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O Novo Evangelho

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 72-76)

( ) Contrato social é em p rimeiro lugar uma pesquisa sobre a le­ gitimidade do poder. Mas livro de direito, e não de fato,30 em

11 · nhum momento ele é uma coletânea de observações socioló­ r(icas. Sua pesquisa refere-se a princípios e por isso mesmo já é

t'< lntestação. Ela supõe que a legitimidade tradicional, suposta­ IIICnte de origem divina, não é adquirida. Ela anuncia portanto 1 1 111a outra legitimidade e outros princípios. O Contrato social é 1 :1 mbém um catecismo, do qual conserva o tom e a linguagem dogmática. Como 1 7 8 9 completa as conquistas das revoluções i nglesa e americana, Rousseau leva a seus limites lógicos a teo-

1·ia do contrato que se encontra em Hobbes. O Contrato social d:'í. uma larga dimensão e uma explicação dogmática à nova re­ ligião cujo deus é a razão, confundida com a natureza, e cujo l't:presentante na terra, em lugar do rei, é o povo considerado

l' IU sua vontade geral.

O ataque contra a ordem tradicional é tão evidente que, desde o primeiro capítulo, Rousseau se concentra em demonstrar a anterio­ ridade do pacto dos cidadãos, que cria o povo, em relação ao pacto

· ntre o povo e o rei, que funda a realeza. Até então, Deus fazia os reis, que por sua vez faziam os povos. A partir do Contrato social, os povos se criam sozinhos antes de criarem os reis. Quanto a Deus, é :�ssunto encerrado provisoriamente. Na ordem política, temos aqui o ·quivalente à revolução de Newton. O poder não busca mais sua origem no arbitrário, mas no consentimento geral. Em outras pala­ vras, ele não é mais o que é, mas o que deveria ser. Por sorte, segundo

Rousseau, aquilo que é não pode ser separado do que deve ser. O

'"Ver Discurso sobre a desigualdade. "Comecemos portanto por afastar os fatos, pois eles não têm nenhuma relação com a questão."

ALBERT CAMUS

povo é soberano "apenas pelo fato de que ele é sempre tudo aquilo que ele deve ser". Diante dessa declaração de princípio, pode-se muito bem dizer que a razão, obstinadamente invocada naqueles tempos, não é muito bem tratada nesse trabalho. Fica claro que, com o Con­ trato social, assistimos ao nascimento de uma mística, já que a vonta­ de geral é postulada como o próprio Deus. "Cada um de nós", diz Rousseau, "coloca a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos no nosso corpo cada indiví­ duo, como parte indivisível do todo."

Essa pessoa política, que se tornou soberana, é também definida como pessoa divina. Tem aliás todos os atributos da pessoa divina. Ela é efetivamente infalível, já que o soberano não pode querer o abuso. "Sob a lei da razão, nada se faz sem causa." Ela é totalmente livre, se é verdade que a liberdade absoluta é a liberdade em relação a si próprio. Desse modo, Rousseau declara que é contra a natureza do corpo político o soberano impor-se uma lei que ele não possa infringir. Ela é também inalienável, indivisível e, finalmente, visa até mesmo resolver o grande problema teológico, a contradição entre a onipotência e a inocência divinas. A vontade geral é realmente coer­ citiva; seu poder não tem limites. Mas o castigo que imporá a quem recusar-lhe obediência não é mais que uma forma de "forçá-lo a ser livre". A deificação se completa quando Rousseau, separando o so­ berano de suas próprias origens, chega a distinguir a vontade geral da vontade de todos. Isso pode ser deduzido logicamente das pre­ missas de Rousseau. Se o homem é naturalmente bom, se nele a na­ tureza se identifica com a razão,31 ele irá exprimir a excelência da razão, desde apenas que se expresse livre e naturalmente. Ele não pode mais, portanto, voltar atrás em sua decisão, que paira de agora em diante acima dele. A vontade geral é em primeiro lugar a expres­ são da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo Deus.

31Toda ideologia é constituída contra a psicologia.

O HOMEM REVOLTADO

Eis por que as palavras que mais se encontram no Contrato social

Hfio "absoluto", "sagrado", "inviolável". O corpo político assim defi­ nido, cuja lei é um mandamento sagrado, não é mais que um produ­

i o de substituição do corpo místico da cristandade temporal. O Con­

/mto social termina, aliás, com a descrição de uma religião civil e faz

de Rousseau um precursor das sociedades contemporâneas, que ex­ cluem não só a oposição, mas até a neutralidade. Nos tempos moder­

n s, Rousseau foi na verdade o primeiro a instituir a profissão de fé

çivil. Foi também o primeiro a justificar a pena de morte numa socie­ dade civil e a submissão absoluta do súdito à realeza do soberano. "É para não ser vítima de um assassino que aceitamos morrer, caso nos !·ornemos assassinos." Justificação curiosa, mas que estabelece fir­ memente que é preciso saber morrer se o soberano mandar, e que se deve, caso necessário, dar-lhe razão contra si próprio. Essa noção mística justifica o silêncio de Saint-Just desde a sua prisão até o ca­ dafalso. Desenvolvida convenientemente, irá explicar igualmente os acusados entusiastas dos julgamentos stalinistas.

