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Em 1985, o grande foco sobre o Leste Europeu para Veja não é o da crise econômica, quanto mais o da morte e desaparição do comunismo, mas sim o de sua ameaça ao mundo livre. São os conflitos abertos da Guerra Fria no Terceiro Mundo, a crise da escalada armamentista no continente europeu e, principalmente, a espionagem internacional, que ocupam páginas e páginas da publicação. Esse tema é o que eletriza seu público.

Veja recorre a uma dramatização e ficcionalização do noticiário. Os acontecimentos se tornam e são narrados no formato de novelas, seguindo os modelos da literatura. É o que Arbex comenta, no caso da televisão, das fronteiras entre jornalismo e ficção, ou ainda, no “telejornovelismo” e “showrnalismo” (ARBEX, 2001, 32; 226). Além de usar trabalhos de historiadores, cientistas políticos, sociólogos ou qualquer outro analista tido como confiável e referencial, para caracterizar o socialismo real ou a posterior derrocada do Leste Europeu, ela usou de meios mais digeríveis ao seu público e ao seu propósito de formar opinião: literatura (Orwell principalmente a partir de 1989), cinema (maniqueísmo entre bem e mal absolutos) e noções de políticos como Ronald Reagan (inferioridade material e moral do socialismo). Um jornalismo baseado na literatura. Um material bem acessível e assimilável para a classe média

89 REVEL, Jean-François. Democracias em perigo. Veja, nº 881, 24/07/1985, 8. Entrevista por Paulo Moreira Leite. 90 Poder de fogo. Veja, nº 886, 28/08/1985, 58.

que tem Veja como fonte de autoridade. Contudo, antes de Orwell, usado para narrar e explicar o terror de Estado e a máquina de segurança interna, seu modelo de redação estava em Ian Fleming e John le Carré e suas ficções do mundo dos espiões. O “jornovelismo” de Veja lembra as tramas de Casa da Rússia e O espião que veio do frio – traições, reviravoltas, o jogo da dupla ou tripla espionagem, ou o uso de mulheres e dispositivos de alta tecnologia para a obtenção se segredos, como em 007. O novelista militar Tom Clancy, autor de Tempestade Vermelha (além de Caçada ao Outubro Vermelho e A soma de todos os medos), na época dos mais vendidos91, também é lembrado por Veja em casos de deserção ou em que se acusa a tripulação de tentativa de deserção92. Isso não exclui o uso de especialistas, como nos comentários de autoridades o sistema de segurança inglês e estadunidense acerca do maior desmantelamento de uma rede de espionagem internacional em décadas. O serviço secreto soviético mantinha agentes ligados às autoridades. Inclusive tinha no chefe da contraespionagem da Alemanha Ocidental, um agente duplo93. O grosso da atividade de espionagem industrial não estava nos casos com roteiro de

literatura ou cinema, mas sim, como Veja teve que reconhecer posteriormente94, na mais sóbria,

metódica e monótona espionagem industrial. O destaque de suas páginas, no entanto, são mirabolantes ações em bases militares, o suspense da revelação da pessoa menos desconfiável como um agente secreto, etc.

As histórias mais escabrosas de espionagem constituem boa parte do material do noticiário internacional em 1985. A Segunda Guerra Fria, uma retomada ao fim de 1979 das tensões que marcaram a fase que vai de 1946 a 1953, após um período de distensão (HALLIDAY, 1983, 3), está no auge e Veja não dá qualquer indicativo de que ela esteja cedendo, como a moratória unilateral soviética de testes nucleares, que passa despercebida. Se ocorrem trocas de agentes capturados de ambos os lados da Cortina de Ferro, ela mostra que outras redes estão caindo e as ações de infiltrarem e prisões de espiões não arrefecem.

Nada menos que 28 reportagens sobre a espionagem soviética são publicadas entre janeiro de 1985 e maio de 1987. A própria bilheteria dos filmes do agente de Ian Fleming pode ter incitado a revista a proporcionar tal cobertura atendendo a esse tipo de consumo. O papel apaziguador e justo desempenho pelos Estados Unidos frente à infiltração comunista é sempre

91 Veja, nº 1032, 15/06/1988, 111.

92 Mísseis ao mar. Veja, nº 945, 15/10/1986, 66. 93 Espiões em polvorosa. Veja, nº 886, 28/08/1985, 54. 94 O triunfo de Mitterrand. Veja, nº 906, 15/01/1986, 41.

afirmado ou implicado. Assim, a expulsão do adido militar estadunidense pego filmando uma base militar na Polônia recebeu “uma reação de simétrica reciprocidade que é praxe nesses casos”, com a expulsão imediata do adido polonês nos EUA. A legitimidade da ação é reforçada com o título “na estaca zero”95. Não foi, todavia, simétrica a reação soviética de abater, ou como

