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Três Possessos

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 93-99)

uando Herzen, ao fazer a apologia do movimento niilista - na verdade, apenas enquanto via nele uma maior emancipação em re­ lação às idéias prontas -, escreveu: ''Aniquilar o passado é engen­ l rar o futuro" , ele vai retomar a linguagem de Bielinski. Kotliarevski, falando naqueles que eram também chamados de ra­

l icais, definia-os como apóstolos, "que julgavam ser necessário renunciar completa

/

nte ao passado e forjar a personalidade hu-

mana segundo outro molde. A reivindicação de Stirner ressurge com a rejeição de toda história e a decisão de forjar o futuro, não mais em função do espírito histórico, mas em função do indiví­ duo-rei. O indivíduo-rei, porém, não pode alçar-se sozinho ao po­ ier. Ele tem necessidade dos outros e cai então em uma contradi­ ção niilista, que Pisarev, Bakunin e N etchaiev tentarão resolver )

da negação, até que o terrorismo mate a própria contradição, no sacrifício e no assassinato simultâneos.

O niilismo dos anos 1 860 começou, aparentemente, pela nega­ ção mais radical possível, rejeitando qualquer ação que não fosse puramente egoísta. Sabe-se que o próprio termo "niilismo" foi in­ ventado por Turgueniev no romance Pais e filhos, cujo herói, Bazarov,

era o retrato fiel desse tipo de homem. Pisarev, ao escrever a crítica desse romance, proclamou que os niilistas reconheciam Bazarov como o seu modelo. "Nada temos para nos vangloriarmos", dizia Bazarov, "a não ser a estéril consciência de compreender, até um certo ponto, a esterilidade daquilo que existe."

a isso", perguntam-lhe, "que chamam niilismo?"

a isso que chamam niilismo." Pisarev louva esse modelo que, para maior clareza, define dessa maneira: "Sou um estranho para a ordem existente das coisas, não devo misturar-me a elas." O único valor reside, portanto, no egoísmo raciona�

Ao negar tudo aquilo que não é auto-satisfação, Pisarev decla­ ra guerra à filosofia, à arte - julgada absurda -, à moral menti­ rosa, à religião e até mesmo aos costumes e à polidez. Ele constrói a teoria de um terrorismo intelectual que faz pensar no dos nossos surrealistas. A provocação é erigida em doutrina, mas com uma profundidade da qual Raskolnikov dá uma idéia exata. No auge desse belo arroubo, Pisarev formula seriamente a questão de saber se se pode matar a própria mãe, e responde: "E por que não, se eu o desejo e acho isso útil?"

A partir daí, é surpreendente não vermos os nossos niilistas ocupados em fazer fortuna, conseguir um título ou ainda desfruta­ rem cinicamente de tudo que lhes é oferecido. A bem dizer, não faltam niilistas em boa situação na sociedade. Mas eles não cons­ troem uma teoria com o seu cinismo, preferindo em todas as ocasiões render, visivelmente, uma homenagem e sem conseqüência à virtu­ de. Quanto àqueles de que tratamos, eles se contradiziam no desa­ fio que lançavam à sociedade e que em si mesmo era a afirmação de

um valor. Diziam-se materialistas, seu livro de cabeceira era Fàrça

o matéria, de Buchner. Mas um deles confessava: "Cada um de nós

·stá disposto a ir para o cadafalso e dar a sua cabeça por Moleschott

· Darwin", colocando dessa forma a doutrina bem acima da maté­

ria. Nesse estágio, a doutrina tinha um ar de religião e de fanatis­ mo. Para Pisarev, Lamarck era um traidor, porque Darwin tinha razão. Quem quer que nesse meio falasse de imortalidade da alma <.:ra então excomungado. Wladimir Weidle5 tem portanto razão ao

lefinir o niilismo como um obscurantismo racionalista. Para eles, a razão anexava curiosamente os preconceitos da fé; a menor con­ I Tadição desses individualistas não era escolher, como protótipo de razão, o mais vulgar cientificismo. Eles negavam tudo, menos os valores mais contestáveis, os do Sr. Bornais.

