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Criação e Revolução

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 158-161)

Em arte, a revolta se completa e perpetua na verdadeira criação, não na crítica ou no comentário. A revolução, por sua vez, só pode afirmar-se numa civilização, não no terror ou na tirania. As duas questões que nosso tempo faz a uma sociedade a partir de agora no impasse, a criação é possíveP a revolução é possível?, reduzem-se a uma única, que diz respeito ao renascimento de uma civilização.

A revolução e a arte do século XX são tributárias do mesmo niilismo e vivem na mesma contradição. Ambas negam aquilo que afirmam, no entanto, em seu próprio movimento e ambas procu-

103A correção difere segundo os temas. Numa obra fiel à estética acima esboçada, o estilo variaria segundo os temas, continuando a linguagem própria do autor (o seu tom) como o lugar-comum que faz com que se manifestem as diferenças de estilo.

ram uma saída impossível, através do terror. A revolução contem­ porânea acredita inaugurar um novo mundo quando não é mais que o resultado contraditório do mundo antigo. Finalmente, a so­ ciedade capitalista e a sociedade revolucionária são apenas uma, na medida em que se escravizam ao mesmo meio - a produção in­ dustrial - e à mesma promessa. Uma faz sua promessa em nome de princípios formais que ela é incapaz de encarnar e que são nega­ dos pelos meios que ela emprega, a outra justifica sua profecia uni­ camente em nome da realidade e acaba mutilando a realidade. A sociedade da produção é apenas produtiva, não criadora.

Por ser niilista, a arte contemporânea debate-se também entre o formalismo e o realismo. Aliás, o realismo é tão burguês - neste caso, tão obscuro - quanto socialista, ou seja, edificante. O formalismo pertence tanto à sociedade, do passado, quando é abs­ tração gratuita, quanto à sociedade que se pretende do futuro; ele define então a propaganda. A linguagem destruída pela negação irracional perde-se no delírio verbal; subjugada pela ideologia determinista, ela se reduz a uma palavra de ordem. Entre ambas, fica a arte. Se o revoltado deve recusar ao mesmo tempo o furor do nada e a aceitação da totalidade, o artista deve escapar ao mesmo tempo do frenesi formal e da estética totalitária da realidade. O mundo de hoje é efetivamente uno, mas sua unidade é a do niilismo. A civilização só é possível se, ao renunciar ao niilismo dos princí­ pios formais e ao niilismo sem princípios, o mundo reencontrar o caminho de uma síntese criadora. O mesmo ocorre na arte, a era do comentário perpétuo e da reportagem agoniza; ela anuncia en­ tão a era dos criadores.

Mas a arte e a sociedade, a criação e a revolução devem, para tanto, reencontrar a origem da revolta, na qual recusa e consenti­ mento, singularidade e universal, indivíduo e história se equili­ bram na tensão mais crítica. A revolta não é em si mesma um ele­ mento de civilização. Mas ela precede toda civilização. Só ela, no

ALBERT CAMUS

impasse em que vivemos, permite esperar pelo futuro com que so­ nhava Nietzsche: "Em vez do juiz e do repressor, o criador." Fór­ mula que não deve permitir a ilusão ridícula de uma cidade dirigida por artistas. Ela ilumina apenas o drama de nossa época, na qual o trabalho, inteiramente subjugado à produção, deixou de ser cria­ dor. A sociedade industrial só abrirá os caminhos para uma civili­ zação ao devolver ao trabalhador a dignidade do criador, isto é, ao aplicar seu interesse e sua reflexão tanto ao próprio trabalho quan­ to ao seu produto. A civilização, de agora em diante necessária, não poderá separar, quer nas classes, quer no indivíduo, o traba­ lhador e o criador; assim como a criação artística não pensa em separar a forma e o conteúdo, o espírito e a história.

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assim que ela reconhecerá em todos a dignidade afirmada pela revolta. Seria injusto, e aliás utópico, que Shakespeare dirigisse a sociedade dos sapateiros. Mas, seria igualmente desastroso que a sociedade dos sapateiros imaginasse prescindir de Shakespeare. Shakespeare sem o sapateiro serve de álibi à tirania. O sapateiro sem Shakespeare é absorvido pela tirania quando não contribui para ampliá-la. Toda criação nega em si mesma o mundo do senhor e do escravo. A horrenda sociedade de tiranos e escravos em que vegetamos só en­ contrará sua morte e sua transfiguração no nível da criação.

Mas o fato de a criação ser necessária não quer dizer que seja possível. Em arte, uma época criadora se define pela ordem de um estilo aplicado à desordem de um tempo. Ela forma e formula as paixões contemporâneas. Já não basta portanto, para um criador, reproduzir Mme de La Fayette, numa época em que os nossos príncipes morosos não têm mais o lazer do amor. Atualmente, quan­ do as paixões coletivas se sobrepuseram às paixões individuais, é sempre possível dominar, pela arte, o êxtase do amor. Mas o pro­ blema inevitável é também dominar as paixões coletivas e a luta histórica. O objeto da arte, para desgosto dos plagiadores, esten­ deu-se da psicologia à condição humana. Quando a paixão do tempo

O HOMEM REVOLTADO

coloca em jogo o mundo inteiro, a criação quer dominar o destino inteiro. Mas, ao mesmo tempo, mantém diante da totalidade a afir­ mação da unidade. A criação é então simplesmente colocada em risco, primeiramente por si própria e, em seguida, pelo espírito de totalidade. Criar, hoje em dia, é criar perigosamente.

