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Surrealismo e Revolução

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 57-72)

Aqui trataremos apenas de Rimbaud. A seu respeito, tudo foi dito,

e mais até do que tudo, infelizmente. Vamos deixar claro, entretan­ to (porque isso se relaciona com o nosso assunto), que Rimbaud só foi o poeta da revolta em sua obra. Sua vida, longe de legitimar o mito que suscitou, ilustra apenas - uma leitura objetiva das cartas

de Barrar pode comprová-lo - uma aceitação do pior niilismo possível. Rimbaud foi deificado por ter renunciado ao gênio que possuía, como se essa renúncia implicasse uma virtude sobre-hu­ mana. Embora isso desqualifique os álibis de nossos contemporâ­ neos, é preciso dizer ao contrário que só o gênio implica uma virtu­ de, não a renúncia ao gênio. A grandeza de Rimbaud não reside nos primeiros brados em Charleville nem no tráfico de Barrar. Ela irrompe no instante em que, ao dar à revolta a linguagem mais estranhamente justa que ela jamais recebeu, ele expressa simulta­ neamente o seu triunfo e a sua angústia, a vida ausente no mundo e o mundo inevitável, o apelo ao impossível e a realidade áspera a ser abraçada, a recusa da moral e a nostalgia irresistível do dever. Nesse momento em que, trazendo em si mesmo a iluminação e o inferno, insultando e saudando a beleza, ele faz de uma contradi­ ção irredutível um canto duplo e alternado, ele é o poeta da revolta, e o maior de todos. A ordem em que foram concebidas as suas duas grandes obras não tem importância. Houve de qualquer modo muito pouco tempo entre as duas concepções, e todo artista sabe, com a certeza absoluta que nasce da experiência de toda uma vida, que Rímbaud produziu a Une saison en enfer (Uma estada no infer­ no) e as Illuminations (Iluminações) ao mesmo tempo. Apesar de tê­ las escrito uma após a outra, ele as sofreu no mesmo momento. Essa contradição, que o matava, era o seu verdadeiro gênio.

Mas onde está a virtude de quem se desvia da contradição, traindo o próprio gênio antes de tê-lo sofrido até o fim? O silêncio de Rimbaud não é para ele uma nova maneira de se revoltar. Pelo menos, não podemos mais afirmá-lo desde a publicação das cartas de Barrar. Sem dúvida, sua metamorfose é misteriosa. Mas tam­ bém há mistério na banalidade que ocorre a essas brilhantes jovens que o casamento transforma em máquinas de moedas ou de cro­ chê. O mito que se construiu em torno de Rimbaud supõe e afirma que nada mais era possível após a Saison en enfer. O que é impossí-

v ·I para o poeta coroado de dons, o criador inesgotável? Depois de

Moby Dick, O processo, Zaratustra, Os possuídos, o que imaginar? l (ntretanto, depois destas, nascem ainda grandes obras, que ensi­ nam e corrigem, que depõem a favor do que há de mais orgulhoso

no homem e só terminam com a morte do criador. Quem não la­ ! nentaria essa obra maior do que a Saison, da qual uma desistência nos privou?

A Abissínia seria, ao menos, um convento, foi o Cristo quem ·alou a boca de Rimbaud? Esse Cristo seria então aquele que se pavoneia atualmente nos guichês dos bancos, a julgar pelas cartas 1.:m que o poeta maldito só fala em seu dinheiro, que ele deseja ver "bem aplicado" e "rendendo dividendos regulares".20 Aquele que �.:xultava nos suplícios, que havia ofendido Deus e a beleza, que se ·trmava contra a justiça e a esperança, que se fortalecia no duro ambiente do crime, quer apenas casar-se com alguém que "tenha futuro". O mago, o vidente, o prisioneiro intratável, sobre o qual a prisão sempre volta a se fechar, o homem-rei da terra sem deuses, nunca deixa de carregar oito quilos de ouro em um cinto que lhe pesa no ventre e do qual se queixa, dizendo que provoca diarréia. Será esse o herói mítico que se propõe a tantos jovens, que não cospem no mundo, mas que morreriam de vergonha à simples idéia daquele cinto? Para sustentar o mito, é preciso ignorar essas cartas decisivas. Compreende-se que tenham sido tão pouco comentadas. São sacrílegas, como às vezes também o é a verdade. Grande e admirável poeta, o maior de seu tempo, oráculo fulgurante, eis o que é Rimbaud. Mas ele não é o homem-deus, o exemplo feroz, o monge da poesia que nos quiseram apresentar. O homem só voltou a encontrar sua grandeza no leito de hospital, na hora de um fim difícil, em que até mesmo a mediocridade da alma se torna

20É justo observar que o tom dessas cartas pode ser explicado pelos seus destinatários. Mas nelas não se sente o esforço da mentira. Nem uma palavra pela qual o antigo Rimbaud se traísse.