É

no entanto ao resolverem fazer da razão mais tacanha um artigo de fé que os niilistas darão a seus sucessores um modelo. Eles não acreditavam em nada, a não ser na razão e no interesse. Mas, em vez do ceticismo, escolhem o apostolado, tornando-se socialistas. Esta é a sua contradição. Como os espíritos adolescen­ tes, eles sentiam ao mesmo tempo a dúvida e a necessidade de crer. Sua solução pessoal consiste em atribuir à sua negação a intransigência e a paixão da fé. Aliás, que há de espantoso nisso? Weidlé cita a frase desdenhosa do filósofo Soloviev, ao denunciar essa contradição : "O homem descende do macaco; portanto, amemo-nos uns aos outros." No entanto, a verdade de Pisarev en­ contra-se nesse dilema. Se o homem é a imagem de Deus, então não importa que ele s

ê(a

privado do amor humano, chegará o dia em que será saciado. Mas, se é criatura cega, que erra nas trevas numa condição cruel e limitada, ele tem necessidade de seus seme­ lhantes e de seu amor efêmero. Onde pode refugiar-se a caridade, afinal, a não ser no mundo sem deus? No outro, a graça provê a

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todos, mesmo aos ricos. Aqueles que negam tudo compreendem pelo menos que a negação é uma desgraça. Podem então tornar-se acessíveis à desgraça de outrem, negando enfim a si próprios. Pisarev não recuava diante da idéia de matar a mãe, e no entanto encontrou palavras adequadas para falar da injustiça. Queria desfrutar egoisticamente a vida, mas foi preso e depois ficou louco. Tanto cinismo ostentado levou-o, enfim, a conhecer o amor, a exilar-se dele e por ele sofrer até o suicídio, reencontrando dessa forma, no lugar do indivíduo-rei que desejava criar, o velho homem miserá­ vel e sofredor, cuja grandeza é a única a iluminar a história.

Bak:unin encarnava, mas de um outro modo espetacular, as mes­ mas contradições. Ele morreu na véspera da epopéia terrorista.56 Aliás, ele rejeitou antecipadamente os atentados individuais, de­ nunciando "os Brutus de sua época". Respeitava-os, contudo, já que acusou Herzen de ter criticado abertamente o crlentado frus­ trado de Karakosov, que atirou no czar Alexandre li, em 1 866. Este respeito tinha suas razões. Bak:unin influiu no rumo dos acon­ tecimentos, da mesma forma que Bielinski e os niilistas, no sentido da revolta individual. Mas ele contribuiu com algo mais: um ger­ me de cinismo político que vai tomar corpo como doutrina com Nechaiev, levando o movimento revolucionário a extremos.

Mal saído da adolescência, Bak:unin sente-se transtornado, sa­ cudido pela filosofia hegeliana, como que por uma prodigiosa co­ moção. Nela mergulha dia e noite, "até a loucura", diz ele. "Eu não via mais nada além das categorias de Hegel." Quando sai dessa ini­ ciação, é com a exaltação dos neófitos. "Meu eu pessoal está morto para sempre, minha vida é a verdadeira vida. Ela se identifica, de alguma forma, com a vida absoluta." Ele precisa de pouco tempo para perceber os perigos desta confortável posição. Aquele que en­ tendeu a realidade não se insurge contra ela, antes se rejubila; ei-lo

561 876.

O HOMEM REVOLTADO

conformista. Nada em Bakunin o predestinava a essa filosofia de cão de guarda.

É

possível também que sua viagem à Alemanha e a lasti­ l l lável opinião que passou a ter dos alemães o tenham preparado mal para admitir, com o velho Hegel, que o Estado prussiano fosse o depositário privilegiado dos fins do espírito. Mais russo que o pró­ prio czar, a despeito de seus sonhos universais, ele não podia em todo

o caso subscrever a apologia da Prússia, quando ela se apoiava numa

lógica bastante frágil que afirmava: ''A vontade dos outros povos não

1·cm direitos, pois o povo é o representante dessa vontade (do Espíri­ l·o) que domina o mundo." Nos anos 1 840, por outro lado, Bak:unin descobria o socialismo e o anarquismo francês, dos quais ele veicu-

1 u algumas tendências. Bak:unin rejeita com estardalhaço a ideolo­

gia alemã. Ele tinha chegado até o absoluto, assim como chegaria até a destruição total, com o mesmo movimento apaixonado, com a ru­

ria do "Tudo ou Nada", que nele vamos encontrar em estado puro. Depois de ter louvado a Unidade absoluta, Bak:unin lança-se ao maniqueísmo mais elementar. Sem dúvida ele quer, e de uma vez por todas, "a Igreja universal e autenticamente democrática da

