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O «D ECRETO DA P ERSONALIDADE J URÍDICA »

O núncio estava ainda animado com o que o ministro dos Estrangeiros lhe transmitira numa audiência recente: o ministro de Portugal na Santa Sé, Augusto de Castro108, fora encarregado de «comunicar à Santa Sé a iminente publicação de um Decreto garantindo a personalidade jurídica da Igreja e o ensino religioso nas escolas privadas». O ministro dos Estrangeiros teria ainda dito: «O resto virá a seguir». Ora, «tudo isto faz crer, salvo surpresas imprevisíveis, que a promulgação do documento, redigido na substância pelo bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, e corrigido no aparato jurídico pelo ministro das Finanças [que era Oliveira Salazar], será qualquer dia um facto adquirido. Queira o Senhor que este seja o início de uma série de medidas, com vista a melhorar, senão a regular

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Relatório nº 1624, de Nicotra a Pietro Gasparri, 16 Junho de 1926. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 338 P.O., fasc. 43, fls. 45-46.

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Relatório nº 1624, de Nicotra a Pietro Gasparri, 16 Junho de 1926. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 338 P.O., fasc. 43, fls. 45-46.

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Augusto de Castro Sampaio Corte Real (n. Porto, 11.1.1883) – Escritor, jornalista e diplomata. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra (1903), foi advogado no Porto. Nesta cidade dirigiu o diário A Província. Já em Lisboa, foi deputado progressista e redactor-principal do Jornal do Comércio e cronista de O Século, onde manteve a secção «Fumo do meu Cigarro». Ensinou ainda no Conservatório de 1912 a 1922 e foi chefe de Repartição da Caixa Geral de Depósitos (1919). Em Março de 1924, foi nomeado chefe de missão de 4ª classe em Londres. Por Decreto de 6 de Junho de 1924 foi transferido para a Santa Sé na qualidade de chefe de Missão de 1ª classe, cargo que viria a ocupar também em Berlim por Decreto de 28 de Setembro de 1929. É depois transferido para Bruxelas, pelo Decreto de 18 de Novembro de 1929, e por Decreto de Janeiro de 1931 é nomeado ministro plenipotenciário em Roma (Quirinal), cargo que desempenha até 1935. A 4 de Janeiro de 1935 ingressa na Legação portuguesa no Vaticano. Em 1942 voltou à actividade diplomática, sendo em 1945, ministro plenipotenciário em Paris. Foi director do Diário de Notícias de 1919 a 1924, de 1939 a 1945, e a partir de 1947.

definitivamente, as condições da Igreja em Portugal»109. Ora, Oliveira Salazar deve ter tido um importante papel na primeira versão do projecto de Decreto, tanto que a Santa Sé vai posteriormente atribuir-lhe a sua redacção inicial; «fervoroso cristão», tê-lo-á elaborado de acordo com o bispo de Coimbra e feito aprovar através de Manuel Rodrigues Júnior.

O próprio bispo de Coimbra terá dito ao núncio que fora chamado pelo ministro da Justiça para lhe ler o projecto de Decreto e que, em função deste encontro, havia sido retirado do projecto «a penalidade para os párocos exonerados e suspensos» e a «permissão do ensino religioso», que segundo lhe teria dito Rodrigues Júnior, haveria de ser autorizado pelo Ministério da Instrução, o que o bispo considerava, e transmitira ao ministro, «uma cobardia». O bispo disse ainda que procurara junto do mesmo, como aliás já tinha feito na reunião que tivera com Oliveira Salazar e Mário de Figueiredo a 6 de Junho, «a quem o ministro [da Justiça] confiara a redacção do Projecto», acabar com o reconhecimento da personalidade jurídica às corporações de culto. A estes dois professores terá mesmo enviado uma carta, que o núncio transcreve:

Exmos. Amgs. e Srs.

Quanto à entrega dos bens, não convindo adoptar-se o art. 6º do meu projecto, parece-me que o art. 2º do Parecer da Câmara dos Deputados [...] é muito preferível ao Decreto Moura Pinto.

A Revolução certamente não quererá dar-nos menos do que aquele projecto.

O clero e os bispos são avessos a tudo o que são corporações ou mesmo conselhos de fábrica. Quanto mais simplicidade melhor. Um pároco cismático poderia tornar facilmente cismática a corporação ou conselho de fábrica.

Por amor de Deus peço a V. Exas. atendam a isto110.

