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Totalzdade e Julgamento

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 136-150)

A totalidade, com efeito, não é mais que o antigo sonho de unidade comum aos crentes e aos revoltados, mas projetado horizontalmente sobre uma terra privada de Deus. Renunciar a todo valor é o mes­ mo que renunciar à revolta para aceitar o Império e a escravidão. A crítica dos valores formais não podia evitar a noção de liberdade. Uma vez reconhecida a impossibilidade de dar origem, unicamen­ te pelas forças da revolta, ao indivíduo livre com o qual sonhavam os românticos, a liberdade foi também incorporada ao movimento da história. Tornou-se uma liberdade em luta que, para existir, deve criar-se. Identificada com o dinamismo da história, ela só poderá desfrutar de si mesma quando a história se detiver, na Cidade uni­ versal. Até lá, cada uma de suas vitórias suscitará uma contestação que a tornará vã. A nação alemã liberta-se de seus opressores alia­ dos, mas ao preço da liberdade de cada alemão. Os indivíduos no regime totalitário não estão livres, embora o homem coletivo esteja libertado. No fim, quando o Império emancipar a espécie inteira, a liberdade reinará sobre rebanhos de escravos, que pelo menos es­ tarão livres em relação a Deus e, em geral, a toda transcendência.

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Explica-se o milagre dialético, a transformação da quantidade em qualidade: toma-se a decisão de chamar a servidão total de liber­

dade. Como aliás em todos os exemplos citados por Hegel e pot" Marx, não há nenhuma transformação objetiva, mas sim mudança subjetiva de denominação. Não há milagre. Se a única esperança do niilismo reside no fato de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade emancipada para sempre, a histó­

ria não passa de um sonho desesperado. O pensamento histórico devia livrar o homem do jugo divino; mas essa liberação exige dele a submissão mais absoluta ao devir. Corre-se então para a perma­ nência do partido, como antes se corria para o altar. Por isso, a

época que ousa dizer-se a mais revoltada só oferece uma escolha: conformismos. A verdadeira paixão do século XX é a servidão.

Mas a liberdade total não é mais fácil de conquistar que a li­

berdade individual. Para assegurar o Império do homem no mun­

do, é preciso suprimir do mundo e do homem tudo aquilo que escapa ao império, tudo aquilo que não é do reino da quantidade: esse empreendimento é interminável. Ele deve estender-se ao es­

paço, ao tempo e às pessoas, que abrangem as três dimensões da história. O Império é ao mesmo tempo guerra, obscurantismo · tirania, afirmando desesperadamente que será fraternidade, verda­ de e liberdade: a lógica de seus postulados obriga-o a isso. Sem dúvida, há na Rússia de hoje, e até mesmo no comunismo, uma verdade que nega a ideologia stalinista. Mas esta tem sua lógica, que é preciso isolar e expor, se se deseja que o espírito revolucioná­ rio escape finalmente à desgraça definitiva.

A cínica intervenção dos exércitos ocidentais contra a revolu­

ção soviética mostrou aos revolucionários russos, entre outras coi­ sas, que a guerra e o nacionalismo eram realidades similares à luta de classes. Sem uma solidariedade internacional dos proletários, ·

que atuasse automaticamente, nenhuma revolução interna podia Sl: julgar viável sem que se criasse uma ordem internacional. A parti,.

