• Nenhum resultado encontrado

A S M ISSÕES E O P ADROADO P ORTUGUÊS DO O RIENTE

A 13 de Outubro de 1926 era publicado o Estatuto Missionário (Decreto nº 12.485). Este Decreto extinguiu as missões laicas e concedeu às missões católicas personalidade jurídica, isenção de impostos e assistência financeira, limitando ainda a intervenção de missões estrangeiras no ultramar, sobretudo as de outras confissões. Tais medidas foram bem acolhidas pelos católicos em geral e pelos bispos ultramarinos em particular175. Sobre o mesmo assunto o ministro de França em Portugal, E. Prelon, transmite a A. Briand, ministro dos Negócios Estrangeiros, a sua impressão:

Parece pelo menos prematuro fazer um julgamento completo sobre um Decreto cuja execução está apenas a começar. Faço notar, porém, que o acto administrativo, vindo após o Decreto sobre a personalidade jurídica da igreja (...) salientou mais uma vez a preocupação do general Carmona e dos seus colaboradores de suprimir o que a lei de separação tem de particularmente rigoroso e de dar garantias de vitórias a alguns partidos de direita e do clero. O acontecimento irá mostrar se a política de apaziguamento religioso por parte do Governo irá dar frutos ou se estas primeiras violações do princípio da laicidade, que em 1911 era um dos artigos de fé dos fundadores da República, não irão fornecer à oposição novos argumentos na sua luta contra a ditadura176.

Estas questões têm tanto mais relevância quanto alguns meses antes, a 27 de Fevereiro de 1926, a propósito do direito de apresentação dos bispos por parte do Presidente da República, o núncio Nicotra informou o titular dos Negócios Estrangeiros que as concordatas estabelecidas entre a Santa Sé e Portugal em 1857 e 1886 haviam caducado. E justifica-se:

«Com a revolução portuguesa, foi substituído à monarquia o regime republicano, e o Chefe de Estado não foi mais obrigado a pertencer à Religião Católica, verificando-se assim uma mudança substancial numa das duas partes; daqui, por necessária consequência, o contrato entre a Coroa e a S. Sé vinha juridicamente a perder todo o valor; pelo menos até que a S. Sé não tivesse com um acto positivo feito compreender que entendia manter o pacto com o novo regime; e tal acto não se deu mais.

Mas há muito mais do que uma simples mudança na forma de governo.

Em 20 de Abril de 1911 o Governo Português promulgava a Lei da Separação, com a qual não só declarava pelo modo mais explícito e formal que (art. 2º) a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião de Estado; e que (art. 6º) o Estado e as suas autoridades não podem exercer nem directa nem indirectamente por qualquer título nenhum encargo de culto, e muito menos portanto ingerir-se na nomeação dos bispos; mas até que o Estado português (art. 4º) não reconhece nenhum culto.

Tão categóricas expressões bastam por si para compreender que o Estado português renunciava a qualquer privilégio em matéria eclesiástica; e que se declarava tão abertamente

175

Arnaldo Madureira, A Igreja Católica na origem do Estado Novo, p. 68. 176

Ministère des Affaires Étrangères (Paris), Correspondance politique e commercialle, Europe, 1918-1929, Portugal, 21 (série Z).

53

laico e fora da Igreja que não quer nem pode logicamente pretender suceder de jure no gozo dos privilégios graciosamente concedidos pelos Sumos Pontífices à pessoa do Rei.

Isto é tanto assim que, em seguida à Lei da Separação, o Governo Português não se julgou obrigado a reconhecer as outras obrigações da Coroa para com a Igreja, e por isso não curou de exercer os relativos antigos direitos no continente e nas colónias africanas.

Quanto às possessões no Oriente, a mesma lei de separação mostrava (art. 190) de querer conservar para elas o Padroado, mas para isso o Governo Português não tinha já nenhum poder, porque com a mencionada lei tinha denunciado, como se disse, qualquer pacto com a Igreja e portanto perdidos aqueles privilégios concordatários que a Santa Sé tinha estipulado de continuar a manter à Coroa; e uma vez perdidos os ditos privilégios não se podiam readquirir sem uma nova concessão da Santa Sé.

[...]

Doutra parte os inconvenientes e agitações causadas pelo regime concordatário não eram então tão graves que exigissem uma imediata liquidação da complexa questão do Padroado.

É conhecido de facto a Vossa Excelência como tais dificuldades se agravaram singularmente nos últimos cinco anos.

Ninguém com efeito ignora os obstáculos que assoberbam governos coloniais com o acender- se e difundir-se do nacionalismo indiano; coisa esta que tem um grave reflexo também sobre a cura de almas, pois que os fiéis indígenas mal suportam que os seus pastores sejam escolhidos entre o clero de outros países; e reclamam sacerdotes e até bispos que tenham de comum com eles nacionalidade, estirpe, língua e costumes; o que de resto em princípio não é alheio ao pensamento e ao espírito da Igreja [...].

De mais, a dupla jurisdição sobre o mesmo território traz múltiplas e quase inextricáveis dificuldades, havendo duas autoridades eclesiásticas para fiéis que habitam por vezes na mesma aldeia e moram até sob o mesmo tecto; sem falar da disseminação dos fiéis, dependentes de um só Bispo português por zonas e extensões vastíssimas de território (bastará citar o exemplo da Diocese de S. Tomé de Meliapor, onde a jurisdição do Bispo é disseminada ao longo quase de todo o litoral indiano de este) o que dificulta o efectivo e eficaz exercício da autoridade episcopal.