O bispo de Coimbra terá ainda feito saber a Manuel Rodrigues que tal assunto, no entanto, deveria ser tratado com a Nunciatura.

Entretanto, segundo o mesmo eclesiástico, o «auditor da Nunciatura comunicou telegraficamente à Santa Sé os dois principais artigos do projecto dos Drs. Salazar e Mário de Figueiredo depois de entregue ao ministro». Mas, desde então, nunca mais o ministro lhe falara no projecto, nem tão pouco lhe comunicara o texto definitivo, «apesar de para isso ser instado pelo Dr. Cerejeira». Projecto esse que continha disposições que desconhecia, como a

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Relatório nº 1624, de Nicotra a Pietro Gasparri, 16 Junho de 1926. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 338 P.O., fasc. 43, fls. 45-46.

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Relatório nº 1624, de Nicotra a Pietro Gasparri, 16 Junho de 1926. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 338 P.O., fasc. 43, fls. 45-46.

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obrigação de prestar contas, a comissão de administração dos bens, a entrega dos bens em uso e administração (não em propriedade)111.

Numa carta da Nunciatura, escrita por Monsenhor Felici, com data de 1 de Julho de 1926 e dirigida a Monsenhor Francesco Borgongini Duca, Secretário da Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários112, dir-se-á novamente que o projecto fora elaborado por Oliveira Salazar. Ao mesmo tempo critica-se o projecto nalguns dos seus aspectos: fala de «igrejas» e não «da Igreja», «como se não fosse esta última a única vítima da famigerada Lei da Separação»; apresenta um cuidado «exagerado, para não dizer ridículo», em escudar-se atrás do Decreto Moura Pinto, afirmando «que as concessões de “hoje” estavam já contidas nas disposições de “ontem”» e defendendo «que não existe uma grande diferença entre a propriedade e o usufruto perpétuo»; mantém o regime vigente para as Irmandades; reconhece à Igreja «o direito de adquirir, possuir e administrar bens para fins de culto», embora «não de um modo absoluto e em consequência da sua perfeição jurídica, mas só ao abrigo da legislação vigente para as “Associações Perpétuas”»; transforma a Comissão Central de Execução da Lei da Separação numa «Comissão Administrativa» dos bens eclesiásticos, perpetuando-se «a memória nefasta dessa cruel disposição legislativa infligida à Igreja»113.

Monsenhor Felici transcreve um relatório do bispo de Coimbra no qual se referem os aspectos positivos do projecto: o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja, representada pela hierarquia; «a substituição por esta última das antigas “corporações” na propriedade e administração dos bens eclesiásticos»; «a restituição dos bens usurpados e ainda não aplicados efectivamente em obras de utilidade pública»; «a subtracção do

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Cópia de carta do bispo de Coimbra dirigida a «Ex. e Rv. Colega», datada de 6 de Dezembro de 1926. ASV – Archivio della Nunziatura di Lisbona, scatola nº 449 (1), fls. 11-12.

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De certo modo, confunde-se com a Secretaria de Estado. «Em 19 de Julho de 1814, Pio VII criou a Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários, ampliando a Congregação Super negotiis ecclesiasticis regni Galliarum, instituída por Pio VI em 1793. São Pio X, pela Constituição Apostólica Sapienti Consilio de 29 de Junho de 1908, dividiu a Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários na forma fixada pelo Codex Iuris Canonici de 1917 (cân. 263) e estabeleceu as funções de cada uma das três secções: a primeira delas tratava essencialmente dos assuntos extraordinários, enquanto a segunda se interessava pelos assuntos ordinários, e a terceira, que até então fora um organismo autónomo (Chancelaria dos Breves Apostólicos), tinha por missão cuidar da preparação e despacho dos Breves Pontifícios. Paulo VI, com a Constituição Apostólica

Regimini Ecclesiæ Universæ, de 15 de Agosto de 1967, cumprindo o desejo expresso pelos Bispos no Concílio

Vaticano II, reformou a Cúria Romana e deu um novo rosto à Secretaria de Estado, suprimindo a Chancelaria dos Breves Apostólicos, que era a terceira secção, e transformando a que era antigamente primeira secção, ou seja, a Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários, num organismo distinto da Secretaria de Estado, embora estritamente ligado com ela, e que tomou o nome de Conselho dos Assuntos Públicos da Igreja». (http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/documents/rc_seg-st_12101998_profile_po.html). 113

Baptismo, e, nalguns casos, do Matrimónio à odiosa precedência do registo civil»114; «a liberdade de ensino religioso nas escolas particulares»115.

