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O Reino dos Fins

No documento O Homem Revoltado - Albert Camus.pdf (páginas 132-136)

Marx não imaginava uma apoteose tão aterrorizante. Nem Lenin, que no entanto deu um passo decisivo rumo ao Império militar. Marx, bom estrategista e filósofo medíocre, colocou inicialmente o problema da tomada do poder. Observemos logo que é totalmen­ te falso falar, como se costuma fazer, do jacobinismo de Lenin. Apenas a sua idéia sobre a parcela de agitadores e de revolucioná­ rios é jacobina. Os jacobinos acreditavam nos princípios e na vir­ tude; morreram por terem tido que negá-los. Lenin só acredita na revolução e na virtude da eficácia.

preciso estar pronto para todos os sacrifícios; se for necessário, usar de todos os estratage­ mas, do ardil, de métodos ilegais, estar decidido a ocultar a verda-

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de, com a única finalidade de penetrar nos sindicatos ... e aí realizar toda a tarefa comunista." A luta contra a moral formal, inaugurada por Hegel e Marx, é novamente encontrada em Lenin na crítica das atitudes revolucionárias ineficazes. O Império era o objetiv desse movimento.

Se examinarmos as duas obras que estão no início89 e no fim90 de sua carreira de agitador, ficaremos impressionados ao ver que ele não deixou de lutar impiedosamente contra as formas senti­ mentais da ação revolucionária. Ele quis banir a moral da revolu� ção, porque acreditava, com todo o direito, que o poder revolucio­ nário não se estabelece no respeito aos dez mandamentos. Quando chega, após as primeiras experiências, ao palco de uma história em que desempenharia um papel tão importante, vendo-o tomar conta com uma liberdade tão natural do mundo tal como fabricado pela ideologia e pela economia do século anterior, ele parece ser o pri­

meiro homem de uma nova era. Indiferente à inquietação, à nostal­

gia, à moral, ele assume o comando, procura o melhor meio para ligar o motor e decide que determinada virtude convém ao condu� tor da história e que outra não convém. Ele tateia um pouco n início, hesita quanto à questão de saber se a Rússia deve passar primeiro pelo estágio capitalista e industrial. Mas isso é o mesmo que duvidar que a revolução possa ter lugar na Rússia. Ele é russo, sua missão é fazer a revolução russa. Ele descarta o fatalismo eco­

nômico e entra em ação. Desde 1902, afirma categoricamente que os operários não são capazes por si mesmos de elaborarem uma ideologia independente. Ele nega a espontaneidade das massas. A doutrina socialista supõe uma base científica que só os intelectuais

podem lhe dar. Quando diz que é preciso apagar qualquer distin­

ção entre operários e intelectuais, é preciso traduzir que se pod ·

89Qttefozer, 1 902.

900 Estado e a Revolução, 1 9 1 7 .

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não ser proletário e conhecer, melhor que os proletários, os interes­ ses do proletariado. Ele cumprimenta Lassalle por haver empre­ endido uma luta ferrenha contra a espontaneidade das massas. ''A

espontaneidade deve subordinar-se à teoria" ,91 diz ele. Vê-se clara­ mente que isso quer dizer que a revolução tem necessidade de líde­ res e de líderes teóricos.

Ele combate ao mesmo tempo o reformismo, culpado pelo enfraquecimento da força revolucionária, e o terrorismo,92 atitu­ de exemplar e ineficaz. A revolução, antes de ser econômica ou sentimental, é militar. Até o dia em que eclodir, a ação revolucio­ nária confunde-se com a estratégia. A autocracia é o inimigo; sua força principal, a polícia, corpo profissional de soldados políti­ cos. A conclusão é simples: ''A luta contra a polícia política exige qualidades especiais, exige revolucionários profissionais." A re­ volução terá o seu exército profissional, assim como as massas, que um dia poderão ser recrutadas. Esse corpo de agitadores deve ser organizado antes da própria massa. Uma rede de agentes, esta é a expressão usada por Lenin, que já anuncia o reino da sociedade secreta e dos monges realistas da revolução: "Somos os jovens turcos da revolução, com algo de jesuíta a mais", dizia ele. O proletariado não tem mais missão a partir desse momento. Ele não é mais que um meio poderoso, entre outros, nas mãos de ascetas revolucionários.93

