Marx não imaginava uma apoteose tão aterrorizante. Nem Lenin, que no entanto deu um passo decisivo rumo ao Império militar. Marx, bom estrategista e filósofo medíocre, colocou inicialmente o problema da tomada do poder. Observemos logo que é totalmen te falso falar, como se costuma fazer, do jacobinismo de Lenin. Apenas a sua idéia sobre a parcela de agitadores e de revolucioná rios é jacobina. Os jacobinos acreditavam nos princípios e na vir tude; morreram por terem tido que negá-los. Lenin só acredita na revolução e na virtude da eficácia.
"É
preciso estar pronto para todos os sacrifícios; se for necessário, usar de todos os estratage mas, do ardil, de métodos ilegais, estar decidido a ocultar a verda-ALBERT CAMUS
de, com a única finalidade de penetrar nos sindicatos ... e aí realizar toda a tarefa comunista." A luta contra a moral formal, inaugurada por Hegel e Marx, é novamente encontrada em Lenin na crítica das atitudes revolucionárias ineficazes. O Império era o objetiv desse movimento.
Se examinarmos as duas obras que estão no início89 e no fim90 de sua carreira de agitador, ficaremos impressionados ao ver que ele não deixou de lutar impiedosamente contra as formas senti mentais da ação revolucionária. Ele quis banir a moral da revolu� ção, porque acreditava, com todo o direito, que o poder revolucio nário não se estabelece no respeito aos dez mandamentos. Quando chega, após as primeiras experiências, ao palco de uma história em que desempenharia um papel tão importante, vendo-o tomar conta com uma liberdade tão natural do mundo tal como fabricado pela ideologia e pela economia do século anterior, ele parece ser o pri
meiro homem de uma nova era. Indiferente à inquietação, à nostal
gia, à moral, ele assume o comando, procura o melhor meio para ligar o motor e decide que determinada virtude convém ao condu� tor da história e que outra não convém. Ele tateia um pouco n início, hesita quanto à questão de saber se a Rússia deve passar primeiro pelo estágio capitalista e industrial. Mas isso é o mesmo que duvidar que a revolução possa ter lugar na Rússia. Ele é russo, sua missão é fazer a revolução russa. Ele descarta o fatalismo eco
nômico e entra em ação. Desde 1902, afirma categoricamente que os operários não são capazes por si mesmos de elaborarem uma ideologia independente. Ele nega a espontaneidade das massas. A doutrina socialista supõe uma base científica que só os intelectuais
podem lhe dar. Quando diz que é preciso apagar qualquer distin
ção entre operários e intelectuais, é preciso traduzir que se pod ·
89Qttefozer, 1 902.
900 Estado e a Revolução, 1 9 1 7 .
O HOMEM REVOLTADO
não ser proletário e conhecer, melhor que os proletários, os interes ses do proletariado. Ele cumprimenta Lassalle por haver empre endido uma luta ferrenha contra a espontaneidade das massas. ''A
espontaneidade deve subordinar-se à teoria" ,91 diz ele. Vê-se clara mente que isso quer dizer que a revolução tem necessidade de líde res e de líderes teóricos.
Ele combate ao mesmo tempo o reformismo, culpado pelo enfraquecimento da força revolucionária, e o terrorismo,92 atitu de exemplar e ineficaz. A revolução, antes de ser econômica ou sentimental, é militar. Até o dia em que eclodir, a ação revolucio nária confunde-se com a estratégia. A autocracia é o inimigo; sua força principal, a polícia, corpo profissional de soldados políti cos. A conclusão é simples: ''A luta contra a polícia política exige qualidades especiais, exige revolucionários profissionais." A re volução terá o seu exército profissional, assim como as massas, que um dia poderão ser recrutadas. Esse corpo de agitadores deve ser organizado antes da própria massa. Uma rede de agentes, esta é a expressão usada por Lenin, que já anuncia o reino da sociedade secreta e dos monges realistas da revolução: "Somos os jovens turcos da revolução, com algo de jesuíta a mais", dizia ele. O proletariado não tem mais missão a partir desse momento. Ele não é mais que um meio poderoso, entre outros, nas mãos de ascetas revolucionários.93
O problema da tomada de poder acarreta o problema do Esta do. O Estado e a RevolufãO (19 1 7) , que trata do assunto, é o mais
curioso e mais contraditório dos libelos. Lenin utiliza nele seu método favorito, que é a autoridade. Com a ajuda de Marx e de
"Marx diz igualmente: "O que este ou aquele proletário ou até mesmo o proletariado inteiro
imagina ser o seu fim não importa!"
92Sabe-se que seu irmão mais velho, que havia escolhido o terrorismo, foi enforcado.
93Heine já chamava os socialistas de "novos puritanos". Puritanismo e revolução andam, histori camente, de mãos dadas.
