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Podem-se identificar duas fases na compreensão da glasnost por parte de Veja. De 1985 até meados de 1987 tratava-se de um relaxamento na “glavlit”, a censura, na permissão de uma maior circulação interna e externa de informação e na maior liberdade criativa e de expressão, onde se confundia com a liberdade de iniciativa das propostas ainda em formação da perestroika. De meados de 1987 em diante Veja a confunde com outra reforma fundamental, a “demokratizatsiya”, democratização, aumento das liberdades individuais e dos direitos e participação política. Na primeira fase ela não percebe a autolimitação e diminuição das atribuições do partido que vinha ocorrendo (MLYNAR, 1986, 154). Na segunda, ela afirma que a separação entre Estado e partido está ocorrendo, mas este não tem qualquer intenção de perder o monopólio do poder, até ceder diante das pressões das massas em 1990. A primeira fase seria a da formulação da crítica reformista liberalizante contra o socialismo real e suas características estatizantes, burocráticas, centralizadoras, igualitaristas. Da revelação da “verdadeira” situação da URSS. A segunda seria a das explosivas revelações do passado do sistema e de sua condenação total.

Se Veja afirmava logo após a ascensão do novo secretário-geral que “a URSS de Gorbachev será mais democrática”213, não dava maiores detalhes sobre que tipo de democracia

seria essa, mas permite sugerir, nas reportagens seguintes, que tratar-se-ia de uma maior

liberdade de circulação de informação necessária à agilização da economia. Mas a seriedade dessa reforma é posta em dúvida.

Há, segundo as análises que circulam em Moscou, a possibilidade que a nova liderança se engaje em mudanças concretas – e o próximo congresso do PC, previsto para fevereiro do ano que vem, seria a ocasião para o anúncio de reformas econômicas, no quadro de um novo programa partidário214.

Apenas no fim de 1985 Veja percebe que a abertura está afetando a censura e a circulação de informação não-técnica ou fora do local de trabalho, que os soviéticos estão recebendo um noticiário mais completo e variado e com menos interferência dos órgãos de controle do governo sobre as condições de seu próprio país e do desconhecido estrangeiro.

Se depender de Gorbachev, [os soviéticos] terão provavelmente acesso também, em breve, a uma imprensa mais arrojada. O secretário-geral criticou semanas atrás o aspecto sisudo e o tom oficialista dos jornais soviéticos. Só não se sabe até que ponto o regime poderá promover mudanças cosméticas sem despertar na população o apetite por transformações mais radicais. Numa sociedade cujo governo proíbe listas telefônicas e máquinas xerox, temeroso de que sejam usadas para fins subversivos, qualquer campanha de modernização mais ampla pode tonar-se uma armadilha perigosa215.

Essa foi a primeira citação de uma abertura mais ampla. Mas ainda assim o tom é o de “mudanças cosméticas”, um termo também usado pelo jornal O Globo (COSTA, 2008, 145-146) e por Seweryn Bialer (BIALER, 1986, 91), que acompanhariam também as questões econômicas e diplomáticas – uma mudança confinada à um novo estilo, mas nada além disso.

A maior dimensão das reformas só ficou patente para Veja com o relatório ao XXVII Congresso do PCUS, no início de 1986, em que a crítica ao passado do país foi escancarada de maneira estrondosa. Também foi elaborado um vago programa de metas até o ano 2000. Era a matéria “De olho no futuro: no congresso do PC soviético, Gorbachev exibe o seu poder e faz críticas a governos passados”.

Gorbachev formalizou, na terça-feira passada, o enterro dos dezoito anos de marasmo e má administração que Leonid Brejnev instalou na URSS [...] de crítica em crítica, Gorbachev foi compondo um desastroso epitáfio para o longo reinado de Brejnev216.

Veja apresenta como marcas da mudança a campanha contra o álcool e a corrupção, os “jornais, que hoje publicam acusações e comentários impensáveis um ano atrás”, ou a discussão via satélite entre moradores de Leningrado e Seattle. Se assinala que Gorbachev fez ironias com a

214 Gorbachev vai à luta. Veja, nº 876, 19/06/1985, 36. 215 Veja, nº 903, 25/12/1985, 36.

ortodoxia leninista, lembra também que “recitou surrados chavões sobretudo em política externa, com as críticas de sempre aos EUA e ao imperialismo, que chamou de “o mais feio e perigoso monstro do século XX’”. A maior marca das propostas e ações da nova liderança até o momento era a da ambiguidade.

