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O S P RIMEIROS E NSAIOS

A ideia do estabelecimento de uma Concordata entre Portugal e a Santa Sé remonta à Ditadura Militar. De acordo com um relatório do núncio Nicotra a Pietro Gasparri, Cardeal Secretário de Estado, datado de 26 de Março de 1927, aquele refere a troca de ideias que tivera com o ministro dos Estrangeiros, Gama Ochôa, relativamente às relações entre Igreja e Estado. Nessa circunstância, diz ter falado na possibilidade de substituir a «iníqua» Lei da Separação por um «regime concordatário mais adaptado ao nosso tempo e mais eficaz para manter no futuro a harmonia entre os dois poderes». Recomendou mesmo que tal se fizesse rapidamente, «quer pela boa disposição do Governo quanto a tudo o que vem da Igreja, quer pela exigência de toda a nação, que sendo católica a sua grande maioria, reclama com insistência a liberdade de culto e a perfeita personalidade jurídica da autoridade eclesiástica». O ministro, que o representante da Santa Sé caracteriza como «um liberal republicano à antiga e desgraçadamente educado na ideia da revolução francesa», terá dito ser «impossível falar agora no regime concordatário em Portugal». O clima não era propício, tanto mais que «a Santa Sé não tencionava reconhecer o Direito do Padroado de Portugal no Oriente», direito que pertencia ao Governo329. No entanto, Nicotra afirma que, nesta conversa, o ministro se posicionou contra a Lei da Separação, cuja proibição de instrução religiosa «até nas escolas

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Ricardo de la Cierva cit. em Cándido «El Concordato de 1953», ABC.es, 28 de Agosto de 2008. http://www.abc.es/hemeroteca/historico-28-08-2003/abc/Opinion/el-concordato-de-1953_204238.html.

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privadas, formara, com a liberdade de pensamento adversa a qualquer autoridade, uma população ateia, viciosa e anárquica, uma verdadeira geração de feras ferozes». Uma posição que remete para o papel do catolicismo enquanto elemento indutor do respeito pela autoridade.

Para obstar a tal circunstância, haveria que adoptar, segundo o ministro, um regime de separação semelhante ao brasileiro, pelo que «fará todos os esforços, mesmo junto aos seus colegas do Governo para que esta lei de Separação do Brasil seja adoptada em Portugal» (opinião aliás partilhada por alguns republicanos moderados e monárquicos “liberais”). O ministro está a referir-se ao Decreto nº 119-A, de 17 de Janeiro de 1890, que estabeleceu o regime de separação entre a Igreja e o Estado no Brasil, ao mesmo tempo que decretou uma total liberdade religiosa, que o catolicismo soube aproveitar: «libertou-se da tutela estatal, uniu-se ao Vaticano, organizou-se, romanizou-se, disciplinou e moralizou seus quadros, censurou e formou novos quadros, expandiu [a] sua rede de seminários, paróquias, dioceses e escolas pelo país, prosperou como nunca dantes e se tornou numa grande força social». Exemplos disso são as festas e comemorações colectivas que organizava («fazendo praticamente coincidir o calendário de festas e eventos religiosos com os momentos fortes de efusão colectiva e doméstica»), a administração dos sacramentos que ritmava e sancionava os principais momentos da vida dos cidadãos, as bênçãos aos deputados, os ministros, e edifícios públicos, a gestão de hospitais e escolas330.

Num outro relatório que o núncio Nicotra dirige a Pietro Gasparri, a 27 de Maio 1927, aquele descreve um banquete no Palácio da Ajuda oferecido ao corpo diplomático, onde, antes e depois da refeição, conversou com o ministro da Justiça, Manuel Rodrigues Júnior, quanto à personalidade jurídica da Igreja Católica em Portugal331. O ministro disse-lhe que o Decreto nº 11.887, de 15 de Julho de 1926, que tanta oposição suscitara, tinha garantido a autoridade do Bispo, submetendo a corporação à sua jurisdição (art. 5º). Na prática, fizera o que fora possível, tendo em conta que ainda estava em vigor a Lei da Separação de 1911. Restituíra à Igreja todos as igrejas confiscados pela Lei da Separação, o que importou a soma de mais de 5 milhões de escudos, preparava ainda a restituição de seminários e concedera ao clero o direito de aposentação. Mas o que Manuel Rodrigues destacava desta sua iniciativa era

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Ricardo Mariano – «Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso». In Ciudad Virtual de Antropologia y Arqueologia [em linha]. [Consult. em 7 de Junho de 2008]. Disponível em URL:<http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/ricardo_mariano.htm>.

