração sem amargura, uma reflexão tranqüila. Lautréamont comove quando escreve subitamente: "Não conheço outra graça senão a de ter nascido." Mas já se adivinha o ranger de dentes quando ele acrescenta: "Um espírito imparcial a considera completa." Não há espírito imparcial diante da vida e da morte. O revoltado, com Lautréamont, foge para o deserto. Mas esse deser­ to do conformismo é tão lúgubre quanto Harrar. O gosto pelo absoluto esteriliza-o mais ainda, assim como o furor da aniquila­ ção. Assim como Maldoror queria a revolta total, Lautréamont, pelas mesmas razões, exige a banalidade absoluta. O grito da cons­ ciência que ele procurava sufocar no oceano primitivo, confundir com os urros da fera, que, em outro momento, ele tentava distrair na adoração à matemática, ele agora quer sufocar na aplicação de um triste conformismo. O revoltado tenta, então, tornar-se surdo a esse apelo ao ser que jaz também no fundo de sua revolta. Trata-se de não mais existir, quer ao aceitar ser qualquer coisa, quer ao re­ cusar-se a ser qualquer coisa.19 Em ambos os casos, trata-se de uma convenção sonhadora. A banalidade também é uma atitude.

O conformismo é uma das tentações niilistas da revolta que

19Da mesma forma, Fantasio quer ser este burguês de passagem.

O HOMEM REVOLTADO

( I mina uma grande parte de nossa história intelectual. Em todo \'aso, ela mostra como o revoltado que passa à ação, quando se esquece de suas origens, é tentado pelo maior dos conformismos. 1 �:1a explica portanto o século XX. Lautréamont, geralmente lou­ vado como o bardo da revolta pura, anuncia, muito pelo contrário,

o gosto pela subserviência intelectual que se dissemina pelo nosso

m undo. As Poésies nada mais são do que o prefácio de um "livro f"uturo", e todos a sonhar com esse livro futuro, realização ideal da revolta literária. Mas ele está sendo escrito hoje, apesar de

I ,autréamont, em milhões de exemplares, por ordem dos gabine­

les. O gênio, sem dúvida, não pode ser isolado da banalidade. Mas não se trata da banalidade dos outros; aquela que em vão nos pro­ pomos capturar e que por sua vez captura o criador, quando neces­ sário, até com a ajuda da polícia. Trata-se, para o criador, de sua própria banalidade, toda ela ainda a ser criada. Cada gênio é ao mesmo tempo estranho e banal. Ele nada será se for apenas um ou outro. Deveremos nos lembrar disso no que se refere à revolta. Ela tem os seus dândis e os seus serviçais, mas não reconhece neles os seus filhos legítimos.

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