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desse dia, foi preciso admitir que a Cidade universal só poderia ser construída sob duas condições. Revoluções quase simultâneas em todos os grandes países ou então a liquidação, pela guerra, das nações burguesas; a revolução permanente ou a guerra permanen­ te. O primeiro ponto de vista quase triunfou, como se sabe. Os movimentos revolucionários da Alemanha, da Itália e da França marcaram o apogeu da esperança revolucionária. Mas o esmaga­ mento dessas revoluções e o consecutivo fortalecimento dos regi­ mes capitalistas fizeram da guerra a realidade da revolução. A filo­ sofia das luzes levou à Europa do toque de recolher. Pela lógica da história e da doutrina, a Cidade universal, que devia realizar-se na insurreição espontânea dos humilhados, foi pouco a pouco recoberta pelo Império, imposto pela força. Engels, com a aprovação de Marx, havia aceitado friamente essa perspectiva quando escreveu, em res­ posta ao Apelo aos eslavos, de Bakunin: ''A próxima guerra mundial fará com que desapareçam da superfície da terra não apenas clas­ ses e dinastias reacionárias, mas também povos inteiros reacionários. Isso também faz parte do progresso." Esse progresso, na mente de Engels, devia eliminar a Rússia dos czares. Atualmente, a nação russa inverteu o rumo do progresso. A guerra, fria e morna, é a servidão do Império mundial. Mas, ao tornar-se imperial, a revo­ lução fica num impasse. Se não renunciar a seus princípios falsos, a fim de retornar às origens da revolta, ela significa somente a ma­ nutenção, por várias gerações, e até a decomposição espontânea do capitalismo, de uma ditadura total sobre centenas de milhões de homens; ou então, se ela quiser precipitar o advento da Cidade humana, significa a guerra atômica, que ela não deseja e finda a qual, de resto, qualquer cidade só existiria sobre escombros defini­ tivos. A revolução mundial, pela própria lei dessa história que ela imprudentemente deificou, está condenada à polícia ou à bomba. Ao mesmo tempo, ela se vê numa contradição adicional. O sacrifí­ cio da moral e da virtude, a aceitação de todos os meios que cons-

tantemente justificou pelo fim perseguido, só são aceitos, a rigor, em função de um fim cuja probabilidade é razoável. A paz armada supõe, pela manutenção indefinida da ditadura, a negação indefi­ nida desse fim. O perigo de guerra, além disso, faz desse fim uma probabilidade desprezível. A extensão do Império ao espaço mun­ dial é uma necessidade inevitável para a revolução do século XX. Mas essa necessidade coloca-a diante de um último dilema: forjar para si novos princípios ou renunciar à justiça e à paz cujo reino definitivo ela queria.

Enquanto espera dominar o espaço, o Império vê-se também obrigado a reinar sobre o tempo. Ao negar toda verdade estável, teve que chegar ao ponto de negar a forma mais baixa da verda­ de, a da história. Ele transportou a revolução, ainda impossível em escala mundial, ao passado que ele se empenha em negar. Isso também é lógico. Toda coerência, que não seja puramente econô­ mica, do passado ao futuro humano, supõe uma constante que por sua vez poderia lembrar uma natureza humana. A coerência profunda que Marx, homem de cultura, tinha mantido entre as civilizações ameaçava extrapolar sua tese, trazendo à luz uma continuidade natural, mais ampla do que a econômica. Pouco a pouco, o comunismo russo foi levado a interromper, a introduzir uma solução de continuidade no futuro. A negação dos gênios heréticos (e quase todos o são), das contribuições da civilização, da arte - na medida, infinita, em que esta foge à história -, a renúncia às tradições vivas confinaram pouco a pouco o marxis­ mo contemporâneo dentro de limites cada vez mais estreitos. Não lhe bastou negar ou calar aquilo que na história do mundo é inassimilável pela doutrina, nem rejeitar as descobertas da ciên­ cia moderna. Foi preciso ainda refazer a história, mesmo a mais próxima, a mais conhecida e até mesmo, por exemplo, a história do partido e da revolução. A cada ano, às vezes a cada mês, o

Pravda se corrige, sucedem-se as edições retocadas da história

oficial, Lenin é censurado, Marx deixa de ser publicado. Neste estágio, a comparação com o obscurantismo religioso nem é mais justa. A Igreja nunca chegou ao ponto de decidir sucessivamente que a manifestação divina se fazia em duas, depois em quatro ou em três, e ainda em duas pessoas. A aceleração própria de nosso tempo atinge, desse modo, a fabricação da verdade que nesse rit­ mo torna-se pura ilusão. Como no conto popular, em que os tea­ res de uma cidade inteira teciam no vazio para vestir o rei, milha­ res de homens - como o tear da fábula - refazem todos os dias uma história vã, destruída logo ao fim do dia, esperando que a voz tranqüila de uma criança proclame de repente que o rei está nu. Esta pequena voz da revolta dirá então aquilo que todo mun­ do já consegue ver: que uma revolução condenada, a fim de per­ durar, a negar sua vocação universal ou a renunciar a si mesma para ser universal, vive sobre princípios falsos.