O cardápio misto – promessas de mudanças temperadas por concessões a antigos princípios – não esclarece o que realmente fará Gorbachev com o poder que acumulou nestes últimos meses [....] Estudiosos da União Soviética, que já ouviram a cantilena reformista em outros momentos do regime, preferem ver para crer217.

Os conceitos com significados ambivalentes que Gorbachev usou durante as fases iniciais de seu governo não foram notados apenas pelo semanário. Brown destaca o uso sistemático da dubialidade em suas palavras. Mas enquanto Veja percebe apenas hesitação e propaganda, Brown, retrospectivamente, vê o único meio de se promover reformas sem alarmar os conservadores (BROWN, 1996, 124). Para Veja, Gorbachev é reformista, mas principalmente no estilo. Não fará ou não conseguirá promover grandes reformas. Não tem expectativas quanto a isso e acredita que Gorbachev também não as tem, realisticamente – o que se torna um mero instrumento da propaganda e do “novo estilo”. Entretanto é mais um sinal de movimento do socialismo em direção às reformas que Veja prefere classificar como capitalistas ou concessões ao capitalismo e ao ataque à ortodoxia e aos radicais – se os maoístas já encontravam enormes pressões agora era a vez dos PCs ligados a Moscou e a esquerda como um todo por desaparecer se não o último baluarte, o mais importante defensor e símbolo do socialismo real e inspiração para estatistas – a propaganda de Gorbachev contra os conservadores é a mesma propaganda que ela precisa para lançar contra os setores avessos ao neoliberalismo, pois mesmo se limitadas, em princípio as reformas pretendem liberalizar a econômica e não a centralizar ou regulamentar mais ainda. Quanto ao cenário internacional e a retórica de Gorbachev, lamenta que este não a tenha alterado, fazendo as concessões que Reagan pretende ganhar por meio da pressão. Para ela, ainda assim existe o “novo estilo” midiático da liderança soviética que prende a atenção do público e aquece as vendas de notícias pelas expectativas que Gorbachev provoca, mesmo que não concretizadas. Ainda assim acontecimentos importantes passaram despercebidos por Veja. Fazer gracejos com Lenin durante o discurso do XXVII Congresso do PCUS218 era algo bem mais importante do que uma mera novidade. Gorbachev, ao se confundir com as páginas de seu

217 Idem, 50.

discurso de 8 horas, disse que havia pulado algumas das mais brilhantes ideias de Lenin. Os redatores de Veja não compreenderam a contundência do “bom-humor” de Gorbachev (BROWN, 1996, 97), que procedia a uma “dessacralização” da ideologia oficial (BROWN; SHEVTSOVA, 2004, 83). Foi muito mais que algo inaudito o secretário-geral do PCUS fazer uma brincadeira com Lenin em um congresso do partido. Iniciou-se a partir daí a revisão ideológica promovida por intelectuais, artistas, ativistas, políticos e pelo próprio Gorbachev. Outros processos em desenvolvimento na época, como a dispersão do movimento comunista nos países desenvolvidos, chamaram a atenção de Veja.

A fragmentação ideológica foi tratada como o reconhecimento por parte dos próprios partidos comunistas de que o marxismo-leninismo estava errado, o que teria provocado uma debandada dos PCs europeus ocidentais em direção à socialdemocracia e à “modernização”. É o tema da reportagem “Adeus, foice e martelo: a Europa Ocidental dá as costas ao comunismo e o PC italiano reage com uma guinada na direção da social democracia”.

Um fantasma não ronda mais a Europa: o fantasma do comunismo. Adeus projeções de que um dia a foice e o martelo ainda se imporiam em países como a França e a Itália. Adeus mitos como o de que o dogma marxista-leninista representava inexoravelmente o futuro. A grande novidade, na próspera Europa Ocidental destes anos 80, é que a ideia comunista acabou. Em países que durante quase todo este século tiveram suas vidas políticas reguladas pela hipoteca marxista, viceja agora o pós-comunismo, sem ter jamais conhecido o comunismo. A hipoteca foi resgatada – e o ocaso comunista surge com tal nitidez história que acaba até por provocar nostalgia219.

