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A situação econômica no Leste Europeu entre 1985 e 1987

Veja não classificou como crise as condições econômicas do bloco soviético antes de 1988. Entre 1985 e 1987, suas características seriam filas e escassez crônicas de alguns produtos, o baixo crescimento, o burocratismo e centralismo exagerados. Mas ainda assim a segunda economia do mundo. Não era uma economia inviável. Mas estava se demonstrando cada vez mais como incapaz de concorrer com o capitalismo.

Em 1985 aponta que a escolha de um jovem e pouco conhecido membro do Politburo para o cargo de secretário-geral devia-se à necessidade de enfrentar de uma maneira séria esses

179 Ouvidos atentos. Veja, nº 933, 23/07/1986, 66.

problemas. Há no texto, ao mesmo tempo em que uma análise retrovisora que já apontava que Gorbachev seria o novo líder do país, dado seu papel no encontro com lideranças ocidentais em dezembro de 1984181, um certo desconforto e surpresa com a escolha do “jovem e pouco

conhecido” homem de comitê. Essa admiração pode ser explicada porque ela não acometeu apenas Veja, mas muitos sovietólogos (BROWN, 1996, 82). Uma vez que o totalitarismo era imutável e previsível, o novo líder deveria ser outro gerontocrata, aquele que apareceu recentemente junto ao último líder em momentos importantes, e este era Grishin, quase um espelho de Chernenko. Ou alguma figura eminente da gerontocracia, como Gromyko ou Tikhonov. A perspectiva negativa e o espanto diante de um “garoto no Kremlin” são sugeridos ainda pelo silêncio do semanário em sua edição de 13/03/1985, três dias após a morte de Chernenko e dois após a ascensão de Gorbachev. Uma matéria sobre a nova liderança só apareceu na semana seguinte, em 20/03/1985.

“Desde a passagem de Yuri Andropov pelo poder em Moscou, fala-se na URSS em reformar a catatônica economia do país, e periodicamente convocam-se os trabalhadores a maior disciplina ideológica e empenho no trabalho. Em vão”182. Nas primeiras semanas de governo do novo líder soviético, considerava que ele seguiria o modelo de reforma de Andropov (VOLKOGONOV, 2008, 375; 403; PALAZHCHENKO, 1997, 62; BRESLAUER, 2002, 53), primeiramente por não ser um excelente economista, em vista das safras “desastrosas” que presidiu enquanto ministro da Agricultura e, em seguida, por não destoar dos discursos dos secretários-gerais do passado. Seu discurso de posse havia sido o de praxe, o da “promessa de encorajar os cidadãos que demonstrarem de modo prático atitude honesta e consciente em relação ao dever cívico”, o que significaria premiar os melhores trabalhadores183. E esteva desde já

fadado ao fracasso. Se afirmava que “a URSS de Gorbachev será mais democrática, mais eficiente na economia e mais flexível no plano internacional”, cita o dissidente Zinoviev para asseverar que os planos de Andropov, que Gorbachev estaria resgatando, de “descentralização, incentivos para os trabalhadores e maior disciplina”, não pode ser aplicado, pois o sistema era coletivista, se afirmava sobre vontade das massas inertes e acostumadas ao aparelho econômico e social, com milhares de funcionários públicos e suas famílias que queriam a continuidade de seu

181 Um garoto no Kremlin. Veja, nº 863, 20/03/1985, 68. 182 Uma czarda de sucesso. Veja, nº 856, 03/04/1985, 55. 183 Um garoto no Kremlin. Veja, nº 863, 20/03/1985, 69.

status, que mesmo essas mudanças superficiais seriam difíceis184. O modelo de sucesso no bloco, num dos poucos episódios em que a revista demarca sua diferenciação interna, seria o do regime húngaro. O exemplo oferecido é o de que invés de reformas disciplinadoras no aparelho de gestão econômica, a introdução do mercado impessoal é a verdadeira solução para os problemas econômicos. Há 6 anos a admissão “das leis de mercado, pequenas empresas privadas e o lucro individual na agricultura” fizeram todo o trabalho de modernização econômica sozinhos. Coisa que os chamados à ordem jamais farão. Aponta que:

Budapeste parece ter mais a ver com a opulência de Viena, a 240 quilômetros de distância, do que com a eterna escassez e as filas de Moscou, a 1600 quilômetros [...]. Os húngaros hoje ostentam o mais elevado padrão de vida dentre os 110 milhões de pessoas que vivem nos seis países satélites da União Soviética185.