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comovente: "Como sou infeliz, como sou realmente infeliz ... e te­ nho comigo dinheiro que nem mesmo posso vigiar!" Por sorte, o grito lancinante dessas horas desgraçadas devolve Rimbaud a essa parcela da medida comum que, coincide involuntariamente, com a grandeza: "Não, não ... eu agora me revolto contra a morte!" O jovem Rimbaud ressuscita diante do abismo, e com ele a revolta desses tempos em que a imprecação contra a vida nada mais era do que o desespero da morte.

É

então que o traficante burguês se reúne ao adolescente torturado que amamos com tanto carinho. Eles se reúnem no terrível medo e na dor amarga em que final­ mente se reencontram os homens que não souberam cortejar a feli­ cidade. Só então começam a sua paixão e a sua verdade.

De resto, Barrar j á se achava realmente anunciado na obra, mas sob a forma da abdicação final. "O melhor, um sono bem embriagado na praia." A fúria da aniquilação, própria de todo revoltado, assume a sua forma mais comum. O apocalipse do crime, tal como representado por Rimbaud no príncipe que mata incansavelmente os seus súditos, o longo desregramento são te­ mas revoltados que os surrealistas irão reencontrar. Mas, final­ mente, prevalece o desânimo niilista; a luta, o próprio crime can­ sam a sua alma esgotada. O vidente que, se ousamos dizer, bebia para não esquecer acaba encontrando na embriaguez o pesado sono que os nossos contemporâneos bem conhecem. Dorme-se, na praia ou em Áden. E aceita-se, não mais ativamente mas de modo passivo, a ordem do mundo, mesmo que essa ordem seja degradante. O silêncio de Rimbaud prepara também o caminho para o silêncio do Império, que paira acima de espíritos resigna­ dos a tudo, exceto à luta. Essa grande alma, de repente submissa ao dinheiro, anuncia outras exigências, a princípio desmesura­ das, mas que depois irão colocar-se a serviço das polícias. Nada ser, eis o brado do espírito cansado de suas próprias revoltas. Trata-se então de um suicídio do espírito menos respeitável, afi-

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nal, do que o dos surrealistas e mais carregado de conseqüências.

O próprio surrealismo, ao termo deste grande movimento de re­

volta, só é significativo porque tentou continuar o único Rimbaud que nos comove. Ao tirar da carta sobre o vidente, e do método que �.:la pressupõe, as regras de uma ascese revoltada, ele ilustra essa l uta entre a vontade de ser e o desejo de aniquilação, entre o sim e

o não, que reencontramos em todos os estágios da revolta. Por to­

das essas razões, em vez de repetir os comentários intermináveis que cercam a obra de Rimbaud, parece preferível voltar a encontrá­ lo e segui-lo em seus herdeiros.

Revolta absoluta, insubmissão total, sabotagem como princípio, hu­ mor e culto do absurdo, o surrealismo, em sua intenção primeira, define-se como o processo de tudo, a ser sempre recomeçado. A recusa de todas as determinações é nítida, decisiva, provocadora. "Somos especialistas da revolta." Máquina de revirar o espírito, segundo Aragon, o surrealismo se forjou primeiramente no movi­

mento "dadá", de inegáveis origens românticas, e no dandismo anêmico.21 A não-significação e a contradição são cultivadas por si próprias. "Os verdadeiros dadás são contra Dada. Todo mundo é diretor de Dada." Ou ainda: "O que é bom? O que é feio? O que é grande, forte, fraco ... Não sei! Não sei!" Esses niilistas de salão estavam evidentemente ameaçados de agirem como escravos das ortodoxias mais rígidas. Mas há no surrealismo algo mais do que esse não-conformismo de fachada, justamente o legado de Rimbaud, que Breton assim resume: "Devemos deixar nisso toda a esperança?"