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Os assuntos que dizem respeito às relações da Igreja Católica com o Estado estavam entre as competências do Ministério da Justiça. O mesmo acontecia em Espanha, se bem que aí, desde 8 de Agosto de 1939 existisse uma direcção-geral de assuntos eclesiásticos, que subsistiu durante todo o franquismo.

a possibilidade de ser ministrado o ensino religioso em todas as escolas privadas. O núncio realça como o aspecto mais significativo desta conversa a afirmação de que o ministro «pensa em breve redigir um outro projecto geral, que revogue completamente a Lei da Separação e tratando-se de uma nova legislação eclesiástica sobre matéria mista, a qual é de natureza bilateral, o ministro está disposto a tratar de acordo com o episcopado e a Santa Sé»332. Esta é, portanto, a primeira vez que o Governo se refere ao assunto, não sendo despiciendo lembrar que Rodrigues terá um papel importante nas futuras negociações. O que nos leva a conjecturar se tal facto não terá pesado na sua escolha para titular da Justiça naquele que foi o primeiro Governo de Oliveira Salazar.

No seu diário, o Monsenhor Beda Cardinale refere que no dia 20 de Julho de 1929 o Monsenhor Pizzardo, Secretário da Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários, tê-lo-á encarregado de inquirir sobre a possibilidade de se celebrar uma Concordata com Portugal333. Daí talvez que, num «Pro-Memoria» datado de 1929, da mesma Sagrada Congregação surja explicitamente a afirmação de que o núncio apostólico de Lisboa, em seu nome e no do Governo português, expressou o desejo de iniciar a negociação de uma Concordata entre Portugal e a Santa Sé, no que fora também secundado pelo Arcebispo de Évora e pelo novo ministro dos Estrangeiros Trindade Coelho na sua recente vinda a Roma334. Efectivamente, pouco depois é Trindade Coelho quem afirma, numa entrevista concedida ao Diário de Notícias um dia antes da sua tomada de posse no cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, inequívoca e publicamente, o ensejo de estabelecer uma Concordata com a Santa Sé, e que iria trabalhar para a sua concretização335. O núncio apressa- se a transmitir à Santa Sé que «a entrevista do senhor ministro foi julgada por muitos – ao menos no que diz respeito às relações com o Vaticano – uma imprudência, parecendo inútil e perigoso lançar o alarme no campo adversário, o qual meterá agora à obra todos os meios «para impedir a realização da ideia do ministro»336.

A inclinação de Trindade Coelho por estas matérias é também consubstanciada na vontade de criar na direcção-geral dos Negócios Políticos, uma secção «especialmente

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Relatório nº 3030, de Nicotra a Pietro Gasparri, 27 de Maio de 1927. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 339 P.O., fasc. 45, fls. 29-30. Faz a descrição de banquete no Palácio da Ajuda oferecido ao corpo diplomático.

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Diário de Beda Cardinale enquanto Núncio na Argentina e em Portugal. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 394 P.O., fasc. 154.

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ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 368 P.O., fasc. 111, fl. 7. 335

Entrevistas ao Novidades e ao Cittá Vaticana, cit. em A União, Julho 1929, p. 4 e 5. 336

Relatório nº 511 do Núncio a Gasparri. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 360 P.O., fasc. 95, fls. 28- 29.

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incumbida das questões religiosas»337. Todavia, vai apresentar a demissão rapidamente, não chegando a executar nenhuma das suas propostas. Um relatório de Beda Cardinale dirigido a Pietro Gasparri, datado de 27 de Agosto de 1929, explica porquê: para vexar propositadamente Trindade Coelho, um grupo de maçónicos encenou uma demonstração no Cemitério de Lisboa sobre o túmulo de seu pai, José Francisco Trindade Coelho, escritor anticlerical e maçónico, que se suicidara a 9 de Junho de 1908. O episódio, que terá tido a conivência da Polícia e da Censura, a qual permitiu a publicação da notícia no jornal, levou Trindade Coelho a exigir como reparação a imediata destituição do tenente-coronel Pestana Lopes da Polícia de Informação. Perante a recusa do presidente do Ministério, o ministro dos Estrangeiros demitiu-se, sendo-lhe dada a possibilidade de escolher um posto diplomático no estrangeiro. Trindade Coelho exigiu o Vaticano e, para evitar mais polémicas, o Governo anuiu, «consciente que esse destino tinha o agrado dos católicos»338. Seria então nomeado ministro de 1ª classe junto da Santa Sé por Decreto de 8 de Setembro de 1929. Por essa razão Augusto de Castro, seu antecessor, foi transferido para Berlim339. Beda Cardinale sublinhou que era a primeira vez que se escolhia um ministro notoriamente católico.