O maior PIB da região, ao contrário do que afirma a revista, não era não o da economia de “socialismo de mercado” húngara, mas a centralizada e disciplinada economia estatal da Alemanha Oriental (BRZEZINSKI, 1990, 255). Tampouco existe qualquer referência à Polônia, a segunda economia de “socialismo de mercado” do Leste Europeu, em termos cronológicos. Esse silêncio pode ser explicado uma vez que, ao contrário de se constituir em exemplo de sucesso, teria que figurar como modelo de fracasso na introdução do mercado e na redução da presença do Estado nas relações econômicas (NOVE, 1989, 232). Assim, pode afirmar que a teimosia soviética em não seguir o exemplo húngaro tornaria difícil acreditar que sua economia voltaria a crescer em ritmo acelerado. O “planejamento da produção é tão centralizado e os preços tão artificiais” que é “tarefa hercúlea” devolver o dinamismo à economia.

Enquanto especialistas destacam a importância da crise provocada pela falta de matéria- prima nas indústrias, causada pelo esgotamento do modelo extensivo (RODRIGUES, 2006, 130, SEGRILLO, 2000, 115; POMERANZ, 1990, 23), Veja afirma que essa não passa de uma causa secundária para o arrefecimento da atividade econômica. “Nas fábricas, o maior problema não é a falta de matérias-primas, mas o absenteísmo, a ineficiência, o alcoolismo e a indolência pura e simples”. Kádar, pelo contrário, “encoraja as diferenças”, incrementa o desenvolvimento e muda o país sem perder os privilégios existentes. “O fato, porém, é que na Hungria a liberalização econômica foi feita sem destruir o sistema e sua elite dirigente”. A adaptação magiar não é

184 Um garoto no Kremlin. Veja, nº 863, 20/03/1985, 73. 185 Uma czarda de sucesso. Veja, nº 856, 03/04/1985, 55.

apenas interna. “A Hungria dobra-se à política externa e à soberania ideológica de Moscou, mas em troca de uma considerável autonomia doméstica”186.

Dois meses depois faz uma lista dos problemas da URSS: “doenças crônicas como baixa produtividade, absenteísmo e lassidão no trabalho, uma pesada burocracia centralizadora e paralisante e, ao lado de tudo isso, problemas sociais graves como a corrupção e o alcoolismo”. A fórmula para combater esses problemas foi anunciada.

Gorbachev pediu mais ênfase nas forças do mercado, atenção às necessidades dos consumidores e maior autonomia de cada setor de produção. Nem de longe, porém, é de se esperar na URSS uma nova revolução baseada na livre iniciativa e no lucro remunerador do risco pessoal, como a que está ocorrendo com tanta rapidez na China comunista187.

O Kremlin está apenas modernizando o planejamento centralizado, que é o principal problema econômico e o retentor das forças produtivas. Como prova da culpa da planificação e estatismo viciosos cita o caso da fábrica que entregou um lote de botas com o calcanhar no lugar do bico. Mesmo a revolução que corria na China não significava que ela estaria abandonando o comunismo. Porém estaria reconhecendo a existência de mecanismos próprios do capitalismo que seriam inerentes ao funcionamento de qualquer economia, além de apontar problemas teóricos e práticos do próprio comunismo, que Veja faz questão de enfatizar. Como na matéria “a via chinesa: numa entrevista a Veja, Zhao Ziyang fala de comunismo, capitalismo, Mao Tsé-Tung e relações bilaterais”. Através da entrevista, há a crítica contundente aos radicais do passado e da ala esquerda do PCCh, à experiência da Revolução Cultural, à ortodoxia marxista, aos erros de Mao Tsé-Tung, e um louvor as reformas de mercado188. A China, tanto na crítica teórica ao