O PCI se definiu como partido moderno e reformador, seu secretário-geral no congresso do partido não citou uma vez sequer Lenin ou Marx, ao contrário de Kennedy e Roosevelt, presentes do discurso. O PCF caiu dos 26% do eleitorado francês para menos de 10%, uma “posição marginal”. Com o subtítulo “lixo da história”, aponta que o PCI, para não perder seu capital acumulado, retornará à prática de “drásticas viradas de rumo em que o PCI é especialista”, agora na forma da “descomunização” – o abandono do movimento comunista internacional pela união ampla das esquerdas, principalmente com os sociais-democratas. “Com a cautela e a sutileza que caracterizam a fina tradição política italiana desde Maquiavel, o que os comunistas italianos estão preparando é o salto formidável de jogar o comunismo no lixo da História”. “A anemia comunista é profunda e estrutural” e não seria mudada com novas eleições. Esse declínio se deu em duas etapas: a primeira na confrontação com a realidade de que não havia mais espaço

para a revolução na Europa Ocidental, a segunda com a falência da ideia que substituiu essa – de que invés da revolução, os PCs chegariam ao poder pela via eleitoral. O Eurocomunismo é passado e as chances comunistas irão minguar tanto quanto a indústria tradicional der lugar aos serviços e alta tecnologia. Mais do que a rigidez das lideranças, o PCF “acabou porque é comunista, e comunismo hoje, na Europa Ocidental, é algo descartado como ineficiente, repressor e incapaz de promover a justiça social”.

Tais partidos só tiveram significado ao fim da Segunda Guerra, “quando a URSS emergia com a mística de potência vencedora e os comunistas locais estavam associados ao heroísmo da resistência ao nazismo”. “Misticismo” supõe ao distanciamento da realidade e “associados” supõe uma ligação indireta. “Modernidade é o quadro da alternância de poder entre uma esquerda democrática e uma direita conservadora, sem traumas nem violência.” O PCI sonha em “esconjurar” o marxismo. Cogita-se mudar o nome do partido, já que “eles sabem que o comunismo morreu, na Europa Ocidental. Viva a social democracia”220. Como explicação para a

continuidade do poder político do PCI credita o fato às mudanças repentinas no programa do partido, na independência de Moscou e na maior proximidade com a democracia liberal. Comunismo virou coisa do Terceiro Mundo. Ou então era inerente ao Leste Europeu. Mas mesmo aí se modernizava e ganhava um novo estilo. O tema da desilusão com a reforma social e o socialismo é novamente abordado no anúncio do livro Rumo à Estação Finlândia221.

Para Veja, a limitação estritamente instrumental da abertura de informações aparece em “um salto arriscado: ao estimular o uso dos computadores, o governo abre um flanco no controle das informações”.

A revolução que se acelerou nos últimos meses para responder ao impulso de modernização decretado por Gorbachev, começa ao mesmo tempo a abrir uma fresta num dos pilares de sustentação do regime comunista desde sua implantação em 1917 – o fechadíssimo sistema de controle da informação e da vida dos cidadãos soviéticos222.

Ainda segundo o semanário, a URSS entrara atrasada na era da informática, mas prevê, segundo os planos do secretário-geral, expostos no XXVII Congresso do PCUS, um milhão de computadores nas 60 000 escolas do país, até 1990. O problema é que a URSS teria apenas 10% do número de grandes e médios computadores que os EUA possuíam, e uma pequena fração dos computadores pessoais. Também não produziria um computador pessoal adequado ao uso em

220 Adeus, foice e martelo. Veja, nº 919, 16/04/1986, 42. 221 Veja, nº 946, 22/10/1987, 120.

escolas e os países que o fabricam “estão proibidos de exportar para os soviéticos”, sem citar por quem ou por que motivo. Ainda assim o grande desafio seria outro, o de manter o controle de informação, impedir o uso das impressoras para publicação de informação avessa aos interesses do governo, com a mesma eficiência com que foi feita a suspensão da discagem interurbana direta em 1982 ou de manter fotocopiadoras sob segurança em salas trancadas. No momento, as aulas eram ainda apenas teóricas – já transcorrido um ano do início do programa de informatização, e as entregas às escolas estariam muito baixas. Junto com o arrojo das medidas, as dificuldades para concretizar a reforma são vistas como aspecto essencial pela revista.