Enquanto isso, esses princípios continuam funcionando aci­ ma de milhões de homens. O sonho do Império, contido pelas realidades do tempo e do espaço, sacia a sua nostalgia nas pessoas. As pessoas não são hostis ao Império apenas como indivíduos: neste caso, o terror tradicional seria suficiente. Elas lhe são hos­ tis na medida em que até o momento ninguém pôde viver só da história, sempre se lhe escapando de algum modo. O Império supõe uma negação e uma certeza: a certeza da infinita maleabilidade do homem e a negação da natureza humana. As técnicas de propaganda servem para medir essa maleabilidade, tentando fazer coincidir reflexão e reflexo condicionado. Elas per­ mitem assinar um pacto com aquele que, durante anos, foi desig­ nado como o inimigo mortal. E mais: elas permitem reverter o efeito psicológico assim obtido, fazendo todo um povo insurgir­ se, de novo, contra esse mesmo inimigo. A experiência ainda não chegou a seu termo, mas seu princípio é lógico. Se não há nature­ za humana, a maleabilidade do homem, na verdade, é infinita. O

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realismo político, neste nível, não é mais que um romantismo desenfreado, um romantismo da eficácia.

Pode-se assim explicar por que o marxismo russo rejeita, em sua totalidade, e ainda que saiba se servir dele, o mundo do irracio­ nal. O irracional tanto pode servir ao Império como pode recusá­ lo. Ele foge ao cálculo, e só o cálculo deve reinar no Império. O homem não é mais que um jogo de forças que se pode considerar racionalmente. Marxistas desavisados atreveram-se a pensar que poderiam conciliar sua doutrina com a de Freud, por exemplo. Mas logo tiveram que reconsiderar. Freud é um pensador herético e "pequeno-burguês", porque revelou o inconsciente, conferindo­ lhe ao menos tanta realidade quanto ao superego ou ego social. Este inconsciente pode então definir a originalidade de uma natu­ reza humana, em oposição ao ego histórico. O homem, ao contrá­ rio, deve resumir-se ao ego social e racional, objeto de cálculo. Logo, foi preciso escravizar não apenas a vida de cada um, mas também o acontecimento mais irracional e mais isolado, cuja expectativa acom­ panha o homem ao longo de toda a sua vida. O Império, em seu esforço convulsivo no sentido de um reino definitivo, tende a inte­ grar a morte.

Pode-se subjugar um homem vivo, reduzindo-o à condição histórica de coisa. Mas, se morre recusando, reafirma uma nature­ za humana que rejeita a ordem das coisas.

É

por isso que o acusado só é produzido e morto diante do mundo se consentir em dizer que sua morte será justa e de acordo com o Império das coisas.

É

pre­ ciso morrer desonrado ou não existir mais, nem na vida nem na morte. Neste último caso, não se morre, desaparece-se. Da mesma forma, se o condenado é castigado, o seu castigo protesta em silên­ cio, introduzindo uma fissura na totalidade. Mas o condenado não é castigado, ele é recolocado na totalidade, ele monta a máquina do Império. Transforma-se em engrenagem da produção, tão indis­ pensável, de resto, que com o tempo ele não será utilizado na pro-

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dução porque é culpado, mas sim julgado culpado porque a pro­ dução tem necessidade dele. O sistema russo de campos de con­ centração realizou efetivamente a passagem dialética do governo das pessoas à administração das coisas, mas confundindo a pessoa e a cmsa.