Para dominar as paixões coletivas, é preciso, na realidade, vivê­ las e experimentá-las, pelo menos relativamente. Ao mesmo tempo em que as vivencia, o artista é por elas devorado. Disso decorre que nossa época é mais a da reportagem do que a da obra de arte. Falta-lhe um emprego correto do tempo. O exercício dessas pai­ xões, finalmente, acarreta oportunidades de morte maiores do que no tempo do amor ou da ambição, já que a única maneira de viver autenticamente a paixão coletiva é dispor-se a morrer por ela e para ela. A maior oportunidade de autenticidade atualmente é a maior oportunidade de malogro para a arte. Se a criação é impossível em meio a guerras e revoluções, não teremos criadores, porque revo­ lução e guerra são o nosso quinhão. O mito da produção indefini­ da traz em si a guerra, assim como a nuvem, a tempestade. As guerras devastam então o Ocidente e matam Péguy. Apenas erguida dos escombros, a máquina burguesa vê caminhar ao seu encontro a máquina revolucionária. Péguy nem mesmo teve tempo de renas­ cer; a guerra que se avizinha matará todos aqueles que, talvez, teriam sido Péguy. Se um classicismo criador se mostrasse entretanto pos­ sível, deve-se reconhecer que, mesmo ilustrado em um único nome, ele seria obra de uma geração. As oportunidades de malogros, no século da destruição, só podem ser compensadas pela oportunida­ de do número, quer dizer, pela oportunidade de que entre cada dez artistas autênticos, um pelo menos sobreviva, assuma as primeiras palavras de seus irmãos e consiga encontrar em sua vida simulta­ neamente o tempo da paixão ou o tempo da criação. Querendo ou não, o artista não pode mais ser um solitário, a não ser no triunfo melancólico que deve a todos os seus pares. A arte revoltada tam-

bém acaba revelando o "Nós existimos" e, com isto, o caminho de uma feroz humildade.

Enquanto isso a revolução conquistadora, no desvario de seu niilismo, ameaça aqueles que, a seu despeito, pretendem manter a unidade na totalidade. Um dos sentidos da história atual, e mais ainda da história de amanhã, é a luta entre os artistas e os novos conquistadores, entre as testemunhas da revolução criadora e os construtores da revolução niilista. Quanto ao resultado da luta, só podemos ter ilusões razoáveis. Pelo menos, sabemos, a partir de agora, que ela deve ser realizada. Os conquistadores modernos podem matar, mas parecem não conseguir criar. Os artistas sabem criar, mas não podem realmente matar. Só como exceção se encon­ tram assassinos entre os artistas. A longo prazo, a arte em nossas sociedades revolucionárias deveria portanto morrer. Mas então a revolução terá vivido. Cada vez que ela mata num homem o artista que ele teria podido ser, ela se extenua um pouco mais. Se, afinal, o mundo se curvasse à lei dos conquistadores, isso não provaria que a quantidade é soberana, e sim que este mundo é inferno. Neste inferno mesmo, o lugar da arte coincidiria ainda com o da revolta vencida, esperança cega e vazia na profundeza dos dias desespera­ dos. Ernst Dwinger, em seu Diário siberiano, fala desse tenente ale­ mão que, há anos prisioneiro em um campo no qual reinavam o frio e a fome, construíra para si, com teclas de madeira, um piano silencioso. Lá, naquele amontoado de miséria, em meio a uma multidão esfarrapada, ele compunha uma estranha música que só ele escutava. Desta forma, lançados ao inferno, misteriosas melo­ dias e imagens cruéis da beleza esquecida nos trariam sempre, em meio ao crime e à loucura, o eco dessa insurreição harmoniosa, que comprova ao longo dos séculos a grandeza humana.

Mas o inferno só tem um tempo, a vida um dia recomeça.

Talvez a história tenha um fim; nossa tarefa, no entanto, não é terminá-la, mas criá-la à imagem daquilo que doravante sabemos

ser verdadeiro. A arte, pelo menos, nos ensina que o homem não se resume apenas à história, que ele encontra também uma razão de ser na ordem da natureza. Para ele, o grande Pã não está morto. Sua revolta mais instintiva, ao mesmo tempo em que afirma o valor e a dignidade comum a todos, reivindica obstinadamente, para com isto satisfazer sua fome de unidade, uma parte intacta do real cujo nome é a beleza. Pode-se recusar toda a história, aceitando no en­ tanto o mundo das estrelas e do mar. Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza estão condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência. Todos os grandes reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Cervantes, Moliere e Tolstoi souberam criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e de digni­ dade que existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela. Sua regra, que contesta o real ao mesmo tempo em que lhe confere sua unidade, é também a da revolta. Pode-se recusar eternamente a injustiça sem deixar de saudar a natureza do homem e a beleza do mundo? Nossa resposta é sim. Esta moral, ao mesmo tempo insubmissa e fiel, é em todo o caso a única a ilumi­ nar o caminho de uma revolução verdadeiramente realista. Ao manter a beleza, preparamos o dia do renascimento em que a civi­ lização colocará no centro de sua reflexão, longe dos princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude viva que fundamenta a dignidade comum do mundo e do homem, e que agora devemos definir diante de um mundo que a insulta.

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