• Nenhum resultado encontrado

Romance e Revolta

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 150-158)

É

possível separar a literatura de consentimento, que coincide em geral com os séculos antigos e os séculos clássicos, da literatura de dissidência, que começa com os tempos modernos. Observa-se en­ tão a escassez do romance na primeira. Quando ele existe, salvo raras exceções, não diz respeito à história mas à fantasia (Teágenes e Caricléia, ou Astraia ). São novelas, não romances. Na segunda, ao contrário, desenvolve-se realmente o romance, um gênero que não parou de enriquecer-se e ampliar até nossos dias, paralelamente ao movimento crítico e revolucionário. O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta, e traduz, no plano estético, a mes­ ma ambição.

"História fingida, escrita em prosa", diz Littré sobre o roman­ ce.

É

só issor Um crítico católico96 escreveu entretanto: "A arte, qualquer que seja o seu objetivo, faz sempre uma concorrência culpada a Deus."

É

mais correto efetivamente falar de uma con­ corrência a Deus, a propósito do romance, do que de uma concor­ rência ao estado civil. Thibaudet expressava uma idéia semelhante, quando dizia a propósito de Balzac: "A comédia humana é a Imita­ ção de Deus pai." O esforço da grande literatura parece ser criar

ALBERT CAMUS

universos fechados ou tipos acabados. O Ocidente, em suas gran­ des criações, não se limita a reproduzir a vida cotidiana. Ele se propõe, sem cessar, grandes imagens que o excitam e lança-se à sua procura.

Afinal, escrever ou ler um romance são ações insólitas. Cons­ truir uma história através de um novo arranjo de fatos verdadeiro não tem nada de inevitável nem de necessário. Se até mesmo a ex­ plicação banal - pelo prazer do criador e do leitor - fosse verda­ deira, deveríamos nos perguntar qual necessidade faz a maior par­ te dos homens sentir prazer e se interessar por histórias inventadas. A crítica revolucionária condena o romance puro como a evasão de uma imaginação ociosa. Por sua vez, a linguagem comum chama de "romanescas" o relato mentiroso do jornalista inábil. Há alguns lustros era comum dizer, inaceitavelmente, que as moças eram "ro­ mances". Entendia-se com isso que essas criaturas ideais não leva­ vam em conta as realidades da existência. De modo geral, sempre se considerou que o romanesco se separava da vida, e que a embelezava ao mesmo tempo que a traía. A maneira mais simples e banal de encarar a expressão romanesca consiste portanto em ver nisso um exercício de evasão. O senso comum une-se à crítica re­ volucionária.

Mas do que se procura fugir pelo romance? De uma realida­ de julgada por demais esmagadorar As pessoas felizes também lêem romances, e é um fato constatado que o extremo sofrimento tira o gosto pela leitura. Por outro lado, o universo romanesco tem certamente menos peso e presença do que este outro univer­ so, onde seres de carne e osso nos assediam sem parar. Por que mistério, entretanto, Adolphe nos parece um personagem bem mais familiar que Benjamin Constant, e o conde Mosca que nos­ sos moralistas profissionaisr Balzac concluiu um dia uma longa conversa sobre a política e o destino do mundo, dizendo: "E, agora, falemos de coisas sérias", referindo-se a seus romances. O

O HOMEM REVOLTADO

gosto pela evasão não basta para explicar a gravidade indiscutível do mundo romanesco, nossa obstinação em levar realmente a sé­ rio os incontáveis mitos que o gênio romanesco nos propõe há dois séculos. A atividade romanesca supõe certamente uma espé­ cie de recusa do real, mas esta recusa não é uma simples fuga. Deve-se ver nisso o movimento de retirada da bela alma que, segundo Hegel, cria para si própria, em sua ilusão, um mundo factício em que só a moral reina? O romance edificante, contudo, acha-se bastante longe da grande literatura; e o melhor dos ro­ mances água-com-açúcar, Paulo e Virgínia, obra na verdade an­

gustiante, nada oferece a título de consolo.

A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da pleni­ tude, toda realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos ines­ perados e correm, como a água de Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostal­ gia, no mais profundo de sua pátria. Mas essa visão que, pelo me­ nos no conhecimento, os reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fugaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preci­ so nunca mais existir.

Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existên­ cias uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então,

dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as ro­ manceamos. Neste sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável neces­ sidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade.