I iberdade". Eis a sua religião; ele pertence ao seu século. No en­ tanto, não é certo que sua fé a esse respeito tenha sido total. Em sua Confissão a Nicolau I, seu tom parece sincero quando diz que só conseguiu acreditar na revolução final "por um esforço sobrenatu­ ral e doloroso, ao sufocar à força a voz interior que me sussurrava

o absurdo de minhas esperanças". Seu imoralismo teórico é bem

mais firme, pelo co

rio, e aí o vemos constantemente agitar-se com a naturalidade e a alegria de um animal fogoso. A história só é regida por dois princípios, o Estado e a revolução social, a revolu­ ção e a contra-revolução, que não é o caso de conciliar, mas que estão empenhados em uma luta mortal. O Estado é o crime. "O menor e mais inofensivo Estado é ainda criminoso em seus so­ nhos." A revolução, portanto, é o bem. Esta luta, que ultrapassa a política, é também a luta dos princípios luciferinos contra o princí-

pio divino. Bakunin reintroduz explicitamente na ação revoltada um dos temas da revolução romântica. Proudhonjá decretava que Deus é o Mal e bradava: "Venha, Satã, caluniado pelos medíocres e pelos reis! " Bakunin deixa também entrever toda a profundidade de uma revolta aparentemente política: "O Mal é a revolta satânica contra a autoridade divina, revolta na qual vemos ao contrário o germe profícuo de todas as emancipações humanas. Como os fraticelli da Boêmia no século XIV(?), reconhecemos os socialistas revolucionários de hoje por estas palavras: 'Em nome daquele a quem se fez um grande mal."'

A luta contra a criação será travada, portanto, sem piedade e sem moral, e a única salvação reside no extermínio. "A paixão pela des­ truição é uma paixão criadora." As páginas inflamadas de Bakunin sobre a revolução de 1 84857 proclamam com veemência essa alegria de destruir. "Festa sem começo nem fim", diz ele. Na verdade, tanto

para ele quanto para todos os oprimidos a revolução é a festa, no sentido sagrado da palavra. Isso faz lembrar o anarquista francês Coeurderoy, 58 que em seu livro H urrah, ou la révolution par les cosaques (Hurra, ou a Rt:volufão segundo os cossacos) conclamava as hordas do Norte a tudo devastarem. Ele também queria "atear fogo à casa do pai" e exclamava que só havia esperança no dilúvio humano e no caos. A revolta é entendida através dessas manifestações em estado puro, em sua verdade biológica. Por isso, Bakunin foi o único de seu tempo a criticar o governo dos sábios com uma perspicácia excepcio­ nal. Contra toda abstração, ele defendeu a causa do homem comple­ to, totalmente identificado com a sua revolta. Se ele glorifica o mal­ feitor, o líder das revoltas camponesas, se seus modelos preferidos são Stenka Razine e Pugachev, é porque esses homens lutaram, sem doutrina e sem princípios, por um ideal de liberdade pura. Bakunin 57 Confissão, pp. 102 e seg. Rieder.

58Claude Harmel e Alain Sergent. Histoire de l'anarchie (História da anarquia), vol I.

introduz no âmago da revolução o princípio nulo da revolta. "A tem­ pestade e a vida, é disso que precisamos. Um mundo novo, sem leis

c, conseqüentemente, livre."

Mas um mundo sem leis é um mundo livre? Eis a pergunta que toda revolta faz. Se fosse preciso pedir uma resposta a Bakunin, ela não seria duvidosa. Apesar de se opor, em todas as circunstân­ cias e com a mais extrema lucidez, ao socialismo autoritário, a par­ tir do instante em que ele próprio define a sociedade do futuro, ele