marxismo-leninismo quanto na reforma econômica liberalizante, estaria bem à frente da URSS, e isso, ao contrário do que Brzezinski afirmaria em 1988 (BRZEZINSKI, 1990, 155), não a tornava menos comunista, para Veja. “Entenderá mal o que ocorre no país, porém, quem imaginá-lo – como às vezes sugerem as notícias que chegam ao Ocidente – transformado do dia para a noite num novo paraíso capitalista”189. Trata-se apenas de um “comunismo atualizado” – e dever-se-ia

esperar que ocorresse o mesmo aos comunistas e socialistas brasileiros.

186 Uma czarda de sucesso. Veja, nº 856, 03/04/1985, 55. 187 Gorbachev vai à luta. Veja, nº 876, 19/06/1985, 37. 188 A via chinesa. Veja, nº 896, 06/11/1985, 52-53. 189 A segunda revolução. Veja, nº 881, 24/07/1985, 45.

Veja, inicialmente vê as reformas pretendidas por Gorbachev como de pequena monta, mencionado brevemente experiências anteriores fracassadas. De fato, além das grandes reformas sob Kruschev, depois de 1965 teriam lugar ainda três cautelosas tentativas de reforma descentralizante e de racionalização sob Brejnev, duas das quais sob a batuta do reformador presidente Kossíguin (BROWN, 2010, 369; 403-404). Mas, apesar dos esforços do presidente, com uma minoria de adeptos, as medidas ficaram emperradas no Politburo (PLOSS, 2010, 122). Veja previu o mesmo destino de fracasso e resistência dos demais líderes componentes do órgão máximo do país, e ao retorno ao antigo sistema totalitário, imutável. A rápida tomada de poder dentro do Politburo190, além da própria formação pessoal de Gorbachev, poderiam, entretanto, invalidar essa previsão.

Há quem veja com ceticismo as chances de sacudir com reformas limitadas a emperrada burocracia soviética, algo que já foi tentado no passado. Gorbachev, contudo estaria mais bem posicionado do que qualquer outro dirigente soviético do passado para tentar transformar seu país numa potência econômica, em pé de igualdade com seu poderio militar191.

Da mesma forma que as mudanças na conduta externa eram “cosméticas”, as reformas econômicas não poderiam passam além da superfície do sistema. Assim a URSS abria as portas para 32 fábricas da grife Pierre Cardin. A ortodoxa Bulgária já as possuía desde 1981. A China, desde 1984.

Em poucos territórios o atraso soviético é tão visível como no do vestuário. Produzidos em série, os modelos de roupas disponíveis na URSS [...] são, invariavelmente, pesados e cinzentos – seguindo o figurino pós-revolucionário, que considerava a elegância um vício burguês192.

Mas a profundidade das reformas seria tão restringida à aparência quanto o vestuário. Isso “pode ser visto como mais um indício dos novos ares de modernização que sopram em Moscou sob o comando de Gorbachev”. O êxito da modernização limitada é pouco esperado. “Numa sociedade cujo governo proíbe listas telefônicas e máquinas xerox, temeroso de que sejam usadas para fins subversivos, qualquer campanha de modernização mais ampla pode tonar- se uma armadilha perigosa”193. O objetivo de Gorbachev seria circunscrito a uma reforma

190 Retomada do diálogo. Veja, nº 898, 20/11/1985, 69.

191 LEITE, Paulo Moreira. O espírito de Genebra. Veja, nº 899, 27/11/1985, 71. 192 Veja, nº 903, 25/12/1985, 36.

baseada em levar os “soviéticos a sacudir a letargia da máquina burocrática, acelerar a produção e transformar a URSS numa potência econômica de primeira linha”194.