Note-se que a 19 de Agosto de 1929, antes de ser substituído, Augusto de Castro envia um ofício ao ministro dos Negócios Estrangeiros340, transmitindo a vontade manifestada pelo Cardeal Secretário de Estado e pelo Secretário para os Negócios Extraordinários (Monsenhor Pizzardo) de dar continuidade à promessa contida nas declarações de Trindade Coelho, embora pensasse que nenhum deles estava efectivamente convencido da viabilidade das negociações, procurando apenas «apalpar terreno»341.

Nos arquivos dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários encontra-se um projecto de Concordata redigido em Agosto de 1932 pelo padre franciscano António de Santa Maria342. Era então ministro na Santa Sé Trindade Coelho. O franciscano, numa carta a Monsenhor Tardini343, de 30 de Agosto de 1932, considera ter cumprido o seu dever embora duvidasse da

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Acto de posse no Ministério dos Negócios Estrangeiros, cit. em A União, Julho 1929, p. 5. 338

Ivens Ferraz, A ascensão de Salazar: memórias de Ivens Ferraz, p. 79-85.

339 ASV, Archivio della Nunziatura di Lisbona (1580-1940), scatola nº 443, fls. 238-9. 340

Era então ministro dos Negócios Estrangeiros interino o presidente do Ministério, Artur Ivens Ferraz (1870- 1933) – oficial do Exército, foi por diversas vezes ministro na Ditadura Militar. Presidiu ao Ministério de Julho de 1929 a Janeiro de 1930.

341 Ofício confidencial, reservado, nº 104 A. AHD-MNE, Santa Sé, GSG, Mç. 9 (pt. 2) 342

ASV, AES – Portogallo, IV Período, pos. 368, fasc. 111, fls. 11-28 343

Domenico Tardini (1888-1961) – ordenado padre em 1912. Foi nomeado por Pio IX assistente-geral da Acção Católica. Em 1925 foi nomeado para presidir à Societa della Gioventu Cattolica Italiana. A partir de 1921 trabalhou na Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinário, sendo nomeado Substituto em 1929 e Secretário em 1937. Era a terceira figura da Secretaria de Estado no tempo do Cardeal Pacelli. Foi nomeado Cardeal Secretário da Secretaria de Estado por João XXIII, em 1958.

«coragem do ministro» para enfrentar franco-mações e também algum sacerdote imprudente344. Junta a esta missiva uma cópia de outra que enviara a 28 de Agosto de 1932 ao ministro de Portugal na Santa Sé, Trindade Coelho, dizendo-lhe: no projecto «está tudo o que deve estar»; e se fosse ele o ministro apresentaria todos os artigos, porque «são expressão das aspirações dos nossos católicos bem pensantes, sérios e honestos» e «reflectem o direito concordatário, vigente nos países católicos». Trata-se apenas, dirá o franciscano, de uma base para a discussão, porque a redacção definitiva resultará ainda do estudo e da discussão dos representantes da Santa Sé e de Portugal. Espera que não se desperdice esta oportunidade, pois «a ocasião é óptima e seria um pecado não aproveitá-la porque será bem difícil encontrar circunstâncias melhores»345.

Entretanto, Trindade Coelho insiste junto do ministro dos Negócios Estrangeiros, César de Sousa Mendes na celebração de uma Concordata. Numa missiva de 28 de Setembro de 1932, na qual envia um projecto de acordo concordatário, escreve: «Se ligar o seu nome a uma Concordata, o seu nome ficará!». O então ministro de Portugal na Santa Sé afirma ter sido auxiliado pelo Monsenhor José de Castro, consultor eclesiástico da Legação portuguesa e reitor do Colégio de Santo António dos Portugueses346. O mesmo projecto será enviado, a 18 de Outubro de 1932, a Luís Teixeira de Sampaio, secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros347. Como princípio geral ter-se-á procurado «satisfazer as aspirações católicas do país e respeitar os não católicos», deixando-se antever as matérias que iriam dar corpo à redacção final, uns anos mais tarde: liberdade de culto, respeito pelo regime espiritual da Igreja, protecção e auxílio à instrução religiosa, assistência religiosa às Forças Armadas e dispensa de serviço militar para os sacerdotes, reconhecimento de efeitos civis ao matrimónio católico, ampla liberdade de associação, reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja, livre nomeação dos bispos, fomento ao apostolado sacerdotal, etc.348. Certo é que este projecto é praticamente igual ao atrás mencionado da autoria do padre António de Santa Maria.