·t apresenta, sem se preocupar com a contradição, como uma dita­

dura. Os estatutos da Fraternidade internacional ( 1 864- 1 867), que ele mesmo redigiu, já estabelecem a subordinação absoluta do in­ divíduo ao comitê central durante o período da ação. O mesmo ocorre em relação ao tempo que se seguirá à revolução. Ele espera para a Rússia liberada "um forte poder ditatorial... um poder man­ tido por partidários, iluminado por seus conselhos, fortalecido por sua livre colaboração, mas que não seja limitado por nada nem por ninguém". Bakunin, da mesma forma que seu inimigo Marx, con­ tribuiu para a doutrina leninista. O sonho do império eslavo revo­ lucionário, aliás, tal como evocado por Bakunin diante do czar, é o mesmo, até nos detalhes de fronteira, que foi realizado por Stalin. Oriundas de um homem que soubera dizer que a força motriz da Rússia czarista era o medo e que recusava a teoria marxista de uma ditadura de partido, essas concepções podem parecer contraditó­ rias. Mas a contradição mostra que as origens dessas doutrinas são em parte niilis� Pisarev justifica Bakunin. Este certamente que­ ria a liberdade total, mas buscava-a através de uma total destrui­ ção. Destruir tudo implica construir sem fundações; as paredes têm de ser mantidas de pé pela força dos próprios braços. Aquele que rejeita todo o passado, sem dele preservar nada daquilo que poderia servir para revigorar a revolução, está condenado a só en­ contrar j ustificação no futuro e, enquanto espera, encarrega a polí­ cia de justificar o provisório. Bakunin anunciava a ditadura, não a

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despeito de seu desejo de destruição, mas de acordo com ele. Na verdade, nada podia desviá-lo desse caminho, já que na fogueira da negação total os valores éticos também haviam derretido. Por sua Confissão ao czar, abertamente obsequiosa, mas que escreveu para ser libertado, ele introduz de modo espetacular o jogo duplo na política revolucionária. Através desse Catecismo do revolucioná­ rio, supostamente escrito na Suíça, com N echaiev, ele dá forma, ainda que viesse a renegá-lo em seguida, a esse cinismo político que não mais deixaria de influir no movimento revolucionário e que o próprio N echaiev ilustrou de maneira provocadora.

Figura menos conhecida do que Bakunin, mais misteriosa, po­ rém mais significativa para os nossos propósitos, Nechaiev levou a coerência do niilismo tão longe quanto pôde. Um espírito quase sem contradição. Ele surgiu em 1 8 66, nos meios da intelligentsia revolu­ cionária, e morreu obscuramente em janeiro de) 8 82. Nesse breve espaço de tempo, nunca deixou de seduzir: os estudantes à sua volta, o próprio Bakunin e os revolucionários refugiados, e os seus carce­ reiros, enfim, que ele convenceu a participarem de uma conspiração maluca. Quando ele surge, já está seguro do que pensa. Se Bakunin ficou a tal ponto fascinado por ele que o cumulou de mandatos ima­ ginários, é porque reconhecia nessa figura implacável o que ele havia recomendado que se fosse e, de certa forma, o que ele próprio teria sido se tivesse conseguido curar o seu coração. N echaiev não se con­ tentou em dizer que era preciso unir-se "ao mundo selvagem dos bandidos, este verdadeiro e único ambiente revolucionário da Rússia", nem em escrever uma vez mais, como Bakunin, que de agora em diante a política seria a religião, e a religião, a política. Ele se fez o monge cruel de uma revolução desesperada; o seu sonho mais evi­ dente era fundar a ordem assassina que permitiria propagar e final­ mente entronizar a divindade sinistra que se decidira a servir.

Ele não dissertou apenas sobre a destruição universal; sua ori­

ginalidade foi reivindicar friamente, para aqueles que se devpta-

O HOMEM REVOLTADO

vam à revolução, ao "Tudo é permitido" e, efetivamente, tudo se permitir. "O revolucionário é um homem condenado antecipada­ mente. Ele não deve ter relações românticas, nem coisas ou seres amados. Ele deveria despojar-se até de seu nome. Nele, tudo deve concentrar-se em uma única paixão: a revolução." Se a história, in-

lependente de qualquer princípio, é realmente feita apenas da luta entre a revolução e a contra-revolução, não há outra saída a não ser abraçar por inteiro um desses valores, para nele morrer ou ressusci­ tar. N echaiev leva essa lógica a extremos. Com ele, pela primeira vez a revolução vai separar-se explicitamente do amor e da amizade.