O problema da tomada de poder acarreta o problema do Esta­ do. O Estado e a RevolufãO (19 1 7) , que trata do assunto, é o mais

curioso e mais contraditório dos libelos. Lenin utiliza nele seu método favorito, que é a autoridade. Com a ajuda de Marx e de

"Marx diz igualmente: "O que este ou aquele proletário ou até mesmo o proletariado inteiro

imagina ser o seu fim não importa!"

92Sabe-se que seu irmão mais velho, que havia escolhido o terrorismo, foi enforcado.

93Heine já chamava os socialistas de "novos puritanos". Puritanismo e revolução andam, histori­ camente, de mãos dadas.

Engels, começa por insurgir-se contra qualquer reformismo que pretenda utilizar o Estado burguês, organismo de dominação de uma classe sobre a outra. O Estado burguês apóia-se na polícia c

no exército, porque é, em primeiro lugar, um instrumento de opres­ são. Ele reflete ao mesmo tempo o antagonismo inconciliável das classes e a redução forçada desse antagonismo. Essa autoridade d fato só merece desprezo. "Até mesmo o chefe do poder militar d · um Estado civilizado poderia invejar o chefe do clã que a socie­ dade patriarcal cercava de um respeito voluntário e não imposto pelo porrete." Engels, aliás, estabeleceu firmemente a noção d que Estado e sociedade livre são inconciliáveis. ''As classes desapa­ recerão com a mesma inevitabilidade com que surgiram. Com o

desaparecimento das classes, desaparecerá, de modo inevitável, o Estado. A sociedade reorganizadora da produção com base na as­ sociação livre e igual dos produtores relegará a máquina do Estadt 1 ao lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da

roda de fiar e do machado de bronze."

Isso explica provavelmente que leitores distraídos tenham atri­ buído O Estado e a Revolução às tendências anarquistas de Lenin e se tenham compadecido pela singular posteridade de uma doutri­ na tão severa em relação ao exército, à polícia, ao porrete e à buro· cracia. Mas, para compreender os pontos de vista de Lenin, el tl devem ser sempre entendidos em termos de estratégia. Se ele de­ fende com tanta veemência a tese de Engels sobre o desapareci­ mento do Estado burguês, é porque deseja, de um lado, coloca1' obstáculos ao puro "economismo" de Plekhanov ou de Kautsky '1

por outro lado, demonstrar que o governo Kerenski é um governn burguês, que deve ser destruído. Aliás, um mês depois ele o dcs truirá.

Era preciso responder também àqueles que faziam objeçÕl':i quanto ao fato de a própria revolução ter necessidade de um apar ·

lho de administração e de repressão. Ainda a esse respeito, Mar ,.

Engels são largamente utilizados para provar, com autoridade, que o Estado proletário não é um estado organizado como os outros, mas um Estado que, por definição, não cessa de deteriorar-se. "Des­ de que não haja mais classe social para manter na opressão ... um Estado deixa de ser necessário. O primeiro ato pelo qual o Estado (proletário) realmente se afirma como representante de toda a so­ ciedade - a tomada dos meios de produção da sociedade - é ao mesmo tempo o último ato próprio do Estado. O governo das pes­ soas é substituído pela administração das coisas ... O Estado não é abolido, ele se deteriora." O Estado burguês é primeiramente su­ primido pelo proletariado. Em seguida, mas somente em seguida, o Estado proletário é reabsorvido. A ditadura do proletariado é necessária: primeiro, para oprimir ou suprimir o que resta da clas­ se burguesa; em segundo lugar, para realizar a socialização dos meios de produção. Cumpridas estas duas tarefas, ela começa logo a deteriorar-se.