Num texto de autor desconhecido que se encontra nos arquivos do Vaticano, intitulado «Algumas reflexões sobre uma possível Concordata com Portugal», com data de Outubro de 1932, sugere-se a redacção do primeiro artigo de uma futura Concordata nos seguintes termos: «A religião católica apostólica romana, inspiradora dos actos mais gloriosos da

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ASV, AES – Portogallo, IV Período, pos. 368, fasc. 111, fl. 30. 345

ASV, AES – Portogallo, IV Período, pos. 368, fasc. 111, fl. 31. 346 ANTT, AOS/CO/NE-29A, fl. 44-45. 347 ANTT, AOS/CO/NE-29A, fl. 44-46. 348 ANTT, AOS/CO/NE-29A, fls. 47-60.

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história de Portugal, é a religião da grande maioria do povo português». Enumeram-se também os assuntos a tratar nesse acordo. Assim, refere-se a necessidade de garantir «o livre e público exercício do culto», «o livre exercício do poder espiritual» e o exercício da sua própria jurisdição em matéria eclesiástica «em conformidade com os cânones sagrados e a presente concordata». Para esse efeito, o Governo deveria: 1) assegurar aos eclesiásticos a defesa do seu poder «para o exercício do próprio ministério espiritual, e não causar impedimentos nem impasses a tudo quanto a competente autoridade eclesiástica faça para o estabelecimento do bem das almas, a propagação da fé, a cura do culto, a manutenção das obras pias e de religiosas, etc.»; 2) punir o uso abusivo do hábito eclesiástico tal como se fazia no caso do uso abusivo da divisa militar; 3) estabelecer a isenção de serviço militar em tempo de paz para eclesiásticos e religiosos; 4) admitir, em tempo de guerra, os sacerdotes na assistência espiritual às Forças Armadas e os clérigos ou religiosos nos serviços sanitários; 5) confiar ao Patriarca de Lisboa a assistência religiosa das Forças Armadas, que a exercerá por intermédio de um vigário castrense (nomeado pelo Patriarca com o acordo do ministro da Guerra), do qual dependem os capelães (nomeados pelo ministro da Guerra, ou, respectivamente, da Marinha, sob proposta do vigário Castrense); 6) isentar os eclesiásticos do exercício de cargos civis que não estejam em conformidade com o seu estado; 7) estabelecer a proibição de inquirição aos eclesiásticos sobre assuntos de que tenham tido conhecimento pelo exercício do seu ministério; 8) fazer uma prece para a prosperidade e grandeza do povo lusitano nas festas depois da missa solene, em todas as igrejas catedrais; 8) prever o juramento de fidelidade dos bispos, tal como consta da Concordata italiana349. Dispensa-se, no entanto, a garantia da livre comunicação dos bispos com Roma, porque nem todas as concordatas o fazem (esta é uma prática estabelecida nas concordatas com a Itália, a Lituânia e a Roménia, mas não se verifica nas concordatas com a Baviera, a Polónia e a Prússia).

A 19 de Dezembro de 1932, o núncio visitou o ministro dos Negócios Estrangeiros tentando introduzir na conversa o assunto da Concordata. O governante ter-se-á mostrado reservado, falando-lhe da dificuldade política em que se encontrava Portugal350. Nesse mesmo dia, Beda Cardinale visitou também Teixeira de Sampaio que considerou a situação interna de Portugal delicada e referiu que, caso uma crise governamental levasse à saída de Oliveira

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ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 368 P.O., fasc. 111, fls. 36-70. 350

Diário de Beda Cardinale enquanto Núncio na Argentina e em Portugal. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 394 P.O., fasc. 154.

Salazar, seria o fim da ditadura, tendo por consequência uma «inevitável revolução, da qual se aproveitariam os comunistas».