Um grande apelo à vida ausente arma-se de uma recusa total do mundo presente, como diz Breton, de modo soberbo: "Incapaz

"J arry, um dos mestres do dadaísmo, é a última encarnação, mais singular do que genial, do dândi metafísico.

de tirar partido do destino que me foi dado, atingido no que há de mais elevado em minha consciência por esse desafio de justiça, abs­ tenho-me de adaptar minha existência às condições ridículas da existência aqui embaixo." Segundo Breton, o espírito não conse­ gue fixar-se nem na vida nem no além. O surrealismo quer respon­ der a essa inquietação sem fim. Há um "grito do espírito que se volta contra si mesmo e está bastante decidido a esmagar desespe-

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radamente esses o stacu os . e protesta contra a mor e e a n 1- cula duração" de uma condição precária. O surrealismo coloca-se assim à disposição da impaciência. Ele vive em um certo estado de raiva ferida; ao mesmo tempo, vive no rigor e na intransigência orgulhosa, o que pressupõe uma moral. Desde as suas origens, o surrealismo, evangelho da desordem, viu-se na obrigação de criar uma ordem. Mas, inicialmente, só pensou em destruir - primei­ ro, pela poesia, no plano da imprecação, e em seguida pelos marte­ los materiais. O processo do mundo real tornou-se logicamente o processo da criação.

O antiteísmo surrealista é racional e metódico. Consolida-se, a princípio, em uma idéia da não-culpabilidade absoluta do ho­ mem, a quem é necessário restituir "todo o poder que ele foi ca­ paz de emprestar à palavra Deus". Como em toda a história da revolta, essa idéia da não-culpabilidade absoluta, oriunda do de­ sespero, pouco a pouco transformou-se em loucura pelo castigo.

Os surrealistas, ao mesmo tempo em que exaltavam a inocência humana, também acreditavam poder exaltar o assassinato e o sui­ cídio. Falaram do suicídio como uma solução, e Crevel, que con­ siderava tal solução "provavelmente a mais justa e definitiva", matou-se, assim como Rigaut e Vaché. Aragon pôde estigmatizar em seguida os tagarelas do suicídio. Mesmo assim, celebrar a aniquilação, não se atirando a ela com os outros, não honra nin­ guém. A esse respeito, o surrealismo preservou da "literatura", que ele abominava, as piores facilidades, justificando a perturba-

dora exclamação de Rigaut: "Vocês são todos poetas, mas eu, eu estou do lado da morte."

O surrealismo não parou aí. Escolheu como herói Violette Noziere ou o criminoso anônimo de direito comum, afirmando assim, diante do próprio crime, a inocência da criatura. Mas ou­ sou dizer também, e essa é a declaração da qual, desde 1 933, André Breton vem se arrependendo, que o ato surrealista mais simples consistia em descer à rua, revólver em punho, e atirar ao acaso no meio da multidão. Para quem recusa qualquer outra determinação que não a do indivíduo e de seu desejo, qualquer primado que não o do inconsciente, isso equivale na verdade a revoltar-se simultaneamente contra a sociedade e a razão. A teo­ ria do ato gratuito é o corolário da reivindicação de liberdade absoluta. Pouco importa que essa liberdade acabe por se resumir na solidão definida por Jarry: "Depois de ter recolhido todo o dinheiro do mundo, matarei todos e irei embora." O essencial é que os obstáculos sejam negados e que o irracional triunfe. Que significa, efetivamente, essa apologia do assassinato, senão que, em um mundo sem significação e sem honra, só é legítimo o de­ sejo de existir, sob todas as suas formas? O ímpeto da vida, o arrebatamento do inconsciente, o brado do irracional são as úni-

as verdades puras, que é preciso proteger. Tudo aquilo que se opõe ao desejo, e principalmente a sociedade, deve ser destruído sem piedade. Já se pode compreender a observação de Breton a respeito de Sade: "Certamente, o homem não mais consente aqui em unir-se à natureza, a não ser no crime; resta saber se essa não

é ainda uma das formas mais loucas, mais indiscutíveis, de amar."