Veja prefere, fuzilar, um major estadunidense que espionava uma base em Potsdam96. Tenta indicar as articulações entre a KGB97 e o serviço secreto búlgaro na tentativa de assassinato do Papa em 198198, em matéria de 1985. Na matéria “Olhos de Moscou: família que espiona unida vai presa unida” aponta para a subversão de toda uma família de militares americanos que repassou para a URSS a localização secreta dos submarinos nucleares e de suas táticas de rastreamento dos submarinos soviéticos, assinalando o quanto dissimulada pode ser a espionagem, já que um membro da família havia ganhado o título de “marinheiro do mês”99, “um dos mais danosos golpes já desferidos contra os Estados Unidos pela KGB [...] a maior operação de espionagem desde o caso Rosenberg”. Uma “epidemia de espiões” teria sido deflagrada com o primeiro caso de um agente do FBI espiando para os soviéticos: “uma coisa ficou patente: os Estados Unidos estão às voltas no momento com uma maciça ofensiva de espionagem soviética dentro de seu território”100.

Dois meses depois dizia que “fazia tempo que o mundo da espionagem internacional não experimentava terremotos como o da semana passada” Soviéticos aplicam um pó invisível, e potencialmente cancerígeno, nos estadunidenses residentes na URSS para reconstituir seus rastros. Dois dias depois o chefe da contraespionagem alemã ocidental, Hans Tiedge, desertou para a Alemanha Oriental. O episódio “se descobriu, numa mistura de drama e comédia digna das histórias de James Bond [...] que Tiedge era, ele mesmo, um espião infiltrado.” Situação pior do que o do secretário espião no gabinete do chanceler Willy Brandt, em 1974. Pouco tempo ocorreu a crise da família Walker, mas o sensacionalismo é importante uma vez que há uma busca do público pelas histórias de intriga da espionagem101. Depois da deserção do chefe da contraespionagem da RFA, “como num jogo de dominó, peças começaram a cair, ou sumir, por

95 Na estaca zero. Veja, nº 858, 13/02/1985, 32. 96 Veja, nº 865, 03/04/1985, 40.

97 Uma vez que trata-se do Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti, ou, em português, Comitê de Segurança do Estado, a maneira correta de se referir seria o KGB. Mas preferiu-se seguir o uso muito mais frequente de a KGB. 98 Por mais que sejam improváveis (ZEMTSOV; FARRAR, 2007, 108).

99 Olhos de Moscou. Veja, nº 874, 05/06/1985, 48-49; 54. 100 Epidemia de espiões. Veja, nº 875, 05/06/1985, 41-42. 101 Espiões em polvorosa. Veja, nº 886, 28/08/1985, 54.

toda a parte, desde Berlim Oriental até Londres, passando pela Suíça e a Argentina” com o desaparecimento, morte ou prisão de agentes e o desmantelamento de redes de espionagem de ambos os lados da Cortina de Ferro102. A novela se desdobra quando o diplomata e chefe da KGB

em Londres deserta para o Ocidente e novas prisões ocorrem. Sobre essas repetidas ações, toma as palavras do ex-ministro do Exterior inglês de que “é preciso aplicar de novo pesticidas, porque as pragas sempre reaparecem”103. Para a revista, ambos os lados perderam redes, mas “nos

círculos ligados à espionagem americana, a atmosfera da semana passada era de euforia. “A KGB foi atingida por um terremoto de grau 8 na escala Richter”, comparou em Washington George Carver [...] nós só levamos algumas pedradas”104.

O tema da espionagem foi tão importante para Veja em 1985 que ganhou uma seção própria na retrospectiva do ano105. A espionagem industrial era parte importante dos “episódios rocambolescos característicos deste mundo de trevas indispensável para a compreensão dos tempos de hoje que é o mundo da espionagem.” É

um dos setores mais importantes da espionagem de Moscou, se não o mais importante – a espionagem tecnológica e industrial, principalmente para fins militares. Que os soviéticos roubam segredos técnicos do Ocidente e com eles subsidiam grande parte de seu desenvolvimento é algo já sabido106.

Mas não diz que o contrário também ocorre, com o roubo de informações militares e industriais por parte do Ocidente. Essas são ideias também expressadas por Jorge Ferreira (FERREIRA, 2000, 88), de que tudo o que o sistema é capaz de produzir se dá na forma de roubo de ideias, e não com o uso de um termo como “via japonesa”, como nos casos em que produtos ocidentais eram comprados, estudados e reproduzidos pela indústria nacional.