Engels, começa por insurgir-se contra qualquer reformismo que pretenda utilizar o Estado burguês, organismo de dominação de uma classe sobre a outra. O Estado burguês apóia-se na polícia c
no exército, porque é, em primeiro lugar, um instrumento de opres são. Ele reflete ao mesmo tempo o antagonismo inconciliável das classes e a redução forçada desse antagonismo. Essa autoridade d fato só merece desprezo. "Até mesmo o chefe do poder militar d · um Estado civilizado poderia invejar o chefe do clã que a socie dade patriarcal cercava de um respeito voluntário e não imposto pelo porrete." Engels, aliás, estabeleceu firmemente a noção d que Estado e sociedade livre são inconciliáveis. ''As classes desapa recerão com a mesma inevitabilidade com que surgiram. Com o
desaparecimento das classes, desaparecerá, de modo inevitável, o Estado. A sociedade reorganizadora da produção com base na as sociação livre e igual dos produtores relegará a máquina do Estadt 1 ao lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da
roda de fiar e do machado de bronze."
Isso explica provavelmente que leitores distraídos tenham atri buído O Estado e a Revolução às tendências anarquistas de Lenin e se tenham compadecido pela singular posteridade de uma doutri na tão severa em relação ao exército, à polícia, ao porrete e à buro· cracia. Mas, para compreender os pontos de vista de Lenin, el tl devem ser sempre entendidos em termos de estratégia. Se ele de fende com tanta veemência a tese de Engels sobre o desapareci mento do Estado burguês, é porque deseja, de um lado, coloca1' obstáculos ao puro "economismo" de Plekhanov ou de Kautsky '1
por outro lado, demonstrar que o governo Kerenski é um governn burguês, que deve ser destruído. Aliás, um mês depois ele o dcs truirá.
Era preciso responder também àqueles que faziam objeçÕl':i quanto ao fato de a própria revolução ter necessidade de um apar ·
lho de administração e de repressão. Ainda a esse respeito, Mar ,.
Engels são largamente utilizados para provar, com autoridade, que o Estado proletário não é um estado organizado como os outros, mas um Estado que, por definição, não cessa de deteriorar-se. "Des de que não haja mais classe social para manter na opressão ... um Estado deixa de ser necessário. O primeiro ato pelo qual o Estado (proletário) realmente se afirma como representante de toda a so ciedade - a tomada dos meios de produção da sociedade - é ao mesmo tempo o último ato próprio do Estado. O governo das pes soas é substituído pela administração das coisas ... O Estado não é abolido, ele se deteriora." O Estado burguês é primeiramente su primido pelo proletariado. Em seguida, mas somente em seguida, o Estado proletário é reabsorvido. A ditadura do proletariado é necessária: primeiro, para oprimir ou suprimir o que resta da clas se burguesa; em segundo lugar, para realizar a socialização dos meios de produção. Cumpridas estas duas tarefas, ela começa logo a deteriorar-se.
Lenin parte portanto do princípio, claro e firme, de que o Es tado morre tão logo se opere a socialização dos meios de produção, sendo então suprimida a classe exploradora. Chega, porém, no mes mo libelo, a legitimar a manutenção, após a socialização dos meios de produção e sem termo previsível, da ditadura de uma parcela revolucionária sobre o resto do povo. O panfleto, que usa como referência constante a experiência da Comuna, contradiz de modo absoluto a corrente de idéias federalistas e antiautoritárias que pro duziu a Comuna. Ele se opõe, da mesma forma, à descrição oti mista de Marx e de Engels. A razão é clara: Lenin não se esqueceu de que a Comuna havia fracassado. Quanto aos meios de uma tão surpreendente demonstração, são ainda mais simples: a cada nova dificuldade encontrada pela revolução, dá-se uma atribuição su plementar ao Estado descrito por Marx. Dez páginas adiante, sem transição, Lenin afirma efetivamente que o poder é necessário para reprimir a resistência dos exploradores "e também para dirigir a
ALBERT CAMUS
grande massa da população, do campesinato, da pequena burgue� sia, dos semiproletários, para a organização da economia socialis�
ta". A mudança é incontestável; o Estado provisório de Marx · Engels vê-se encarregado de uma nova missão, que corre o risco de dar-lhe vida longa. Já encontramos a contradição do regime stalinista às voltas com sua filosofia oficial. Ou bem esse regim ' realizou a sociedade socialista sem classes, e a manutenção de um formidável aparelho de repressão não se justifica em termos mar xistas, ou então não o fez, comprovando-se neste caso que a doutri na marxista está errada e, particularmente, que a socialização dos meios de produção não significa o desaparecimento das classes. Diante de sua doutrina oficial, o regime é obrigado a escolher: ela é falsa ou ele a traiu. Na verdade, com Netchaiev e Tkatchev, Lassalle, inventor do socialismo de Estado, que Lenin fez triunfar na Rússia, em detrimento de Marx. A partir desse momento, rt
história das lutas internas do partido, de Lenin a Stalin, irá resu·
mir-se à luta entre a democracia operária e a ditadura militar · burocrática; ou melhor, entre justiça e eficácia.