Até mesmo o inimigo deve colaborar para a obra comum. Fora do Império não há salvação. Este Império é ou será o da amizade. Mas esta amizade é a das coisas, pois não se pode preferir o amigo ao Império. A amizade das pessoas - não há outra definição - é a solidariedade particular, até a morte, contra o que não é do reino da amizade. A amizade das coisas é a amizade em geral, a amizade com todos, que supõe, quando deve ser preservada, a denúncia de cada um. Aquele que ama a amiga ou o amigo ama-o no presente, e a revolução só quer amar um homem que ainda não surgiu. Amar, de certa maneira, é matar o homem acabado, que deve nascer pela revolução. Para que viva, um dia, ele deve ser, a partir de hoje, preferido a tudo. No reino das pessoas, os homens se ligam pela afeição; no Império das coisas, os homens se unem pela delação. A cidade que se queria fraternal torna-se um formigueiro de homens sós.

Em outro plano, só o furor irracional de uma besta consegue imaginar ser necessário torturar sadicamente homens a fim de ob­ ter o seu consentimento. Então, trata-se apenas de um homem que subjuga outro, em um imundo acasalamento de pessoas. O repre­ sentante da totalidade racional contenta-se, pelo contrário, em dei­ xar que no homem a coisa domine a pessoa. A mente mais elevada é inicialmente rebaixada à ordem da mais inferior pela técnica po­ licia:! do amálgama. Depois, cinco, dez, vinte noites de insônia ven­ cerão uma ilusória convicção e colocarão no mundo uma nova alma morta. Deste ponto de vista, a única revolução psicológica conhe­ cida em nosso tempo, depois de Freud, foi operada pelo NKVD e pelas polícias políticas em geral. Guiadas por uma hipótese

determinista, calculando os pontos fracos e o grau de elasticidade das almas, estas novas técnicas dilataram ainda mais um dos limi­ tes do homem, tentando demonstrar que nenhuma psicologia indi­ vidual é original e que a medida comum do caráter é a matéria. Elas criaram literalmente a física das almas.

A partir daí, as relações humanas tradicionais foram transfor­ madas. Essas transformações progressivas caracterizam o mundo do terror racional em que vive, em diferentes níveis, a Europa. O diálogo, relação entre as pessoas, foi substituído pela propaganda ou pela polêmica, que são dois tipos de monólogo. A abstração, própria do mundo da força e do cálculo, substituiu as verdadeiras paixões, que pertencem ao domínio da carne e do irracional. O pão substituído pelo cupom de racionamento; o amor e a amizade, sub­ jugados à doutrina; o destino, ao plano; o castigo chamado de nor­ ma e a criação viva substituída pela produção - tudo isso descre­ ve bastante bem esta Europa macilenta, povoada de fantasmas do poder, vitoriosos ou escravizados. "Como é desgraçada", bradava Marx, "esta sociedade que não conhece meio de defesa melhor que o carrasco!" Mas o carrasco não era ainda o carrasco filósofo e não aspirava, pelo menos, à filantropia universal.

A contradição última da maior revolução que a história conhe­ ceu não reside inteiramente no fato de aspirar à justiça através de um séquito ininterrupto de injustiças e de violências. Servidão ou mistificação é desgraça comum a todos os tempos. Sua tragédia é a tragédia do niilismo; ela confunde-se com o drama da inteligência contemporânea que, aspirando ao universal, acumula as mutila­ ções do homem. A totalidade não é a unidade. O estado de sítio, mesmo estendido aos limites do mundo, não é a reconciliação. A reivindicação da Cidade universal não se mantém nesta revolução senão rejeitando dois terços do mundo e o prodigioso legado dos séculos, negando, em favor da história, a natureza e a beleza, su­ primindo no homem sua força de paixão, de dúvida, de felicidade,

de invenção singular, numa palavra, sua grandeza. Os princípios que os homens se atribuem acabam tomando o lugar de suas inten­ ções mais nobres. Por força de contestações, incessantes lutas, po­ lêmicas, excomunhões, perseguições sofridas e infligidas, a Cida­ de universal dos homens livres e fraternos deriva pouco a pouco, dando lugar ao único universo em que a história e a eficácia podem efetivamente ser erigidas como juízes supremos: o universo do jul­ gamento.