Sente-se efetivamente que se trata do amor sem objeto, que é o das almas torturadas. Mas esse amor vazio e ávido, essa loucura pela posse é justamente a que a sociedade inevitavelmente atra­ palha. Por isso, Breton, que ainda carrega o estigma dessas de­ clarações, conseguiu fazer o elogio da traição e declarar (o que os

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surrealistas tentaram provar) que a violência é a única forma ade­ quada de expressão.

Mas a sociedade não é feita só de pessoas. Ela é também insti­ tuição. B em-nascidos demais p ara matar todo mundo, os surrealistas, pela própria lógica de sua atitude, chegaram a achar que, para liberar o desejo, era preciso primeiro demolir a socieda­ de. Resolveram servir à revolução de sua época. De Walpole e de Sade, por uma coerência que constitui o assunto deste ensaio, os surrealistas passaram a Helvétius e a Marx. Mas sente-se que não foi o estudo do marxismo que os levou à revolução.22 Ao contrário, o esforço incessante do surrealismo será, junto com o marxismo, conciliar as exigências que o conduziram à revolução. Pode-se di­ zer sem paradoxo que os surrealistas chegaram ao marxismo por causa daquilo mesmo que mais detestam nele atualmente. Quando se compartilhou o mesmo dilaceramento e conhecendo o fundo e a nobreza de sua exigência, hesitamos em lembrar a André Breton que o seu movimento decretou o estabelecimento de uma "autori­ dade implacável" e de uma ditadura, o fanatismo político, a recusa da livre discussão e a necessidade da pena de morte. Fica-se igual­ mente estarrecido diante do estranho vocabulário dessa época ("sa­ botagem", "delator" etc.), que é o da revolução policial. Mas esses frenéticos queriam uma "revolução qualquer", algo que os tirasse do mundo do comércio e dos compromissos, em que eram obriga­ dos a viver. Já que não podiam ter o melhor, preferiam o pior. N es­ te aspecto, eram niilistas. Não se davam conta de que aqueles den­ tre eles, que doravante continuariam fiéis ao marxismo, eram fiéis ao mesmo tempo ao seu niilismo primeiro. A verdadeira destrui­ ção da linguagem, que o surrealismo desejou com tanta obstina­ ção, não reside na incoerência ou no automatismo. Ela reside na 22Poder-se-iam contar nos dedos da mão os comunistas que chegaram à revolução pelo estudo do marxismo. Primeiro, a pessoa se converte, em seguida, lê as Escrituras e os Padres.

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palavra de ordem. De nada adiantou Aragon começar por uma denúncia da "desonrosa atitude pragmática", pois foi nela que aca­ bou encontrando a liberação total da moral, ainda que essa libera­ �ão tenha coincidido com uma outra servidão. Pierre Naville, o surrealista que então refletia com mais profundidade sobre o pro­ blema, ao procurar o denominador comum à ação revolucionária e

ação surrealista, situava-o, com perspicácia, no pessimismo, quer dizer, "o desígnio de acompanhar o homem em sua derrocada e de 11ada negligenciar para que essa perdição seja útil". Essa mescla de agostinismo e de maquiavelismo define, na verdade, a revolução do século XX; não se poderia dar expressão mais audaciosa ao niilismo da época. Os renegados do surrealismo foram fiéis ao niilismo na maior parte de seus princípios. De certa forma, queriam morrer. Se André Breton e alguns outros finalmente romperam ·om o marxismo, é que neles havia algo além do niilismo, uma segunda fidelidade ao que há de mais puro nas origens da revolta:

·les não queriam morrer.

Certamente, os surrealistas quiseram professar o materialis­ mo. "Na origem da revolta do encouraçado Potemkin, agrada-nos reconhecer esse terrível pedaço de carne." Mas neles não há, como nos marxistas, uma amizade, mesmo intelectual, por esse pedaço

de carne. A carniça representa apenas o mundo real que efetiva­ mente dá origem à revolta, mas contra si mesmo. Se ela tudo legi­ t ima, nada explica. Para os surrealistas, a revolução não era um fim que se realiza no dia-a-dia, na ação, mas sim um mito absoluto e ·onsolador. Ela era a "verdadeira vida, como o amor", da qual falava Éluard, que então não imaginava que seu amigo Kalandra viria a morrer daquela vida. Eles queriam o "comunismo do gê­ nio", não o outro. Esses curiosos marxistas declaravam-se em esta­ do de insurreição contra a história e celebravam o indivíduo herói­