O desejo de posse não é mais que uma outra forma do desejo de durar; é ele que constitui o delírio impotente do amor. Nenhum ser, nem mesmo o mais amado, e que nos ama com maior paixão, jamais fica em nosso poder. Na terra cruel em que os amantes às vezes morrem separados e nascem sempre divididos, a posse total de um ser, a comunhão absoluta por toda uma vida é uma exigên­ cia impossível. O desejo de posse é a tal ponto insaciável que ele pode sobreviver ao próprio amor. Amar, então, é esterilizar a pes­ soa amada. O vergonhoso sofrimento do amante, a partir de agora solitário, não é tanto de não ser mais amado, mas de saber que o outro pode e deve amar ainda. Em última instância, todo homem devorado pelo desejo alucinado de durar e de possuir deseja aos seres que amou a esterilidade ou a morte. Esta é a verdadeira re­ volta. Aqueles que não exigiram, pelo menos uma vez, a virginda­ de absoluta dos seres e do mundo, que não tremeram de nostalgia e de impotência diante de sua impossibilidade, aqueles que, então, perpetuamente remetidos a sua nostalgia pelo absoluto, não se des­ truíram ao tentar amar pela metade, não podem compreender a

realidade da revolta e seu furor de destruição. Mas os seres esca­ pam sempre e nós lhes escapamos também; eles não têm contornos bem-delineados. A vida, deste ponto de vista, é sem estilo. Ela não é senão um movimento em busca de sua forma sem nunca encontrá­ la. O homem, assim dilacerado, persegue em vão essa forma que lhe daria os limites entre os quais ele seria soberano. Que uma única coisa viva tenha sua forma neste mundo, e ele estará reconci­ liado!

Não há, enfim, quem quer que, a partir de um nível elementar de consciência, não se esgote buscando as fórmulas ou as atitudes que dariam à sua existência a unidade que lhe falta. Parecer ou fazer, o dândi ou o revolucionário exigem a unidade, para existir, e para existir neste mundo. Como nesses patéticos e miseráveis rela­ cionamentos que sobrevivem às vezes por muito tempo, porque um dos parceiros espera encontrar a palavra, o gesto ou a situação que farão de sua aventura uma história terminada, e formulada, no tom certo, cada um cria para si e se propõe a última palavra. Não

basta viver, é preciso um destino, e sem esperar pela morte.

É

justo

portanto dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão que ergue o coração acima do mundo dis­ perso, do qual no entanto não pode se desprender, é a paixão pela unidade. Ela não desemboca numa evasão medíocre, mas na rei­ vindicação mais obstinada. Religião ou crime, todo esforço huma­ no obedece, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida a forma que ela não tem. O mesmo movimento, que pode levar à adoração do céu ou à destruição do homem, conduz da mesma forma à criação romanesca, que dele recebe, então, sua se­ riedade.

Que é o romance, com efeito, senão esse universo em que a ação encontra sua forma, em que as palavras finais são pronuncia­ das, os seres entregues aos seres, em que toda vida passa a ter a cara

ALBERT CAMUS

do destinor97 O mundo romanesco não é mais que a correção deste nosso mundo, segundo o destino profundo do homem. Pois trata­ se efetivamente do mesmo mundo. O sofrimento é o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, per­ seguem até o fim o seu destino, e nunca houve heróis tão perturbadores quanto os que chegam aos extremos de sua paixão, Kirilov e Stavroguin, Mme Graslin, J ulien Sorel ou o príncipe de C leves.

É

aqui que perdemos sua medida, pois eles terminam aquilo que nós nunca consumamos.

Mme de La Fayette tirou a Princesa de Cleves da mais palpitan­ te das experiências. Ela é sem dúvida Mme de Cleves, e no entanto não o é. Onde está a diferença? A diferença é que Mme de La Fayette não entrou para o convento e ninguém à sua volta morreu de desespero. Ninguém duvida que ela tenha ao menos conhecido os momentos dilacerantes desse amor sem igual. Mas não houve ponto final, ela sobreviveu a ele, ela prolongou-o ao deixar de vivê­ lo, e finalmente ninguém, nem ela própria, teria conhecido o seu desenho, se ela não lhe tivesse dado a curva nua de uma linguagem sem defeitos. Também não há história mais romanesca e mais bela do que a de Sophie Tonska e de Casimir nas Plêiades, de Gobineau. Sophie, mulher sensível e bela, que faz compreender a confissão de Stendhal: "Só as mulheres de grande caráter podem me fazer fe­ liz", obriga Casimir a confessar-lhe seu amor. Habituada a ser amada, ela impacienta-se diante daquele que a vê todos os dias sem, no entanto, nunca abandonar uma calma irritante. Casimir confessa seu amor mas num tom de arrazoado jurídico. Ele a estu­ dou, conhece-a tanto quanto a si mesmo, está seguro de que este

97 Ainda quando o romance só exprima a nostalgia, o desespero, o inacabado, não deixa de criar, a

forma e a salvação. Dar nome ao desespero é superá-lo. A literatura desesperada é uma contradi­ ção em termos.