Toda religião gira em torno das noções de inocência e de cul­ pabilidade. Prometeu, o primeiro revoltado, recusava, contudo, o direito de punir. O próprio Zeus, e sobretudo Zeus, não é suficien­ temente inocente para receber tal direito. Em seu primeiro movi­ mento, a revolta recusa portanto ao castigo sua legitimidade. Mas em sua última encarnação, ao fim de uma estafante viagem, o re­ voltado retoma o conceito religioso de castigo, colocando-o no cen­ tro de seu universo. O juiz supremo não está mais nos céus, ele é a própria história, que sanciona como divindade implacável. À sua maneira, a história não é mais que um longo castigo, já que a ver­ dadeira recompensa só será saboreada no fim dos tempos. Aparen­ temente, estamos longe do marxismo e de Hegel, muito mais lon­ ge ainda dos primeiros revoltados. Todo pensamento puramente histórico, entretanto, leva à beira desses abismos. Na medida em que Marx previa o cumprimento inevitável da cidade sem classes; na medida em que estabelecia desse modo a boa vontade da histó­ ria, todo atraso na marcha liberadora devia ser imputado à má von­ tade humana. Marx reintroduziu no mundo descristianizado o cri­ me e o castigo, mas apenas diante da história. O marxismo, sob um de seus aspectos, é uma doutrina de culpabilidade quanto ao ho­ mem e de inocência quanto à história. Longe do poder, sua tradu­ ção histórica era a violência revolucionária; no auge do poder, ela ameaçava tornar-se a violência legal, isto é, o terror e o julgamento. Aliás, no universo religioso o verdadeiro juízo é adiado para

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mais tarde; não é necessário que o crime seja punido sem demora, a inocência consagrada. No novo universo, pelo contrário, o juízo da história deve ser pronunciado imediatamente, pois a culpa coin­ cide com o malogro e o castigo. A história julgou Bukharin porque ela o fez morrer. Ela proclama a inocência de Stalin: ele está no auge do poder. Tito está em instância de julgamento, como o este­ ve Trotsky, cuja culpa só ficou clara para os filósofos do crime his­ tórico no momento em que o martelo do assassino abateu-se sobre ele. O mesmo vale para Tito, que não sabemos, segundo nos di­ zem, se é culpado ou não. Foi denunciado, mas ainda não foi aba­ tido. Quando for derrubado, sua culpa será certa. De resto, a ino­ cência provisória de Trotsky e de Tito estava e está ligada em gran­ de parte à geografia; eles estavam longe do braço secular. Por isso, é necessário julgar sem demora aqueles que esse braço pode alcan­ çar. O juízo definitivo da história depende de uma infinidade de juízos que forem pronunciados daqui até lá, e que serão então con­

firmados ou invalidados. Prometem-se, assim, misteriosas reabili­

tações para o dia em que o tribunal do mundo for construído com

o próprio mundo. Este, que se declarou traidor e desprezível, in­ gressará no Panteão dos homens. O outro ficará no inferno históri­ co. Mas quem irá julgar? O próprio homem, consumado em sua jovem divindade. Enquanto isso, aqueles que conceberam a profe­

cia, os únicos capazes de lerem na história o sentido que antes lhe haviam atribuído, pronunciarão sentenças, mortais para o culpa­ do, provisórias apenas para o juiz. Mas aqueles que julgam, como Rajk, podem ser julgados por sua vez. Devemos acreditar que ele.: não interpretava mais a história corretamente? Na verdade, sua derrota e sua morte o comprovam. Quem garante que os juízes de hoje não serão os traidores de amanhã, atirados, do alto de seu tribunal, para as masmorras de cimento em que agonizam os mal­

ditos da história? A garantia está em sua clarividência infalível . Quem pode prová-la? Seu êxito perpétuo. O mundo do julgamen-

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to é um mundo circular em que o êxito e a inocência autenticam-se mutuamente, em que todos os espelhos refletem a mesma mistifi­ cação.

Haveria assim uma graça histórica,94 cujo poder é o único que consegue interpretar os seus desígnios, favorecendo ou excomun­ gando o súdito do Império. Para precaver-se de seus caprichos, ele só dispõe da fé, pelo menos tal como definida nos Exercícios espiri­

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