Encontramo-nos aqui no alvorecer de uma nova religião, com seus mártires, ascetas e santos. Para avaliar bem a influência que esse evangelho passou a ter, é preciso ter uma idéia do tom inspira­ do das proclamações de 1 7 89. Fauchet, diante das ossadas desco­ bertas na Bastilha, exclamou: "Chegou o dia da revelação ... Os ossos levantaram-se ao som da voz da liberdade francesa; eles de­ põem contra os séculos da opressão e da morte, profetizam a rege­ neração da natureza humana e da vida das nações." Vaticinou, ain­ da: ''Atingimos o âmago dos tempos. Os tiranos estão maduros." É o momento da fé perplexa e generosa, o instante em que um povo admirável derruba em Versalhes o cadafalso e a roda.32 Os cadafal­ sos surgem como os altares da religião e da injustiça. A nova fé não 12M esmo idílio na Rússia, em 1905, em que o Soviete de São Petersburgo desftla com cartazes pedindo a abolição da pena de morte, e também em 1917.

pode tolerá-los. Mas chega um momento em que a fé, se se tornar dogmática, erige os seus próprios altares e exige adoração incondi­ cional. Então ressurgem os cadafalsos e, apesar dos altares, da li­ berdade, dos juramentos e das festas da Razão, as missas da nova fé deverão celebrar-se com sangue. Em todo o caso, para que 1 7 89 marque o início do reinado da "humanidade santa"33 e de "Nosso Senhor gênero humano",34 é preciso que desapareça primeiro o soberano destronado. O assassinato do rei-padre vai sancionar a nova era, que perdura até hoje.

A Execu§ão do Rei

Saint-Just introduziu na história as idéias de Rousseau. No pro­ cesso do rei, o essencial de sua argumentação consiste em dizer que o rei não é inviolável e deve ser julgado pela assembléia, não por um tribunal. Quanto a seus argumentos, ele os deve a Rousseau. Um tribunal não pode ser juiz entre o rei e o soberano. A vontade geral não pode ser citada diante dos juízes comuns. Ela está acima de todas as coisas. A inviolabilidade e a transcendência dessa von­ tade são então proclamadas. Sabe-se que o grande tema do proces­ so era ao contrário a inviolabilidade da pessoa real. A luta entre a graça e a justiça encontra sua ilustração mais provocadora em 1 7 8 9, em que se opõem até a morte duas concepções da transcendência. De resto, Saint-Just está perfeitamente consciente da grandeza do que está em jogo: "O espírito com que julgaremos o rei será o mesmo com que estabeleceremos a República."

33Vergniaud.

34 Anacharsis Cloots.

O famoso discurso de Saint-Just tem todo o aspecto de um ·studo teológico. "Luís, um estranho entre nós", eis a tese do ado­ k:scente acusador. Se um contrato, natural ou civil, pudesse ainda u nir o rei ao seu povo, haveria uma obrigação mútua; a vontade do povo não poderia colocar-se como juiz absoluto para pronunciar a sentença absoluta. Trata-se portanto de demonstrar que não há

I

enhum vínculo entre o povo e o rei. Para provar que o povo é em

st mesmo a verdade eterna, é preciso mostrar que a realeza é em si mesma o crime eterno. Saint-Just coloca, portanto, como axioma qu.e todo rei

rebelde ou usurpador. Ele é rebelde contra o povo, up soberama absoluta ele usurpa. A monarquia não é de modo a lgum um rei, "ela é o crime". Não um crime, mas o crime, diz Saint-Just, isto é, a profanação absoluta. Esse é o sentido preciso e ao mesmo tempo extremo da expressão de Saint-Just, cuj o signifi­

·ado foi ampliado em demasia:35 "Ninguém pode reinar inocente­ m

nt.e." Todo rei é culpado, e, pelo fato de um homem querer ser ret, et-lo fadado à morte. Saint-Just diz exatamente a mesma coisa q uando demonstra em seguida que a soberania do povo é "coisa s.agrada". Os cidadãos são invioláveis e sagrados, só podendo so­

h·er a coerção da lei, expressão de sua vontade comum. Luís é o único a não se beneficiar dessa inviolabilidade especial e do ampa­ ro da lei, pois está situado fora do contrato. Ele não faz parte da vontade geral, sendo ao contrário, por sua própria existência, blasfemado r dessa vontade onipotente. Ele não é "cidadão", única maneira de participar da jovem divindade. "Que é um rei compa­ rado a um francês?" Portanto, ele deve ser julgado, e apenas isso.