No início do ano de 1933, é Oliveira Salazar quem se dirige ao núncio propondo-lhe o estabelecimento uma Concordata com a Santa Sé, de preferência fazendo coincidir a sua assinatura com o plebiscito da Constituição. O núncio explica no seu diário351 e num relatório352 que envia ao Cardeal Secretário de Estado, a 25 de Janeiro de 1933, como Salazar encetou esta tentativa de abertura de negociações. Às 16 horas do dia 17 de Janeiro de 1933, Oliveira Salazar foi recebido pelo núncio. Depois de agradecer a autorização para celebrar uma missa em casa do seu pai, que se encontrava doente, manifestou vontade de falar com o núncio sobre o estatuto da Igreja Católica em Portugal. Ter-lhe-á exposto «magistralmente» a situação criada a esta instituição nos últimos cem anos e afirmou que, muito embora em 1918 se tivessem reatado as relações diplomáticas entre o Governo português e a Santa Sé, subsistia o paradoxo de se encontrarem em vigor as leis anticlericais da Monarquia e da República. Ora, na dupla qualidade de católico e de chefe do Governo, desejava regular satisfatoriamente o estatuto da Igreja Católica em Portugal. Para isso tencionava celebrar uma Concordata com a Santa Sé (e também «preparar a passagem do regime ditatorial para uma situação normal» – a promulgação da Constituição estava para breve). O desejo de Oliveira Salazar assentava não apenas no facto de ser católico praticante, mas também na sua qualidade de homem de Estado, porque considerava que a sua obra ficaria «diminuída e imperfeita se não se resolvesse a dar uma solução satisfatória à situação contraditória em que se encontra a Igreja em Portugal. A unidade espiritual do País, a pacificação dos ânimos e a reparação devida à Igreja e aos católicos exige que o Governo faça todos os esforços para atingir um entendimento definitivo com a Santa Sé». Desde logo avisava que não podia ser senão um «programa mínimo», que se restringisse aos aspectos indispensáveis, pois a «mentalidade laica prevalecente», resquício «do regalismo e da propaganda anticlerical feita pela República», não permitia a celebração de uma Concordata que reparasse completamente «a ofensa feita à Igreja». Fazê-lo poderia suscitar «uma viva e profunda reacção». Salazar ter-se-á lamentado da solução proposta, mas a verdade é que enquanto governante reconhecia que não poderia fazer mais, razão pela qual apelava à «paterna benevolência da Santa Sé». Esta Concordata teria de ser entendida como um «primeiro passo para um ordenamento definitivo» que, «considerada a evolução que se

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Diário de Beda Cardinale enquanto Núncio na Argentina e em Portugal. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 394 P.O., fasc. 154.

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Relatório nº 2496 (reservado), dirigido ao Cardeal Eugénio Pacelli, Secretário de Estado de Sua Santidade, de 26 de Janeiro de 1933. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 368 P.O., fasc. 111, fls. 74-77.

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vai fazendo em Portugal, conduziria em seguida a um reconhecimento mais completo dos direitos da Santa Igreja». Os outros membros do Governo, bem como o ministro de Portugal na Santa Sé, ignoravam esta sua iniciativa, que Salazar só tornaria conhecida caso a Santa Sé concordasse com este «programa mínimo». Apenas Teixeira de Sampaio, secretário-geral dos Assuntos Políticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sabia da sua existência e conteúdo, ainda que vagamente. Salazar pediu então ao núncio que manifestasse confidencialmente esta sua intenção à Santa Sé e combinaram que a resposta de Roma ser- lhe-ia comunicada por carta enviada para a residência do Presidente do Conselho.

Salazar ter-se-á ainda lamentado, discretamente, da pouca simpatia de certos católicos pela Ditadura pelo facto desta não satisfazer todas as reclamações da Igreja, lembrando que caso houvesse uma nova revolução «a Igreja seria sempre a vítima». Os católicos pareciam não entender «o perigo da propaganda comunista favorecida pela situação espanhola; a hostilidade persistente dos grupos políticos inimigos da Ditadura que para terem êxito na sua intenção sectária estão prontos a lançar outra vez a pátria na luta e na rebelião». Para o núncio, a queixa de Oliveira Salazar pode ter «um certo fundamento se se considerar a coisa do ponto de vista estritamente político» mas, na sua opinião, mais do que lutarem contra a