Já se entrevêem em N echaiev as conseqüências da psicologia arbitrária veiculada pelo pensamento de Hegel. Este, no entanto, admitira que o reconhecimento mútuo das consciências pode dar-se no ajustamento do amor. 59 No entanto, N echaiev recusara-se a colo­ car em primeiro plano de sua análise esse "fenômeno" que, segundo de, "não tinha a força, a paciência e o trabalho do negativo". Ele decidira mostrar as consciências numa luta de caranguejos cegos, que tateiam obscuramente na areia das praias, para travarem por fim um combate mortal, deixando de lado essa outra imagem, igualmen­

te legítima, dos faróis que se buscam com dificuldade na noite, até que se ajustam para produzir uma claridade maior. Aqueles que se amam, os amigos, os amantes, sabem que o amor não é somente uma fulguração, mas também uma longa e dolorosa luta nas trevas pelo reconhecimento e_a_reconciliação definitivos. Afinal, se a virtude his­ tórica é reconhecida como prova de paciência, o verdadeiro amor é tão paciente quanto o ódio. A reivindicação de justiça não é, aliás, a única que pode justificar ao longo dos séculos a paixão revolucioná­ ria, que se apóia também em uma exigência dolorosa da amizade por todos, até mesmo, e sobretudo, diante de um céu inimigo. Aqueles

59Ele pode ocorrer também na admiração, em que a palavra "mestre" assume então um sentido maior: aquele que forma sem destruir.

que morrem pela justiça, sempre foram chamados de "irmãos". Para todos eles, a violência está reservada ao inimigo, em favor da comu­ nidade dos oprimidos. Mas, se a revolução é o único valor, ela exige tudo e até mesmo a delação; portanto, o sacrifício do amigo. A partir de agora, a violência será voltada contra todos, em favor de uma idéia abstrata. Foi necessário o advento do reino dos possuídos para que se dissesse de repente que a revolução, em si mesma, era mais importante do que aqueles que ela queria salvar, e que a amizade, que até aí transfigurava as derrotas, deveria ser sacrificada e transferida para o dia ainda invisível da vitória.

A originalidade de N echaiev é justificar, dessa forma, a violên­ cia feita aos irmãos. Ele formula o Catecismo com Bakunin. Mas uma vez que este, numa espécie de desvario, encarrega-o da missão de representar na Rússia uma União revolucionária européia que só existia em sua imaginação, N echaiev parte efetiv

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ente para a Rússia, funda a sua Sociedade do Machado, definindo ele próprio os seus estatutos. Necessário sem dúvida a qualquer ação militar ou política, aí encontramos o comitê central secreto a quem todos devem jurar fidelidade absoluta. Mas Nechaiev faz mais do que militarizar a re­ volução, a partir do m

o em que admite que, para dirigir os subordinados, os che�es têm o direito de empregar a violência e a mentira. Para começar, ele vai mentir, com efeito, quando se dirá delegado desse comitê central ainda inexistente e quando, com o objetivo de atrair militantes hesitantes para a ação que pensa empre­ ender, irá descrever o comitê como fonte de recursos ilimitados. E mais: irá distinguir categorias entre os revolucionários, os de primei­ ra categoria (entenda-se: os chefes), reservando-se o direito de con­ siderar os outros como "um capital que se pode despender". Talvez todos os líderes da história tenham pensado dessa maneira, mas não o disseram. Até N echaiev, em todo o caso, nenhum chefe revolucio­ nário ousara fazer disso o princípio de sua conduta. Até aquele mo­ mento, nenhuma revolução havia colocado no início de suas tábuas

da lei que o homem podia ser um instrumento.Tradicionalmente, o recrutamento recorria à coragem e ao espírito de sacrifício. N echaiev decide que se pode chantagear ou aterrorizar os céticos e enganar os confiantes. Até os revolucionários imaginários podem ser ainda uti­ lizados, se forem sistematicamente levados a realizar os atos mais perigosos. Quanto aos oprimidos, já que se trata de salvá-los de uma vez por todas, pode-se oprimi-los ainda mais. Se perdem com isso,

os futuros oprimidos irão ganhar. Nechaiev estabelece como princí­

pio que é necessário obrigar os governos a tomar medidas repressi­ vas, que não se deve tocar nos representantes oficiais mais detestados pela população e, finalmente, que a sociedade secreta deve empregar todos os seus recursos para aumentar o sofrimento e a miséria das massas.

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