Mas quem irá interpretar essa vontade geral e pronunciar a sentença? A Assembléia, que detém por suas origens uma delega­ ção dessa vontade e participa, como um concílio inspirado, da nova

''Ou, pelo menos, cujo significado foi antecipado. Quando Saint-J ust diz esta frase ele ainda não

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divindade. O povo deverá em seguida ratificar essa sentença? Sabe­ se que o esforço dos monarquistas na Assembléia acaba se concen­ trando neste ponto. A vida do rei podia assim ser subtraída à lógica

dos juristas-burgueses, para ser ao menos confiada às paixões es­ pontâneas e à compaixão do povo. Mas, ainda nisso, Saint-Just leva a sua lógica a extremos, servindo-se da oposição inventada por Rousseau entre a vontade geral e a vontade de todos. Mesmo que todos perdoassem, a vontade geral não pode fazê-lo. O pró­ prio povo não pode apagar o crime de tirania. Em Direito, a vítima

não pode retirar sua queixa? Não estamos tratando de Direito, estamos lidando com teologia. O crime do rei é ao mesmo tempo um pecado contra a ordem suprema. Um crime é cometido, de­ pois perdoado, punido ou esquecido. Mas o crime de realeza é permanente, está ligado à pessoa do rei, à sua existência. Até o Cristo, que pode perdoar os culpados, não pode absolver os falsos deuses. Eles devem desaparecer ou vencer. Se o povo hoje perdoa, amanhã vai encontrar o crime intacto, mesmo que o criminoso esteja dor­ mindo na paz das prisões. Só há portanto uma saída: "Vingar o

d . " assassinato do povo com a morte o re1.

O discurso de Saint-Just visa apenas fechar, uma por uma, todas as saídas para o rei, exceto a que leva ao cadafalso. Se as premissas do Contrato social são aceitas, esse exemplo é logicamente inevitável. Depois dele, enfim, "os reis fugirão para o deserto e a natureza retomará os seus direitos". De nada adiantou a Conven­ ção votar uma ressalva, dizendo que ela não prejulgava ao julgar Luís XVI ou ao pronunciar uma medida de segurança. Ela furta­ va-se então aos próprios princípios, tentando escamotear, com uma

chocante hipocrisia, a sua verdadeira missão, que era fundar o novo absolutismo. Jacques Roux, pelo menos, estava dizendo a verdade do momento ao chamar o rei Luís de "último", marcando dessa forma o fato de que a verdadeira revolução, já feita no plano da economia, realizava-se então no plano da filosofia e era um crepús-

O HOMEM REVOLTADO

culo dos deuses. A teocracia foi atacada em 17 89 em seu princípio · morta em 1 793 em sua encarnação. Brissot tem razão em dizer:

''O monumento mais sólido de nossa revolução é a filosofia."36 No dia 2 1 de janeiro, com o assassinato do rei-padre, termina o que se chamou significativamente de a paixão de Luís XVI. Sem d LlVida, é um escândalo repugnante ter apresentado como um gran­ de momento de nossa história o assassinato público de um homem fi·aco e bom. Esse cadafalso não marca um apogeu, longe disso. Resta ao menos o fato de que, por seus considerandos e conseqüên­ cias, o julgamento do rei é o ponto de partida de nossa história

·ontemporânea. Ele simboliza a dessacralização dessa história e a

dcsencarnação do deus cristão. Até esse momento, Deus introdu­ :,ia-se na história através dos reis. No entanto, mata-se o seu repre­

:-> ·ntante histórico, não há mais rei. Só há, portanto, uma aparência

de Deus relegada ao céu dos princípios.37

Os revolucionários podem reivindicar o Evangelho. Na ver­ ( hde, eles dão um golpe terrível no cristianismo, do qual este não �e recuperou. Parece realmente que a execução do rei, seguida, ·orno se sabe, de cenas histéricas de suicídios ou de loucura, se desenrolou como um todo na consciência do que se realizava. Luís X VI parece ter duvidado, às vezes, de seu direito divino, embora

l ·nha sistematicamente rejeitado todos os projetos de lei que aten­ t assem contra esta crença. Mas a partir do momento em que sus­ peita ou tem noção do seu destino, parece identificar-se, como mostra sua linguagem, com a sua missão divina, para que se diga

que o atentado contra a sua pessoa visa ao rei-Cristo, à encarnação ( li.vina, e não à carne covarde do homem. Seu livro de cabeceira no 'templo é a Imitafão de Cristo. A suavidade e a perfeição que esse ho-

1 nem, apesar de sua sensibilidade mediana, demonstrou em seus últi- 1''A Vendéia, guerra religiosa, lhe dá razão mais uma vez.

mos momentos; suas observações indiferentes a respeito de tudo que pertence ao mundo exterior e, finalmente, a sua breve fraqueza no ca­ dafalso solitário, ao som do terrível tambor que lhe encobria a voz, tão longe desse povo por quem esperava ser ouvido, tudo isso nos deixa imaginar que não era um Capeta que morria, mas sim o Luís de direi­ to divino e, com ele, de certa forma, a cristandade temporal. Para me­ lhor ressaltar esse elo sagrado, o seu confessor o ampara em seu mo­ mento de fraqueza, ao relembrar-lhe a sua "semelhança" com o deus de dor. E, então, Luís XVI se recupera e retoma a linguagem desse deus: "Beberei deste cálice até a última gota." Depois, deixa-se condu­ zir, trêmulo, pelas mãos ignóbeis do carrasco.

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