De mais, o aumento dos fiéis pelo progresso contínuo da evangelização como também a rápida mudança dos centros habitados, requerem a instituição de novas dioceses além das fixadas e circunscritas pela Concordata.

Estes inconvenientes são também manifestos e os danos que deles derivam tão graves, que os próprios fiéis reclamam hoje, com a mais viva insistência, os oportunos remédios. Desde o início do Pontificado do Santo Padre Pio XI, constituíram-se na Índia activas Comissões, que não têm deixado passar semana sem mandar ao Santo Padre, às Sagradas Congregações, aos prelados mais autorizados, às personagens políticas e ao Governo inglês, suplica, invocações e queixas para que o Padroado seja explicitamente declarado abolido, em conformidade com as mudanças jurídicas, demográficas e políticas sobrevindas, e às quais acima se fez referência. Este estado de via e permanente agitação e de descontentamento até entre os bons não é sem deplorabilíssimo dano, pois que não poucos fiéis menos sólidos na fé estiveram e estão ainda em perigo de voltar como no passado se verificou à idolatria ou de passar à heresia protestante, a qual com a sua propaganda mais intensa, ameaça de fazer preza de um número sempre maior de almas.

Diga-se outra tanto da ameaça bolchevista.

Enfim não é de omitir que a Santa Sé se encontra em delicada posição mesmo defronte à opinião pública dos católicos de outros países e especialmente de Inglaterra, pois que eles não compreendem como a Santa Sé continue a manter, embora simplesmente de facto, um sistema juridicamente e historicamente caducado há 15 anos.

Por tais motivos, que se resumem todos no sacrossanto dever de tutelar e promover o bem das almas, que é a lei suprema da Igreja, o Santo Padre não está disposto a continuar no status

quo, mas decidiu que a questão seja inteiramente examinada e definida o mais depressa

possível.

As instruções dadas pelo Santo Padre ao Exmo. Senhor Cardeal Secretário de Estado são que, embora concedendo-se à Nação aquelas prerrogativas honoríficas que se julgarem oportunas para manter o seu prestigio e conservar nos séculos a recordação das insignes benemerências por ela adquiridas pela difusão do Evangelho nas Índias e no Oriente (…)177, se declare a absoluta liberdade da Santa Sé na circunscrição das dioceses e na escolha dos pastores, havendo perdido todo o valor as concordatas dos anos 1857 e 1886. Será pois cuidado da Santa Sé ter especial atenção para com os centros coloniais portugueses, e mesmo para os principalmente ligados por tradição antiga à Nação Portuguesa, afim de que até o regime diocesano seja conforme quanto possível a tal estado de coisas178.

O problema começou a ser resolvido dois anos depois, a 15 de Abril de 1928, quando a Santa Sé e o Estado português estabeleceram um acordo relativo ao Padroado, ao que tudo indica por pressão dos bispos. Este acordo consistiu na incorporação «na diocese de Goa da parte portuguesa da diocese de Damão e a restante na diocese de Bombaim, cujo Arcebispo seria alternadamente de nacionalidade portuguesa e britânica. Os limites da diocese de Meliapor sofreram certas modificações. No provimento das Sés de Goa, Cochim, Meliapor e Macau, a Santa Sé devia escolher um candidato português e comunicar o nome confidencialmente ao Presidente da República, que o apresentaria de modo oficial à Santa Sé, para nomeação. Quanto a Bombaim, Mangalor, Quilon e Trichinópolis, depois de escolher o candidato, a Santa Sé comunicava-o ao Presidente da República, que fazia a apresentação oficial ao papa, para a nomeação»179. Anulava-se a Concordata de 1886, excepto no que se referia às subvenções do Governo. No acordo não se dizia que a Concordata caducara, nem que o Padroado era extinto, mas isso é afirmado na nota ao Governo e na carta aos bispos de Portugal: «A Santa Sé considera o Padroado inexistente, e deixa aos portugueses na Índia algumas honras por respeito às benemerências nacionais na propagação da fé»180.

A este propósito, diz Fontenay, embaixador de França junto da Santa Sé, ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês, a 4 de Maio de 1928:

177 Sublinhados acrescentados por Oliveira Salazar, o último dos quais foi antecedido de um ponto de interrogação.

178

ANTT, AOS/CO/NE-29A, fl. 432-441. 179

Armando Castro, «Padroado do Oriente». In Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, vol. 3. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1968, p. 274. Ver A União, 9 Junho de 1928, p. 9-10.

180

Instruções da Secretaria de Estado ao Núncio Beda Cardinale, doc. nº 1508/28, Junho de 1928. ASV, Archivio della Nunziatura di Lisbona, scatola nº 439 (1), fl. 8-13r.

55

O protocolo que acaba de ser assinado entre a Santa Sé e Portugal demonstra uma vez mais a feliz perseverança do Cardeal Gasparri, decidido a libertar pouco a pouco a Igreja dos últimos laços de subordinação ao passado, e a afirmar sempre a vantagem da independência desta relativamente às potências temporais181.

Embora outro acordo relativo ao Padroado – este sobre a diocese de Meliapor – fosse assinado a 11 de Abril de 1929, a Santa Sé estava efectivamente empenhada em não o reconhecer juridicamente; de tal forma que o núncio Beda Cardinale, em Junho de 1928, é instruído pela Santa Sé no sentido de nunca afirmar a sobrevivência do Padroado182.