Numa carta do núncio Sebastiano Nicotra dirigida a Pietro Gasparri, de 8 de Julho de 1926, aquele informa que o projecto fora assinado no dia 6 e enviado para o Diário do

Governo. Mostra-se surpreendido com as diferenças entre o Decreto de Manuel Rodrigues e a

versão anterior elaborada por Oliveira Salazar.

O Decreto revela, no entender do núncio, «o espírito mesquinho regalista que, dolorosamente, o penetra»: «a personalidade jurídica é, de facto, reconhecida não à Igreja, na sua hierarquia, mas às velhas “corporações” (artigo 1) as quais, não fosse o § único do artigo 5 [segundo o qual a constituição, modificação e substituição das corporações só poderá ser feita mediante participação do Bispo], nenhuma diferença teriam das famosas “cultuais”»; «no artigo 2 a capacidade de adquirir, possuir e administrar bens para fins cultuais, concedida às ditas corporações, é arbitrariamente limitada às igrejas, aos seminários e aos terrenos anexos à residência do ministro da religião»; «não menos odiosa é a disposição do artigo 7, que impõe às mesmas um contributo anual de 10% das receitas globais, pior do que se tratasse de uma associação desportiva ou comercial»; «o artigo 9 estabelece que venham a ser consignadas, em uso e não em propriedade, às mesmas corporações somente os bens mencionados no artigo 2º, que se encontram actualmente em posse do Estado e não estejam ainda destinados ou efectivamente aplicados em funções de utilidade pública» – «Todos os outros bens, que, segundo o projecto de Oliveira Salazar, deveriam ser restituídos em propriedade aos entes a quem pertenciam antes da Lei da Separação, serão vendidos em hasta pública (art. 21) e o produto da venda será depositado na Caixa de Depósitos, à ordem da famigerada Comissão Central da Lei da Separação, que assume a denominação, disfarçada e hipócrita, de “Comissão de Administração de Bens já pertencentes à Igreja” (art. 20)».

Neste sentido, o núncio considera o Decreto um «parto infeliz»: para além da liberdade de ensino religioso nas escolas privadas e do reconhecimento do direito a pensão aos párocos que à data da proclamação da República já tinha sido adquirido à luz da lei

114 «Art. 7. O Baptismo pode sempre celebrar-se sem dependência do respectivo registo civil; mas o ministro do culto que o administrar, sem que lhe seja apresentado o respectivo boletim ou cédula do Registo, é obrigado, sob pena de multa de 20 a 100 escudos, a comunicar o facto ao competente funcionário do registo civil.

Art. 8º. O casamento pode, em perigo de morte em eminência de parto, ser celebrado pelo ministro da religião sem dependência do Registo Civil, tendo então os mesmos efeitos jurídicos que o realizado nos termos do Art. 201 do Código do Registo Civil»114.

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vigente, «o testamento do Professor de Coimbra [Manuel Rodrigues] não é senão uma reprodução imperfeita do famoso Decreto Moura Pinto». Termina dizendo:

Francamente, de um Governo que proclamou vivamente que queria romper para sempre com toda a tirania, e de um ministro que se professava crente, os católicos portugueses tinham o direito de esperar melhor e sobretudo mais116.

Num outro relatório do núncio a Gasparri, de 23 de Julho de 1926, dá-se conta que fora republicado no dia 15 deste mês o Decreto nº 11.887, no qual agora se suprimia «a ódios» disposição do art. 7, que criava uma contribuição de 10% a favor da assistência pública.

Apesar de todas estas críticas, na conferência anual dos dias 20 e 21 de Julho, os bispos portugueses, «considerando que o Decreto, embora não contendo tudo o que era devido à Igreja, constituía um grande passo no caminho das reivindicações católicos», resolveram unanimemente dar-lhe execução. Contudo, recusaram-se a aceitar a disposição relativa à apresentação de contas à autoridade administrativa. Trataram ainda da organização das corporações, tendo aprovado um esquema de estatuto, o qual foi elaborado pelo bispo de Coimbra:

As corporações têm de coincidir com o número de paróquias, sendo constituídas por 7 pessoas. Deverão ser presididas por um pároco local, um secretário e um tesoureiro, nomeados pelo presidente e confirmados pelo Ordinário. Os três formam a Direcção, a qual administra os fundos do culto e os bens móveis da Corporação. Tudo o que se refere ao exercício do culto, ao ensino religioso e à vigilância da igreja e suas dependências, é da exclusiva responsabilidade do Presidente. Deste modo, «a predominante participação do pároco na administração dos bens eclesiásticos, a exclusão de qualquer ingerência de laicos no que se refere ao exercício do culto – uma e outra conforme ao espírito e à letra do Decreto – correspondem plenamente à taxativa disposição dos Cânones 1183 e 1184». Por outro lado, as corporações ficam na dependência do Ordinário, o qual, por força do artigo 5º, pode modificá- las ou substituí-las117.