Julgamos por um momento que Lenin vai encontrar uma es pécie de conciliação, ao vê-lo fazer o elogio das medidas tomadas pela Comuna: funcionários elegíveis, demissíveis, remunerados como operários, substituição da burocracia industrial pela gestão operária direta. Surge um Lenin federalista, que louva a institui ção das comunas e sua representação. Mas compreende-se rapida mente que esse federalismo só é preconizado na medida em que el ·
significa a abolição do parlamentarismo. Lenin, contra toda ver· dade histórica, qualifica-o de centralismo e logo enfatiza a idéia da
ditadura do proletariado, censurando aos anarquistas sua intransigência em relação ao Estado. Apoiada em Engels, inter vém neste ponto uma nova afirmação que justifica a manutenção da ditadura do proletariado após a socialização, o desaparecimento da classe burguesa e até mesmo a direção, finalmente conseguida,
O HOMEM REVOLTADO
da massa. A manutenção da autoridade terá agora os limites que lhe são traçados pelas próprias condições da produção. Por exem plo, a deterioração definitiva do Estado coincidirá com o momento em que se puder fornecer moradia gratuita para todos.
É
a fase superior do comunismo: ''A cada um segundo suas necessidades." Até esse momento, haverá Estado.Qual será a rapidez do desenvolvimento rumo a essa fase su perior do comunismo, na qual cada um terá segundo suas necessi dadesr "Isso nós não sabemos nem podemos saber ... Não temos dados que nos permitam resolver tais questões." Para maior clare za, Lenin afirma, sempre de modo arbitrário, "que não ocorreu a nenhum socialista prometer o advento da fase superior do comu nismo". Pode-se dizer que neste ponto morre definitivamente a liberdade. Do reino da massa, da noção de revolução proletária, passa-se primeiro à idéia de uma revolução feita e dirigida por agen tes profissionais. A crítica impiedosa do Estado concilia-se em se guida com a necessária, mas provisória, ditadura do proletariado na pessoa de seus líderes. Por fim, anuncia-se que não se pode prever o término desse Estado provisório e que além do mais nin guém nunca se atreveu a prometer que haveria um término. De pois disso, é lógico que a autonomia dos sovietes seja combatida, que Makhno seja traído, e os marinheiros de Kronstadt esmaga dos pelo partido.
Certamente, muitas afirmações de Lenin, amante passional da justiça, podem ainda ser contrapostas ao regime stalinista; princi palmente a noção de deterioração. Mesmo admitindo que ainda se passe muito tempo até que o Estado proletário desapareça, é ainda preciso, segundo a doutrina, para que possa ser chamado de prole tário, que ele tenda a desaparecer e torne-se cada vez menos coerci tivo.
É
certo que Lenin acreditava nessa tendência inevitável e que nisso ele foi superado. O Estado proletário, há mais de trinta anos, não deu nenhum sinal de anemia progressiva. Ao contrário, suacrescente prosperidade é visível. De resto, dois anos depois, numa conferência na Universidade Sverdlov, sob a pressão dos aconteci
mentos externos e da realidade interna, Lenin fará uma observa
ção que deixa prever a manutenção indefinida do super-Estado proletário. "Com esta máquina ou esta maça (o Estado), esmaga�
remos qualquer forma de exploração, e quando na terra não hou
ver mais possibilidade de exploração, mais gente proprietária de
terras e fábricas, mais gente se empanturrando nas barbas dos es
fomeados, quando coisas como essas se tiverem tornado impossí
veis, só então poremos de lado essa máquina. Então, não haverá nem Estado nem exploração." Enquanto houver na terra, e não mais em determinada sociedade, um único oprimido ou um pro
prietário, então o Estado continuará a existir. Enquanto isso per
durar, ele será obrigado a aumentar sua força para vencer, uma a
uma, as injustiças, os governos da injustiça, as nações obstinada
mente burguesas, os povos cegos aos seus próprios interesses. F.
quando, sobre a terra enfim subjugada e depurada de adversários, a última iniqüidade se tiver afogado no sangue dos justos e do(:� injustos, então, tendo chegado ao limite de todas as forças, ídolo monstruoso cobrindo o mundo inteiro, o Estado será sabiamentu reabsorvido na cidade silenciosa da justiça.
Sob a pressão, contudo inevitável, dos imperialismos adver
sos, nasce com Lenin, na verdade, o imperialismo da justiça. Mas o imperialismo, mesmo o da justiça, não tem outro fim senão a
derrota ou o Império do mundo. Até lá, não há outro meio a nã ser a injustiça. Desde então, a doutrina identifica-se definitivament<.: com a profecia. Por uma justiça longínqua, ela legitima a injustiça durante todo o tempo da história, ela se torna essa mistificação que Lenin detestava mais do que tudo no mundo. Ela faz com que se aceite a injustiça, o crime e a mentira, pela promessa do milagre. Uma produção maior e um poder maior, trabalho ininterrupto, sofrimento interminável, guerra permanente - e chegará o mo-
mento em que a servidão generalizada no Império total se trans formará milagrosamente em seu oposto: o lazer livre, numa repú blica universal. A mistificação pseudo-revolucionária tem agora sua fórmula: é preciso matar toda liberdade para conquistar o Im pério, e o Império um dia será a liberdade. O caminho da unidade passa então pela totalidade.