Lenin parte portanto do princípio, claro e firme, de que o Es­ tado morre tão logo se opere a socialização dos meios de produção, sendo então suprimida a classe exploradora. Chega, porém, no mes­ mo libelo, a legitimar a manutenção, após a socialização dos meios de produção e sem termo previsível, da ditadura de uma parcela revolucionária sobre o resto do povo. O panfleto, que usa como referência constante a experiência da Comuna, contradiz de modo absoluto a corrente de idéias federalistas e antiautoritárias que pro­ duziu a Comuna. Ele se opõe, da mesma forma, à descrição oti­ mista de Marx e de Engels. A razão é clara: Lenin não se esqueceu de que a Comuna havia fracassado. Quanto aos meios de uma tão surpreendente demonstração, são ainda mais simples: a cada nova dificuldade encontrada pela revolução, dá-se uma atribuição su­ plementar ao Estado descrito por Marx. Dez páginas adiante, sem transição, Lenin afirma efetivamente que o poder é necessário para reprimir a resistência dos exploradores "e também para dirigir a

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grande massa da população, do campesinato, da pequena burgue� sia, dos semiproletários, para a organização da economia socialis�

ta". A mudança é incontestável; o Estado provisório de Marx · Engels vê-se encarregado de uma nova missão, que corre o risco de dar-lhe vida longa. Já encontramos a contradição do regime stalinista às voltas com sua filosofia oficial. Ou bem esse regim ' realizou a sociedade socialista sem classes, e a manutenção de um formidável aparelho de repressão não se justifica em termos mar­ xistas, ou então não o fez, comprovando-se neste caso que a doutri­ na marxista está errada e, particularmente, que a socialização dos meios de produção não significa o desaparecimento das classes. Diante de sua doutrina oficial, o regime é obrigado a escolher: ela é falsa ou ele a traiu. Na verdade, com Netchaiev e Tkatchev, Lassalle, inventor do socialismo de Estado, que Lenin fez triunfar na Rússia, em detrimento de Marx. A partir desse momento, rt

história das lutas internas do partido, de Lenin a Stalin, irá resu·

mir-se à luta entre a democracia operária e a ditadura militar · burocrática; ou melhor, entre justiça e eficácia.

Julgamos por um momento que Lenin vai encontrar uma es­ pécie de conciliação, ao vê-lo fazer o elogio das medidas tomadas pela Comuna: funcionários elegíveis, demissíveis, remunerados como operários, substituição da burocracia industrial pela gestão operária direta. Surge um Lenin federalista, que louva a institui­ ção das comunas e sua representação. Mas compreende-se rapida­ mente que esse federalismo só é preconizado na medida em que el ·

significa a abolição do parlamentarismo. Lenin, contra toda ver· dade histórica, qualifica-o de centralismo e logo enfatiza a idéia da

ditadura do proletariado, censurando aos anarquistas sua intransigência em relação ao Estado. Apoiada em Engels, inter­ vém neste ponto uma nova afirmação que justifica a manutenção da ditadura do proletariado após a socialização, o desaparecimento da classe burguesa e até mesmo a direção, finalmente conseguida,

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da massa. A manutenção da autoridade terá agora os limites que lhe são traçados pelas próprias condições da produção. Por exem­ plo, a deterioração definitiva do Estado coincidirá com o momento em que se puder fornecer moradia gratuita para todos.

É

a fase superior do comunismo: ''A cada um segundo suas necessidades." Até esse momento, haverá Estado.