No entanto, o bispo do Porto, D. António Barbosa Leão, que não esteve presente na referida reunião plenária, considera que nada se deveria fazer sem uma instrução da Santa Sé. Discorda que se esteja a dar já execução ao Decreto, pois está convencido de que, «nas circunstâncias actuais do país, não seria talvez muito difícil conseguir no Decreto as indispensáveis modificações». Depois, transmite ao núncio aquilo que mais lhe repugna no Decreto:

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Relatório nº 1642. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 339 P.O., fasc. 44, fls. 29-30. 117

Em primeiro lugar, como é que num país com relações de amizade com a Santa Sé se legisla sobre assuntos que tanto importam à vida da Igreja sem ouvir os seus legítimos representantes? [...];

Em segundo lugar, fala-se em conceder a personalidade jurídica à Igreja; mas não foi isso o que se fez. O que eu vejo (art. 1º) é a personalidade jurídica concedida a corporações encarregadas de culto… Corporações criadas por indicação do Estado em determinadas condições, e funcionando, em grande parte, na dependência do Estado, o que revela a aspiração de sempre dos políticos portugueses: criarem uma Igreja portuguesa, terem sempre dentro da Igreja Católica um organismo bem preso e bem dependente do Estado. [...];

Em terceiro lugar, aceites que sejam estas corporações, como é que se podem tolerar os parágrafos 1º e 2º do artigo 8º?!

Contas, sim; mas pelo modo que o Bispo ordenar e o Direito Canónico prescrever.

Desde que o Estado, por meio das corporações encarregadas do culto, acautela o que entrega e diz pertencer-lhe, nada mais tem com a aplicação do que os fiéis, como tais, dão para o culto da sua religião. [...].

Já ouvi dizer que, neste ponto, a lei não tem sanção. Mas basta ler os referidos parágrafos para encontrar lá tudo: “… escrita e contabilidade em harmonia com a lei …” e esta lei não terá sanção? Oh se tem!... “as contas estarão … no edifício onde se reúnam os interessados … e qualquer deles poderá …. reclamar contra as mesmas, nos termos da legislação em vigor”. E também aqui não haverá sanção? Oh se há! Além de outros vexames e incómodos a que ficam sujeitos os párocos e os bispos (pois lá devem estar nas Corporações) até aos tribunais administrativos podem ser levados.

Quem conhece os meios de perseguição que muitas vezes nas paróquias se empregam contra os párocos, não pode ignorar que está aqui uma terrível arma, até política, contra os párocos. Quem sabe se foi este o principal motivo porque se escreveram no Decreto estes parágrafos? Sempre tive horror à intromissão do poder civil no governo da Igreja; e este horror tem crescido sempre com a minha experiência cada vez maior.

[...]

No artigo 18º é preciso cortar as palavras “nos termos em que se exerce o direito de reunião” (1). Se neste ponto se aplica a lei, ficamos muito pior do que estávamos.

O artigo 27º de modo nenhum pode ficar como está – Se assim ficar, no fim de Setembro, e sobretudo no fim do ano corrente, se não estiverem organizadas e não tiverem ainda tomado posse as corporações de que fala o Decreto, o que é quase certo ao menos quanto à maior parte, ficarão sem casa para residir a maior parte dos párocos do país!

Apresenta assim estas e outras críticas, para ver se o núncio, «com a sua alta influência e reconhecido tacto diplomático, consegue ao menos corrigir o que no Decreto mais pode prejudicar a vida religiosa e os direitos da Igreja em Portugal»118.

O núncio responde a 21 de Agosto de 1926, dizendo ao bispo que desconhece qual o pensamento da Santa Sé sobre o assunto. Por essa razão, julga «por enquanto prematura qualquer acção junto do Governo», mas assegura-lhe que, depois de conhecida a opinião da

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Santa Sé, nada deixará de fazer para que o Decreto seja modificado, eliminando, se possível, os problemas apontados pelo Bispo119.