As comparações com Kruschev vêm depois, principalmente com o demolidor relatório do XXVII Congresso do PCUS, em 1986. Agora a impressão é que as reformas são mais profundas, talvez até mais do que as do antigo secretário-geral, e como ele, o caminho mais provável era o do fracasso e o da deposição pelos conservadores e o retorno à imutabilidade totalitária.

O sistema soviético é notório pela sua inércia, uma máquina econômica que funciona em baixa voltagem, com graves gargalos na produção e distribuição de bens. Mas a contrapartida das filas para compra de alimentos e escassez de bens duráveis é a garantia de emprego. Nem trabalhadores nem burocratas são demitidos por incompetência, e a maioria é avessa a mudanças que ponham em risco tal estabilidade. Compara o cientista político Seweryn Bialer, da Universidade de Columbia, nos EUA: “Depois do terror stalinista, Kruschev devolveu aos líderes soviéticos o direito de continuarem vivos, mesmo quando em desgraça. Seu sucessor, Brejnev, devolveu-lhes a estabilidade no emprego”. Assim, azeitar a engrenagem para torná-la mais eficiente, como pretende Gorbachev, seria um desafio equivalente a fazer um elefante dançar195.

Analogia que dá espaço para sugerir que Gorbachev irá falhar. Se há contrapartidas benéficas no sistema para sua baixa competitividade, são essas mesmas que provocam sua própria deficiência – o caráter de funcionalismo público generalizado, que Veja tanto deplora (SILVA, 2009, 49-51).

Com o XXVII Congresso do PCUS, de fevereiro de 1986, Gorbachev teria deixado de ser um reformador tímido e superficial, como Yuri Andropov o foi, para superar até mesmo o arrojo das propostas de Nikita Kruschev.

Não foi por acaso, afinal, que o dirigente soviético marcou a abertura do 27° Congresso para o dia 25 de fevereiro – a mesma data do início do histórico congresso de 1956 [...] Nunca antes, porém, Gorbachev fora tão claro em seu repúdio ao imobilismo da era Brejnev196.

Ou na “necessidade de mudanças que resultem num melhor desempenho da economia soviética” que Veja lembra, citando Gorbachev, que passam pela superação da “inércia e imobilismo das formas e métodos de administração, o declínio do dinamismo em nosso trabalho e o aumento da burocracia – todos estes, fatores que causaram grandes danos”. Medidas que o semanário entende como necessárias para qualquer economia, principalmente a do Brasil

194 SANTA CRUZ, Selma. A ascensão de Gorbachev. Veja, nº 904, 01/01/1986, 71. 195 Idem, 72.

(SILVA, 2009, 35). Não é à toa o título da reportagem ser “De olho no futuro”. Porém isso não significa o início ou o sucesso futuro das reformas, como aponta ao citar os especialistas Charles Bettelheim, ocidental, e Roy Medvedev, dissidente197. Se as mudanças na liberdade de expressão

e informação promovidas pela glasnost já se sentiam,

Os ventos de reforma de Gorbachev, porém, ainda não atingiram os problemas fundamentais do país. A ineficiência crônica da economia, aliada à baixa dos preços do petróleo que fez a URSS perder cerca de 10 bilhões de dólares no ano passado, freou em 3,1% o crescimento econômico soviético em 1985 – a segunda taxa mais baixa desde a II Guerra Mundial198.

