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O pensamento mediterrâneo

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 161-164)

Longe dessa fonte de vida, em todo o caso, a Europa e a revolução se agitam em uma convulsão espetacular. No século passado, o homem derruba as coerções religiosas. Apenas liberado, no entan­ to, ele inventa outras mais, e intoleráveis. A virtude morre, mas renasce ainda mais feroz. Ela prega a todo mundo uma ruidosa caridade e esse amor pelo longínquo que faz do humanismo con­ temporâneo uma derrisão. A tal ponto de fixidez, ela só pode ope­ rar devastações. Chega o dia em que ela se irrita, torna-se policial, e, para a salvação do homem, erguem-se ignóbeis fogueiras. No auge da tragédia contemporânea, entramos então na intimidade do crime. As fontes da vida e da criação parecem ter secado. O medo imobiliza uma Europa povoada de fantasmas e de máquinas. En­ tre duas hecatombes, instalam-se cadafalsos no fundo das mas­ morras. Torturadores humanistas aí celebram em silêncio seu novo culto. Que grito os perturbaria? Os próprios poetas, diante do as­ sassinato de seu irmão, declaram orgulhosamente que estão com as mãos limpas. O mundo inteiro a partir de então, distraidamente, dá as costas a esse crime; as vítimas acabam de atingir o extremo de sua desgraça: elas entediam. Nos tempos antigos, o sangue do as­ sassinato provocava ao menos um horror sagrado; santificava des-

ALBERT CAMUS

se modo o valor da vida. A verdadeira condenação desta época, pelo contrário, é levar-nos a pensar que ela não é suficientemente sanguinária. O sangue não está mais visível; ele não respinga de modo visível o rosto de nossos fariseus. Eis o extremo do niilismo: o assassinato cego e furioso torna-se um oásis, e o criminoso imbe­ cil parece revigorante diante de nossos carrascos inteligentes.

Depois de ter acreditado por muito tempo que poderia lutar contra Deus aliado à humanidade inteira, o espírito europeu se dá conta também de que, se não quiser morrer, é preciso lutar contra os homens. Os revoltados que, ao se insurgirem contra a morte, queriam construir, com base na espécie humana, uma feroz imor­ talidade, horrorizam-se ao se verem obrigados, por sua vez, a ma­ tar. Se recuam, no entanto, é preciso que aceitem morrer; se avan­ çam, é preciso que aceitem matar. A revolta, desviada de suas ori­ gens e cinicamente travestida, oscila, em todos os níveis, entre o sacrifício e o assassinato. Sua justiça, que ela esperava que fosse distributiva, tornou-se sumária. O reino da graça foi vencido, mas o da justiça também desmorona. A Europa morre dessa desilusão. Sua revolta defendia a causa da inocência humana, e ei-la inflexível contra a sua própria culpa. Mal se lança em busca da totalidade, e recebe, na partilha, a solidão mais desesperada. Queria entrar em comunidade, e não tem outra esperança senão reunir, um por um, ao longo dos anos, os solitários que marcham para a unidade.

Será preciso renunciar a toda revolta, quer se aceite, com suas injustiças, uma sociedade que sobrevive a si própria, quer se deci­ da, cinicamente, servir contra os interesses do homem à marcha inexorável da história? Afinal, se a lógica de nossa reflexão devesse conduzir a um conformismo covarde, seria necessário aceitá-lo, como certas famílias às vezes aceitam desonras inevitáveis. Se de­ vesse igualmente justificar todos os tipos de atentados contra o homem, e até mesmo sua destruição sistemática, seria preciso con­ sentir neste suicídio. O sentimento da justiça finalmente realizaria

O HOMEM REVOLTADO

a sua aspiração: o desaparecimento de um mundo de comerciantes e de policiais.

Mas estamos ainda em um mundo revoltado; a revolta não se tornou, pelo contrário, o álibi de novos tiranos? O "Nós existimos" contido no movimento de revolta pode, sem escândalo ou subter­ fúgios, conciliar-se com o assassinato? Ao atribuir à opressão um limite no qual começa a dignidade comum a todos os homens, a revolta definia um primeiro valor. Ela colocava no primeiro plano de suas referências uma cumplicidade transparente entre os ho­ mens, uma textura comum, a solidariedade dos grilhões, uma co­ municação de ser humano a ser humano que torna os homens se­ melhantes e coligados. Ela fazia com que a mente em conflito com um mundo absurdo desse um primeiro passo. Com este progresso, ela tornava mais angustiante o problema que agora deve resolver diante do assassinato. Na condição de absurdo, o assassinato sus­ citava efetivamente apenas contradições lógicas; na condição de revolta, ele é dilaceramento. Pois trata-se de decidir se é possível matar alguém, seja quem for, cuja semelhança acabamos de reco­ nhecer e cuja identidade acabamos de consagrar. Apenas superada a solidão, é preciso reencontrá-la definitivamente, legitimando o ato que tudo isola? Condenar à solidão aquele que acaba de saber que não está só não será o crime definitivo contra o homem?

Segundo a lógica, deve-se responder que assassinato e revolta são contraditórios. Basta que um único senhor seja morto para que o revoltado, de certa forma, não esteja mais autorizado a afirmar a comunidade dos homens, da qual no entanto ele tirava sua justifi­ cação. Se este mundo não tem um sentido superior, se o homem só tem o homem como garantia, basta que um homem retire um úni­ co ser humano da sociedade dos vivos para que ele próprio seja também dela excluído. Quando Caim mata Abel, ele foge para o deserto. E se os assassinos são multidão, a multidão vive no deser­ to e nesse outro tipo de solidão chamada promiscuidade.

A partir do momento em que golpeia, o revoltado divide o mundo em dois. Ele se insurgia em nome da identidade do ho­ mem com o homem e sacrifica a identidade ao consagrar, no san­ gue, a diferença. Só sua existência, no âmago da miséria e da opressão, estava contida nesta identidade. O mesmo movimento que visava afirmá-lo faz portanto com que deixe de existir. Ele pode dizer que alguns ou mesmo que quase todos estão com ele. Mas basta faltar, no mundo insubstituível da fraternidade, um único ser humano, e ei-lo logo despovoado. Se não existimos, eu não existo, assim se explicam a infinita tristeza de Kaliayev e o silêncio de Saint-Just. De nada adianta aos revoltados, decididos a passarem pela violência e pelo assassinato para preservarem a esperança de existir, substituírem o Nós existimos pelo Nós existi­

remos. Quando assassino e vítima tiverem desaparecido, a comu­

nidade irá refazer-se sem eles. Tanto na história quanto na vida individual, o assassinato é uma exceção desesperada ou então não é nada. O rompimento que ele efetua na ordem das coisas é irreversível. Ele é insólito e não pode portanto ser utilizado, nem sistemático, como quer a atitude puramente histórica. Ele é o limite que só se pode atingir uma vez e depois do qual é preciso morrer. O revoltado só tem uma maneira de reconciliar-se com o seu ato assassino, se a isso se deixou levar: aceitar a própria mor­ te e o sacrifício. Ele mata e morre, para que fique claro que o assassinato é impossível. Ele mostra então que prefere, na reali­ dade, o Nós existimos ao Nós existiremos. A felicidade tranqüila de Kaliayev em sua prisão, a serenidade de Saint-Just ao caminhar para o cadafalso são por sua vez explicadas. Além dessa fronteira extrema, começam a contradição e o niilismo.

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 161-164)