A verdade é que o núncio já se congratulara com a decisão dos bispos em relação à execução do Decreto, o qual, no seu entender, «apesar de não reconhecer à Igreja a prometida personalidade jurídica, melhora sem dúvida a sua condição». Tanto mais que «uma atitude de irredutível hostilidade poderia irritar o Governo, e prejudicar o caminho a posteriores concessões, que a disposição pessoal do ministro da justiça e as explícitas declarações do Presidente do Ministério fazem esperar». Neste sentido, e porque o Decreto fixava um prazo de 60 dias para reclamar do que se regula no artigo 9º120, pede instruções céleres à Santa Sé121.

Mais tarde, já em Junho de 1928, nas instruções da Secretaria de Estado a Beda Cardinale, dir-se-á que «a obra do presente Governo foi precedida de um projecto de Oliveira Salazar, defeituoso mas aceitável e rico de vantajosas disposições, substituído posteriormente [...] por um Decreto que concede bem pouco à Igreja, e que reafirma não poucas das iníquas disposições anteriores»122. Sendo certo que naquele momento não «teria sido possível colocar em discussão toda a legislação eclesiástica portuguesa», o Decreto nº 11.887, de 6 de Julho de 1926, acabou por mitigar as concessões do projecto de Oliveira Salazar, «e por pouco conceder à Igreja»123. Se, por um lado, autorizava o ensino do catolicismo nas escolas privadas e conferia o direito de aposentação aos párocos, por outro, os bens não eram devolvidos à Igreja, que detinha apenas o seu usufruto, sendo ainda necessário fazer prova de que os bens eram efectivamente indispensáveis ao culto; persistia a Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais, criada pela Lei da Separação, que vivia dos proventos dos bens eclesiásticos confiscados e era composta por maçónicos (de acordo com Monsenhor Nicotra)124; não se reconhecia a personalidade jurídica à Igreja Católica ou à Santa Sé, nem

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Ofício nº 1701. ASV – Archivio della Nunziatura di Lisbona, scatola nº 436 (3), fl. 82 120

Artigo 9º: «Aos particulares e às corporações com individualidade jurídica é concedido um novo prazo de sessenta dias, a contar da publicação deste Decreto, para reclamarem pelo processo do Decreto de 31 de Dezembro de 190 sobre a propriedade dos bens a que se refere o artigo 62º da Lei da Separação do Estado das Igrejas e que ainda se conservam na posse do Estado ou de qualquer corpo administrativo».

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Relatório nº 1660. ASV, AES – Portogallo, IV Periodo, pos. 339 P.O., fasc. 44, fls. 34-35. 122

Instruções da Secretaria de Estado ao Núncio Beda Cardinale, doc. nº 1508/28, Junho de 1928. ASV, Archivio della Nunziatura di Lisbona, scatola nº 439 (1), fls. 8-13r.

123 Instruções da Secretaria de Estado ao Núncio Beda Cardinale, doc. nº 1508/28, Junho de 1928. ASV, Archivio della Nunziatura di Lisbona, scatola nº 439 (1), fls. 8-13r.

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A 24 de Agosto de 1926 é promulgado o Decreto 12.184, que dissolve a «Comissão Jurisdicional dos bens das extintas congregações religiosas, a «Comissão da administração dos bens que pertenciam às igrejas» e a «Comissão nacional das pensões eclesiásticas». Em seu lugar é criada a «Comissão administrativa dos bens que pertenciam às igrejas e congregações», que herdará a competência de todas as outras e será composta por um juiz do Supremo Tribunal de Justiça (presidente), um juiz de segunda instância (vice-presidente), três juízes de

mesmo às paróquias ou dioceses, mas apenas às corporações encarregadas do culto; exigia-se às corporações terem escrita e contabilidade, que deveriam ser enviadas às autoridades administrativas no final de cada ano; determinava-se que os bens já destinados a serviços de utilidade pública seriam definitivamente cedidos para os mesmos serviços125.

Mesmo se, a 7 de Maio de 1940, Oliveira Salazar preparou um texto sobre a nova Concordata a ser entregue aos jornalistas no qual afirmava que, quer este Decreto, quer ainda Estatuto Orgânico das Missões (Decreto nº 12.485, 13 de Outubro de 1926), «abriram o