Gorbachev pretende atrelar os salários à produtividade, a liberação da venda do excedente agrícola no mercado, mas “nada disso deverá sequer arranhar a centralização do planejamento da economia soviética”, no momento. Veja previu que a centralização seria alterada já em 1987 e abolida totalmente em 1989 – uma boa análise tendo em vista que a Lei de Empresas Estatais foi aprovada em 1987, a do arrendamento privado da terra passou em 1988 e o Plano Quinquenal foi eliminado em 1989 (RODRIGUES, 2006, 229), mas que certamente não pensava em mudanças tão profundas. O próprio Gorbachev, falando a assessores econômicos de países da Europa Oriental, em 1985, advertiu:

“Alguns de vocês veem os mecanismos de mercado como salva-vidas de suas economias. Mas, camaradas, vocês precisam pensar não nos salva-vidas, e sim no navio – e o navio é o socialismo”, e Ligachev, chefe ideológico do PCUS, advertiu que isso não significa “uma guinada para a economia de mercado ou para a iniciativa privada199.

A campanha de combate à corrupção teve um tratamento especial pela revista, como no subtítulo “Gorbachev: mostrando o inferno aos burocratas”. O fuzilamento de diretores de estoques e do comércio varejista por desvio e roubo da produção, ocorridos entre 1985 e 1986, que poderia ser acusado de retorno ao stalinismo, jamais é retratado como tal.

“O suborno é o pior inimigo da revolução”. Ao fazer essa afirmação, Lenin jamais poderia imaginar que, 69 anos depois de implantado o regime comunista na URSS, os russos tivessem no seu cotidiano palavras de uso obrigatório como na levo (por baixo do pano) ou blat (termo aproximado de nosso “pistolão”) [...]. Na verdade, o suborno e a corrupção, produtos da burocracia do imenso aparelho estatal soviético, incorporaram-se de tal modo no dia-a-dia do cidadão russo que o governo resolveu lançar na semana passada mais uma campanha para tentar acabar com isso [...]. As disposições agora

197 De olho no futuro. Veja, nº 913, 05/03/1986, 51. 198 Idem, 51.

baixadas ameaçam aplicar plenamente as rigorosas punições previstas nas leis soviéticas, que chegam até mesmo a pena de morte nos casos mais graves200.

O suborno e a corrupção são produtos da burocracia, ou seja, não deveria aparecer ou não seria natural, em ambientes desburocratizados, como o atual sistema financeiro dos EUA. É a tendência adotada tanto por jornalistas como especialistas: os problemas no mundo capitalista são naturalizados enquanto que os dos países socialistas são, inversamente, atribuídos ao sistema, mesmo quanto a corrupção – talvez os escandinavos não tenham palavras próprias para esta ação, mas mesmo os estadunidenses as tem – mas isso a revista não lembra ou não quer lembrar. A ideia que permanece é de que, ao contrário do resto do mundo, a corrupção é tão profunda e arraigada nos hábitos que necessita de palavras próprias.

A corrupção envolve desde o cidadão comum até os altos funcionários do governo. A ineficiência na produção de bens, a precariedade do sistema de distribuição, a falta de estímulos aos funcionários e as regalias dos altos dirigentes criaram um mecanismo social e econômico emperrado, que só se move azeitado pela distribuição de propinas em todos os escalões201.

Também se serve de charges, como a sátira do jornal russo Krokodil – “na repartição pública: “Vim falar com o camarada funcionário de peito aberto’” – com rublos saindo da camisa. Era o ambiente das empresas estatais e do funcionário público como propício ao crime e a ineficiência – tudo que Veja deseja mostrar.

A mesma visão se repete quando o genro de Brejnev foi preso por corrupção. O sistema público é visto como fonte estrutural para subornos, corrupção e nepotismo, mais ainda administrado por um único partido político. O Partido Comunista era a própria culminância de todas as características burocráticas e estatais. Gorbachev promovia “um apertão no cerco aos círculos mais íntimos de Brejnev, cujos dezoito anos de poder absoluto na União Soviética estão sendo expostos a um descrédito cada vez mais acelerado. “Foi um período de extrema licenciosidade”, chegou a comentar o Pravda”202.