co. "A história é regida por leis condicionadas pela covardia dos i ndivíduos." André Breton queria, ao mesmo tempo, a revolução e

o amor, que são incompatíveis. A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe. Mas aquele que ama um ser vivo, se realmente o ama, ele só aceita morrer por ele. Na realidade, a revo­ lução nada mais era para André Breton do que um caso particular da revolta, enquanto que para os marxistas, e em geral para todo pensamento político, só o contrário é verdadeiro. Breton não bus­ cava realizar, pela ação, a terra prometida que devia coroar a histó­ ria. Uma das teses fundamentais do surrealismo é que realmente não há salvação. A vantagem da revolução não era dar aos homens a felicidade, "o abominável conforto terrestre". Pelo contrário, no espírito de Breton, ela devia purificar e iluminar sua condição trá­ gica. A revolução mundial e os terríveis sacrifícios que ela implica só deveriam trazer um benefício: "impedir que a precariedade to­ talmente artificial da condição social escamoteie a precariedade real da condição humana" . Simplesmente, para Breton, este progresso era desmesurado. Seria a mesma coisa que dizer que a revolução deveria ser posta a serviço da ascese interior pela qual todo ser humano consegue transfigurar o real em sobrenatural, "vingança brilhante da imaginação humana" . Para André Breton, o sobrena­ tural ocupa a mesma posição que o racional para Hegel. Não se pode pensar, portanto, em oposição mais completa à filosofia polí­ tica do marxismo. As longas hesitações daqueles a quem Artaud chamava de Amiel da revolução podem ser facilmente explicadas. Os surrealistas eram mais diferentes de Marx do que o foram rea­ cionários como, por exemplo, Joseph de Maistre. Estes utilizam a tragédia da existência para recusar a revolução, ou seja, para man­ ter uma situação histórica. Os marxistas utilizam-na para legiti­ mar a revolução, isto é, para criar uma outra situação histórica. Ambos colocam a tragédia humana a serviço de seus fins pragmá­ ticos. No caso de Breton, ele utilizava a revolução para consumar a tragédia e, apesar do título de sua revista, colocava a revolução a serviço da aventura surrealista.

Explica-se, enfim, a ruptura definitiva, se pensarmos que o 1 1 1arxismo exigia a submissão do irracional, enquanto os surrealistas

H • haviam insurgido para defender o irracional até a morte. O mar­

xismo tendia à conquista da totalidade, e o surrealismo, como toda t·xperiência espiritual, à unidade. A totalidade pode exigir a sub­ lnissão do irracional, se o racional basta para conquistar o império

d mundo. Mas o desejo de unidade é mais exigente. Não lhe bas­

t a que tudo seja racional. Ele quer, sobretudo, que o racional e o irracional se reconciliem no mesmo nível. Não há unidade que pres­ s uponha uma mutilação.

Para André Breton, a totalidade só podia ser uma etapa, neces­ sária, talvez, mas com certeza insuficiente, no caminho da unida­

de. Reencontramos aqui o tema do Tudo ou Nada. O surrealismo tende ao universal, e a censura curiosa, porém profunda, que Breton Faz a Marx consiste justamente em dizer que este não é universal. Os surrealistas queriam conciliar o "transformar o mundo" de Marx com o "mudar a vida" de Rimbaud. Mas o primeiro leva à conquista da totalidade do mundo, e o segundo, à conquista da unidade da vida. Toda totalidade, paradoxalmente, é restritiva. Fi­ nalmente, ambas as fórmulas dividiram o grupo. Ao escolher Rimbaud, Breton mostrou que o surrealismo não era ação, mas ascese e experiência espiritual. Ele recolocou em primeiro plano aquilo que é a originalidade profunda de seu movimento, o que o torna tão precioso em uma reflexão sobre a revolta, a restauração do sagrado e a conquista da unidade. Quanto mais ele aprofundou essa originalidade, mais irremediavelmente se separou dos compa­ nheiros políticos, ao mesmo tempo em que se afastava de algumas de suas primeiras petições.

André Breton nunca mudou, na verdade, com relação à sua reivindicação do surreal, fusão do sonho e da realidade, sublima­ ção da velha contradição entre o ideal e o real. Conhece-se a solu­ ção surrealista: a irracionalidade concreta, o acaso objetivo. A po-

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