Para Veja, o governo teria que ser flexível para permitir a transferência da informação necessária de forma ágil, ao mesmo tempo em que controla as demais, dispensáveis. Do contrário ocorrerá o mesmo que a abertura para vídeos-cassetes – usados para ver filmes estadunidenses, certamente com um impacto político negativo para o regime. O mesmo caso se repete com as antenas parabólicas. Ainda assim, ou o sistema se abre, ou perderá a corrida tecnológica com o Ocidente223. Tal afirmação indica que a revista ainda via a União Soviética dentro do páreo, o que

mudaria nos anos seguintes.

A primeira menção à glasnost, com a citação do termo em russo, ocorre ainda em 1986224. Já da perestroika é tão tardia quanto 1987225. A diferença de tempo entre a aparição de

uma e de outra pode ser atribuída a importância relativa de cada programa em determinada época. Incialmente ambas estavam subordinadas à maior ambição de Gorbachev, a uskorenie – o aumento quantitativo da produção (VOLKOGONOV, 2008, 404). A glasnost foi rapidamente requerida e testada pela intelligentsia do país e ganhou importância maior em 1986. Já a uskorenie foi definitivamente abandonada apenas em 1987, substituída pela perestroika, que deixou de significar apenas “reforma” para ser “reforma radical” (BROWN, 1996, 310) ou “reconstrução” e a partir do verão de 1988 em transformação sistêmica (BROWN, 2010, 485). Em 1988 ambas passaram a perder parte de seu espaço frente ao novo programa de demokratizatsiya, que não chegou a receber o termo em russo por Veja, como também os termos samoupravlenie (BROWN, 1996, 79) ou khozraschet (MLYNAR, 1987, 178), que abriram espaço para o arrendamento de fábricas e clínicas e então iniciar a privatizatsia. Além desse tripé,

223 Um salto arriscado. Veja, nº 944, 08/10/1986 54. 224 A tesoura perde o fio. Veja, nº 931, 09/07/1986, 36. 225 Ponte queimada. Veja, nº 964 25/02/1987, 50.

internacionalmente propunha o myshlenie famousnovoe (LÉVESQUE, 1997, 25), o novo pensamento, que também não foi citado em russo pela revista. Antes da popularização do vocábulo russo, Veja preferia falar em “abertura” – um termo muito usado no Brasil poucos anos antes. O fim da censura, as maiores garantias para a liberdade de expressão, a maior independência dos poderes, as eleições concorridas anunciadas em 1988, permitiram a ela afirmar durante a visita de Sarney ao Kremlin que houve uma aproximação entre Brasil e URSS baseada na mudança de ambas as nações226.

A identificação da glasnost com o fim da Glavlit está presenta na matéria “A tesoura perde o fio: escritores aproveitam o abrandamento da censura à imprensa e os sinais de abertura de Gorbachev para pedir a reabilitação de Boris Pasternak”.

Ao assumir o comando do Kremlin, em março de 1985, o líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, anunciou que de sua lista de prioridades constava a intenção de promover na sociedade soviética uma maior abertura – glasnost, em russo. Passados dezesseis meses, são cada vez mais frequentes os sinais de que, pelo menos no que diz respeito à informação, Gorbachev está tentando passar da palavra aos atos. Os dissidentes continuam silenciados e não se admitem críticas ao regime, mas o noticiário de televisão tornou-se mais vivo e os dois principais jornais, Pravda e Izvestia, passaram a estampar em suas primeiras páginas reportagens de verdade, em vez de entediantes artigos e comunicados oficiais de praxe. Na semana passada, o regime soviético deu mais um sinal de que a mordaça e a tesoura da Censura estão se abrandando227.

O próprio Gorbachev abriu o Congresso de Escritores da União Soviética e pediu aos escritores que “ousassem e fossem criativos durante o congresso. O conselho foi aproveitado com rapidez”. Temas anatemizados como censura e controle pelo Estado entraram na pauta do Congresso, que declarou que são objetos da censura apenas a pornografia, o belicismo, o racismo e os interesses militares.

Desde que Gorbachev, em dezembro do ano passado, acusou a imprensa soviética de negligência e omissão, o jornal [Izvestia] [...] abriu frestas para a publicação de algo mais próximo à notícia e à crítica. “Não devemos esconder nossas deficiências”, disse Gorbachev228.