Qual será a rapidez do desenvolvimento rumo a essa fase su­ perior do comunismo, na qual cada um terá segundo suas necessi­ dadesr "Isso nós não sabemos nem podemos saber ... Não temos dados que nos permitam resolver tais questões." Para maior clare­ za, Lenin afirma, sempre de modo arbitrário, "que não ocorreu a nenhum socialista prometer o advento da fase superior do comu­ nismo". Pode-se dizer que neste ponto morre definitivamente a liberdade. Do reino da massa, da noção de revolução proletária, passa-se primeiro à idéia de uma revolução feita e dirigida por agen­ tes profissionais. A crítica impiedosa do Estado concilia-se em se­ guida com a necessária, mas provisória, ditadura do proletariado na pessoa de seus líderes. Por fim, anuncia-se que não se pode prever o término desse Estado provisório e que além do mais nin­ guém nunca se atreveu a prometer que haveria um término. De­ pois disso, é lógico que a autonomia dos sovietes seja combatida, que Makhno seja traído, e os marinheiros de Kronstadt esmaga­ dos pelo partido.

Certamente, muitas afirmações de Lenin, amante passional da justiça, podem ainda ser contrapostas ao regime stalinista; princi­ palmente a noção de deterioração. Mesmo admitindo que ainda se passe muito tempo até que o Estado proletário desapareça, é ainda preciso, segundo a doutrina, para que possa ser chamado de prole­ tário, que ele tenda a desaparecer e torne-se cada vez menos coerci­ tivo.

É

certo que Lenin acreditava nessa tendência inevitável e que nisso ele foi superado. O Estado proletário, há mais de trinta anos, não deu nenhum sinal de anemia progressiva. Ao contrário, sua

crescente prosperidade é visível. De resto, dois anos depois, numa conferência na Universidade Sverdlov, sob a pressão dos aconteci­

mentos externos e da realidade interna, Lenin fará uma observa­

ção que deixa prever a manutenção indefinida do super-Estado proletário. "Com esta máquina ou esta maça (o Estado), esmaga�

remos qualquer forma de exploração, e quando na terra não hou­

ver mais possibilidade de exploração, mais gente proprietária de

terras e fábricas, mais gente se empanturrando nas barbas dos es­

fomeados, quando coisas como essas se tiverem tornado impossí­

veis, só então poremos de lado essa máquina. Então, não haverá nem Estado nem exploração." Enquanto houver na terra, e não mais em determinada sociedade, um único oprimido ou um pro­

prietário, então o Estado continuará a existir. Enquanto isso per­

durar, ele será obrigado a aumentar sua força para vencer, uma a

uma, as injustiças, os governos da injustiça, as nações obstinada­

mente burguesas, os povos cegos aos seus próprios interesses. F.

quando, sobre a terra enfim subjugada e depurada de adversários, a última iniqüidade se tiver afogado no sangue dos justos e do(:� injustos, então, tendo chegado ao limite de todas as forças, ídolo monstruoso cobrindo o mundo inteiro, o Estado será sabiamentu reabsorvido na cidade silenciosa da justiça.

Sob a pressão, contudo inevitável, dos imperialismos adver­

sos, nasce com Lenin, na verdade, o imperialismo da justiça. Mas o imperialismo, mesmo o da justiça, não tem outro fim senão a

derrota ou o Império do mundo. Até lá, não há outro meio a nã ser a injustiça. Desde então, a doutrina identifica-se definitivament<.: com a profecia. Por uma justiça longínqua, ela legitima a injustiça durante todo o tempo da história, ela se torna essa mistificação que Lenin detestava mais do que tudo no mundo. Ela faz com que se aceite a injustiça, o crime e a mentira, pela promessa do milagre. Uma produção maior e um poder maior, trabalho ininterrupto, sofrimento interminável, guerra permanente - e chegará o mo-

mento em que a servidão generalizada no Império total se trans­ formará milagrosamente em seu oposto: o lazer livre, numa repú­ blica universal. A mistificação pseudo-revolucionária tem agora sua fórmula: é preciso matar toda liberdade para conquistar o Im­ pério, e o Império um dia será a liberdade. O caminho da unidade passa então pela totalidade.

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