O HOMEM REVOLTADO

amor, sem o qual não consegue viver, não tem futuro. Decidiu por­ tanto manifestar-lhe ao mesmo tempo esse amor e sua inutilidade, doar-lhe a sua fortuna - ela é rica, o gesto não tem maior conse­ qüência -, encarregando-a de fornecer-lhe uma modesta pensão que lhe permita instalar-se no subúrbio de uma cidade escolhida ao acaso (Vilna), e ali esperar pela morte, na pobreza. Casimir re­ conhece, de resto, que a idéia de receber de Sophie o necessário para viver representa uma concessão à fraqueza humana, a única que ele se permitirá, com o envio, vez por outra, de uma página em branco dentro de um envelope, no qual ele escreverá o nome de Sophie. Depois de mostrar-se indignada, em seguida, transtorna­ da e, por fim, melancólica, Sophie irá aceitar; tudo se desenrolará como Casimir previra. Ele vai morrer, em Vilna, de sua triste pai­ xão. O romanesco tem assim sua lógica. Uma bela história não funciona sem essa continuidade imperturbável que nunca existe nas situações vividas, mas que se encontra no devaneio, a partir da realidade. Se Gobineau tivesse ido a Vilna, teria ficado entediado e teria retornado, ou teria ficado apenas por comodismo. Mas Casimir não conhece a vontade de mudar e as manhãs de cura. Ele vai até o fim, como Heathcliff, que desejará superar a própria morte para chegar ao inferno.

Eis portanto um mundo imaginário, porém criado pela corre­ ção deste mundo real; um mundo no qual o sofrimento, se quiser, pode durar até a morte; no qual as paixões nunca são distraídas, no qual os seres ficam entregues à idéia fixa e estão sempre presentes uns para os outros. Nele o homem finalmente dá a si próprio a forma e o limite tranqüilizador que busca em vão na sua contin­ gência. O romance fabrica o destino sob medida. Assim é que ele faz concorrência à criação e provisoriamente vence a morte. Uma análise detalhada dos romances mais célebres mostraria, em pers­ pectivas diferentes a cada vez, que a essência do romance reside nessa perpétua correção, sempre voltada para o mesmo sentido,

que o artista efetua sobre sua própria experiência. Longe de ser moral ou puramente formal, essa correção visa primeiro à unidade e traduz por aí uma necessidade metafísica. Neste nível o romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sen­ sibilidade nostálgica ou revoltada. Poder-se-ia estudar essa busca da unidade no romance francês de análise e em Melville, Balzac, Dostoievski ou Tolstoi. Mas um breve confronto entre duas tenta­ tivas que se situam nos extremos opostos do mundo romanesco, a

criação proustiana e o romance americano destes últimos anos, será suficiente para os nossos propósitos.

O romance americano98 pretende encontrar sua unidade redu­ zindo o homem quer ao elementar, quer às suas reações e ao seu comportamento. Ele não escolhe um sentimento ou uma paixão, dos quais nos dará uma imagem privilegiada, como em nossos ro­ mances clássicos. Ele recusa a análise, a busca de uma motivação psicológica fundamental que explicaria e resumiria a conduta de um personagem. Por isso, a unidade desse romance não é mais que um vislumbre de unidade. Sua técnica consiste em descrever os homens por seu aspecto externo, nos seus gestos mais indiferentes, em reproduzir sem comentários o seu discurso, até em suas repeti­ ções,99 consiste, afinal, em agir como se os homens fossem defini­ dos inteiramente por seus automatismos cotidianos. Neste nível mecânico, na verdade, os homens se parecem, explicando-se, desta forma, o curioso universo em que todos os personagens parecem intercambiáveis, mesmo em suas particularidades físicas. Esta téc­ nica só é chamada de realista por um mal-entendido. Além do fato de o realismo na arte, como veremos, ser uma noção in com preensí­ vel, fica bastante evidente que este mundo romanesco não visa à

98Trata-se, naturalmente, do romance "duro" dos anos 30 e 40, e não do admirável florescimento

do romance americano do século XIX.