O tema retorna com a matéria “faca afiada: militares caem sob acusação de corrupção”. Um mês depois de um jovem alemão ocidental que, a bordo de seu Cessna, passou indetectado pelas defesas do Pacto de Varsóvia até quase colidir com as fachadas das lojas de departamentos na Praça Vermelha e pousar tranquilamente em frente à catedral de São Basílio, a velha guarda

200 Linha dura. Veja, nº 926, 04/07/1986, 63. 201 Linha dura. Veja, nº 926, 04/07/1986, 63 202 Cerco apertado. Veja, nº 962, 11/02/1987, 46.

dentro do Exército Vermelho foi expurgada, ou como Veja prefere, substituída203. “O líder Mikhail Gorbachev continuou na semana passada a degola dos chefes militares responsáveis pelo fiasco que jogou sérias dúvidas sobre a eficácia da defesa do país”. Há a denúncia de que os chefes utilizariam soldados até para serviços particulares, como construção de casas204.

A investigação do caso revelou, além da inépcia [...] uma malha de corrupção, burocracia e indisciplina nos gabinetes militares de Moscou igual à que a campanha de Gorbachev pelas reformas vem encontrando em toda a máquina estatal soviética. “Em todo lugar há uma atmosfera de complacência, fanfarronice, autossatisfação e falsas aparências”, disparou Boris Yeltsin, chefe do Partido Comunista em Moscou e um dos mais vigorosos defensores da política de Gorbachev205.

O que Veja não comenta é que a expulsão do marechal Sokolov permitiu a ascensão de Akhromeiev, muito mais disposto a seguir as orientações de Gorbachev (BROWN, 1996, 231) e a fazer concessões para a assinatura do Tratado INF, poucos meses depois. Ao cenário de corrupção e ineficiência desmascarados com a glasnost, Veja contrapõe outro bem diferente. O avanço das reformas é tratado na matéria com o sugestivo nome de “Paraíso à vista”206 – mas o paraíso não era estatal e com direção centralizada. Gorbachev estaria “vendendo uma nova imagem” do país no exterior. Pacifista real e não meramente formal, respeitador dos tratados internacionais, com liberdades individuais mínimas, e de modernização econômica acelerada, tentando acompanhar o Ocidente. A promessa era de aumentar a renda soviética em 80% até o ano 2000. Baseia-se em duas páginas de publicidade pagas pelo governo soviético no Herald Tribune, contendo o reconhecimento do atraso do país, da necessidade de mudanças, dos objetivos de extinguir as filas, de novas relações econômicas com o Ocidente, com a introdução das joint-ventures. Para Veja “não é uma evolução, é uma revolução”. Acompanhou as gravações de um documentário para a TV de Moscou sobre a futura instalação do McDonald’s:

O programa mostrou as lanchonetes em funcionamento nos Estados Unidos, destacando a limpeza, a qualidade da comida e a rapidez no serviço como principais atrativos. “Mesmo na hora do almoço, multidões vão ao McDonald’s e não há filas”, contou o narrador do filme para um público acostumado a longas esperas em restaurantes, alguns dos quais, seguindo anedota corrente em Moscou, chegam a pendurar na porta, ao meio- dia, um aviso: “Fechado para almoço”. Outra cadeia americana de alimentos – a Pizza Hut – está negociando a construção de 100 pizzarias em várias cidades da União Soviética207.

203 Livre para voar. Veja, nº 979, 10/06/1987, 64. 204 Faca afiada. Veja, nº 981, 24/06/1987, 55. 205 Faca afiada. Veja, nº 981, 24/06/1987, 55. 206 Paraíso à vista. Veja, nº 950, 19/11/1986, 72. 207 Paraíso à vista. Veja, nº 950, 19/11/1986, 73.

O relacionamento de Gorbachev com as pizzas Hut é bem mais antigo do que sua carreira de garoto-propaganda208. É com espanto reduzido que trata da Lei do Trabalho Individual na matéria “pequenos burgueses”, mas inverte sua posição anterior e não fala mais em revolução,