Ainda segundo Gorbachev, citado pelo semanário, “‘Os comunistas precisam da verdade, em qualquer circunstância.” A verdade” começou a aparecer: “drogas, alcoolismo, corrupção da burocracia e privilégios da classe dirigente”. Uma relação impensável de assuntos

226 Carta ao Kremlin. Veja, nº 976, 20/05/1987, 50. 227 A tesoura perde o fio. Veja, nº 931, 09/07/1986, 36. 228 Idem, 37.

para os jornais, que em 1983 teriam publicado o recorde de produção de uma fábrica de tratores que não havia sequer saído da planta e “só existia nos relatórios oficiais”. A glasnost era a abertura para a verdade e para sua discussão na TV e jornais, como a presença das drogas e da AIDS na URSS – discutida publicamente por Yeltsin – “apesar que o problema é pequeno frente aos EUA, mas antes era tratado como inexistente”, como um fato da decadência ocidental229.

Ainda assim:

Tudo isso não significa, naturalmente, que esse começo de degelo vá desaguar na liberdade de expressão na URSS. Os meios de comunicação continuam fechados para os adversários do regime. O episódio de Chernobyl mostrou [...] que a informação ainda é um instrumento sob controle absoluto do Estado, e o sentido que o regime comunista lhe dá230.

Tais convicções de continuidade foram baseadas, como diz a própria revista, sobre a declaração de quem Veja chama de aliado e ascendido ao poder máximo do país, o Politburo, por Gorbachev. Tratava-se do próprio Ligachev, execrado como inimigo confesso do secretário-geral pouco tempo depois. Sua afirmação consistia de que a mídia tem por objetivo explicar e implementar a política do Estado. Gorbachev teria ainda apenas um “novo estilo” sobre as velhas práticas. Não se trataria de um reformador sistêmico de verdade. Ligachev foi chamado ao Politburo por Gorbachev. Logo ambos não têm posições discordantes e as posições de um reformismo limitado de Ligachev devem ser iguais aos objetivos de Gorbachev. Veja não lembra que há uma lista restrita de quem pode subir na hierarquia político-administrativa – de onde deriva o próprio nome de “nomemklatura” – e que mesmo Gorbachev era obrigado a eleger seu pessoal de dentro dela. Isso limitava muito o poder individual de escolha e preenchimento de quadros, mesmo nas funções mais importantes (BROWN, 1996, 107). Ele teve que elevar seus aliados lentamente através do Comitê Central do PCUS até poderem ocupar as cadeiras do Politburo – e para isso era necessária uma alta rotatividade de nomeados. O que ela vê como uma declaração conjunta de Ligachev e Gorbachev, outros veem como o primeiro sinal de divisão interna clara no PCUS, com Gorbachev apoiando o gorbachevista Elem Klimov à direção do Sindicato dos Cineastas, enquanto Ligachev os lembrava de seus antigos deveres, diante da candidatura à direção de um cineasta dissidente (DUNLOP, 1995, 70).

Em certo momento sua convicção na continuidade do controle, relaxado, sobre a informação, vacilou rapidamente. Na matéria “A rebeldia do poeta cinquentão”, noticiava que

229 Paraíso à vista. Veja, nº 950, 19/11/1986, 73. 230 A tesoura perde o fio. Veja, nº 931, 09/07/1986, 37.

Yevgeny Yevtuchenko fez uma pesada crítica à situação do país na Literaturnaya Gazeta. Do racionamento de alguns artigos, aos privilégios do partido e seu acesso a bens em redes exclusivas, à necessidade de releitura da história do país e o apoio aos críticos do regime, vários temas tabus foram tratados. Isso não era novo na obra de Yevtuchenko, que já havia escrito de maneira crítica contra Kruschev nos anos 1960 e contra Brejnev durante a Primavera de Praga (LAW, 1975, 349-351). Mas jamais havia feito uma crítica tão contundente e num periódico tão importante. “O que gerou imediatas especulações. Ou setores reformistas do próprio governo estariam por trás da investida ou há intelectuais dispostos a testar os limites das reformas pregadas por Gorbachev” (A rebeldia do poeta cinquentão. Veja, nº 903, 25/12/1985, 36). Veja se inclinou a primeira resposta até 1987.

O impacto da glasnost no mundo artístico soviético também teria efeitos sobre o cidadão comum, como foi tratado na matéria “Abertura nos palcos: num gesto de conciliação, Gorbachev manda convidar o dançarino Mikhail Baryshnikov e outros artistas asilados a voltar à URSS”. A defecção de Baryshnikov para o Ocidente teria sido uma prova da repressão do regime. Agora recebia uma oferta de retorno.