99Mesmo em Faulkner, grande escritor desta geração, o monólogo interior só reproduz a superfí­ cie do pensamento.

reprodução pura e simples da realidade, mas sim à sua estilização mais arbitrária. Ele nasce de uma mutilação, e de uma mutilação voluntária, efetuada sobre o real. A unidade assim obtida é uma unidade degradada, um nivelamento dos seres e do mundo. Parece que, para esses romancistas, é a vida interior que priva as ações humanas da unidade e arrebata os seres uns aos outros. Esta sus­ peita é em parte legítima. Mas a revolta, que está na origem dessa arte, só pode encontrar sua satisfação fabricando a unidade a partir dessa realidade interior, não ao negá-la. Negá-la totalmente é refe­ rir-se a um homem imaginário. O romance de terror é também um romance água-com-açúcar do qual tem a facilidade formal. Ele é edificante à sua maneira. 100 A vida dos corpos, reduzida a si mes­

ma, produz, paradoxalmente, um universo abstrato e gratuito, cons­ tantemente negado por sua vez pela realidade. Este romance, de­ purado de vida interior, em que os homens parecem ser observa­ dos através de uma vidraça, ao atribuir-se como tema único o ho­ mem supostamente médio, acaba logicamente colocando em cena o patológico. Explica-se, dessa forma, o número considerável de "inocentes" utilizados nesse universo. O inocente é o assunto ideal de um empreendimento como este, já que só é definido, por intei­ ro, por seu comportamento. Ele é o símbolo deste mundo desespe­ rado, em que autômatos infelizes vivem na coerência mais mecâni­ ca, que os romancistas americanos erigiram, diante do mundo mo­ derno, como um protesto patético, mas estéril.

Quanto a Proust, seu esforço foi criar, a partir da realidade, contemplada com obstinação, um mundo fechado, insubstituível, que só pertencesse a ele e marcasse sua vitória sobre a transitorie­ dade das coisas e sobre a morte. Mas os seus meios são opostos. Consistem acima de tudo numa escolha harmoniosa, uma meticu- 1''Bernardin de Saint-Pierre e o marquês de Sade, com símbolos diferentes, são os criadores do romance de propaganda.

ALBERT CAMUS

losa coleção de momentos privilegiados que o romancista vai esco­ lher no mais recôndito de seu passado. Imensos espaços mortos são assim rejeitados pela vida, porque nada deixaram na lembran­ ça. Se o mundo do romance americano é o dos homens sem memó­ ria, o mundo de Proust não é em si mesmo mais que uma memória. Trata-se, apenas, da mais difícil e da mais exigente das memórias, a que recusa a dispersão do mundo como ele é, e que tira de um perfume redescoberto o segredo de um novo e antigo universo. Proust escolhe a vida interior e, nesta, aquilo que é mais interior do que ela própria, em lugar daquilo que no real se esquece, ou seja, o mecânico, o mundo cego. Mas dessa recusa do real ele não faz derivar a negação do real. Ele não comete o erro, simétrico ao do romance americano, de suprimir o que é mecânico. Reúne ao con­ trário em uma unidade superior a lembrança perdida e a sensação presente, o pé torcido e os dias felizes de outrora.

É

difícil voltar aos locais da felicidade e da juventude. As mo­ ças em flor riem e tagarelam eternamente diante do mar, mas aque­ le que as contempla perde pouco a pouco o direito de amá-las, assim como as que ele amou perdem o poder de serem amadas. Esta é a melancolia de Proust. Ela foi suficientemente forte nele para provocar uma recusa veemente de todo o ser. Mas o gosto pelos rostos e pela luz prendiam-no ao mesmo tempo a este mun­ do. Ele não aceitou que as férias felizes ficassem perdidas para sempre. Ele assumiu a tarefa de recriá-las de novo, demonstrando, contra a morte, que o passado seria reencontrado no final dos tem­ pos, sob a forma de um presente imorredouro, mais verdadeiro e mais rico do que na origem. A análise psicológica do Tempo perdido nada mais é do que um meio poderoso. A verdadeira grandeza de Proust foi ter escrito o Tempo reencontrado, que reúne um mundo disperso, dando-lhe uma significação ao p róprio nível do dilaceramento. Sua difícil vitória, na véspera da morte, foi ter po­ dido extrair da transitoriedade das formas, unicamente pelos ca-

O HOMEM REVOLTADO

minhas da lembrança e da inteligência, os símbolos vibrantes da unidade humana. O desafio mais seguro que uma obra deste tipo pode fazer à criação é apresentar-se como um todo, um mundo fechado e unificado. Isto define as obras sem arrependimentos.

Já se disse que o mundo de Proust era um mundo sem deus. Se

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 150-158)