Num certo momento tal ameaça teria que chegar ao país. Afirma, sem indicar a fonte, que no Brasil existiriam 26 diplomatas soviéticos envolvidos com espionagem, mas que não seriam expulsos até que ocorresse uma situação de conveniência ou de reciprocidade. “Hoje em dia, no tabuleiro da espionagem, é como se a trapaça fosse permitida, desde que dentro de certos limites” como a da cidadela para o corpo diplomático soviético em Viena, a pequena Moscou, “local já considerado o maior ninho da KGB na Europa”107. Fica bem claro quem é o responsável

102 Rede de intrigas. Veja, nº 887, 04/09/1985, 66. 103 Trama nas sombras. Veja, nº 889, 18/09/1985, 62. 104 Elo da cadeia. Veja, nº 892, 09/10/1985, 65.

105 SANTA CRUZ, Selma. O ano da espionagem. Veja, nº 904, 01/01/1986, 111. 106 O triunfo de Mitterand. Veja, nº 906, 15/01/1986, 41-42.

pela trapaça e em benefício de quem tais normas acabam fixadas – mais uma forma dos soviéticos arrancarem vantagens do ocidente. Uma rede de infiltração que operava até em um país vizinho ao Brasil, e que atingiu o território nacional, foi desbaratada graças à ação da CIA e da ofensiva externa de Reagan. A revista mexe com o medo das massas de uma Terceira Guerra Mundial.

A partir de meados do ano de 1986 o foco de Veja sobre a espionagem muda. Passou da intriga internacional e roubo de informação para a questão dos direitos humanos e da segurança interna – um campo em que a CIA estava em uma posição vantajosa frente à KGB e o discurso de Reagan se afiava (WILENTZ, 2008, 280) como preparativo para as rodadas de negociação para o desarmamento.

Assim é a matéria “olho implacável: a KGB grava conversas privadas de Sakharov. Yelena tinha razão ao se comparar com um micróbio”. “Para a KGB, não há limites quando se trata de espionar e humilhar cidadãos indesejáveis”. Não podem ouvir rádio pois a KGB interfere no sinal. O casal vai até o cemitério local para sintonizar emissoras estrangeiras. “Ao manter Sakharov confinado, os soviéticos exercem uma prerrogativa típica das tiranias – a de libertar os adversários a seu critério”, como outro dissidente, Sharansky, “mas manter sempre um preso notável como símbolo de resistência a pressões externas e uma advertência interna para a força da repressão”108. Sequer uma palavra sobre as acusações de espionagem e do conhecimento do físico

pai da bomba H da URSS sobre o programa nuclear soviético – razões do regime para não deportá-lo ou deixá-lo ir para o estrangeiro como a outros dissidentes. Veja menciona que ele está preso apenas por suas ideias – que também não cita, mas que pediam uma união e maior firmeza do Ocidente contra a própria URSS (SAKHAROV, 1975, 81).

Segundo a reportagem “olho por olho: jornalista americano é preso em Moscou”, os soviéticos montaram uma fraude para incriminar um jornalista estadunidense como forma de manter o critério de reciprocidade na expulsão de espiões, já que um agente soviético fora preso no EUA – “os soviéticos garantem que havia mapas secretos” em poder do jornalista, que afirmava que eram apenas fotos comuns. É relatado um outro caso de plantio de provas falsas contra um jornalista em 1984. “A indignação gerada entre os americanos pela prisão farsesca de Daniloff acontece em má hora”, quando Shevardnadze e Shultz se reúnem para marcar a reunião

de Reykjavík109. A matéria seguinte é “vitória tática: acusados de espionagem são libertados”. “Segundo fontes diplomáticas em Moscou, a União Soviética obteve uma vitória tática sobre os Estados Unidos, conseguindo manter um elemento de ligação entre os dois casos” agora era uma questão de semanas para que ambos sejam trocados e o status de Daniloff deixe de ser classificado por Washington como de um refém110. Para a revista, e para Reagan, Daniloff sempre fora um refém estadunidense em mãos da KGB. Veja abraçou a campanha de pressão internacional pela situação dos presos políticos na URSS como tática diversionista de Reagan ante sua recusa em reduzir os arsenais de médio alcance em Reykjavík, que era exatamente o trunfo de Gorbachev. Ainda assim prefere explicar o ocorrido como uma sequência de erros diplomáticos de ambos os lados, que de “crise menor” virou um “impasse”111. O caso Daniloff

seguiu a tática da saturação. Durante a cúpula de Reykjavík seu caso foi rememorado outras duas vezes112.

Meses depois do encontro de cúpula estourou o caso dos grampos na embaixada americana em Moscou, que veja considerou uma “bisbilhotice” às vésperas do encontro entre Reagan e Gorbachev113. Na semana seguinte ela já tinha seu veredicto:

Por parte da Casa Branca, ensaiou-se uma tentativa de apresentar a infiltração da embaixada como justificativa para o melhor desempenho de Gorbachev na conferência de cúpula de outubro passado, na Islândia. Por essa visão, o líder soviético teria se valido de informações obtidas por espiões da KGB, o que – mesmo a ser verdade – não explica a desarticulação de Reagan nas reuniões. Ela foi tão grande que Reagan chegou a propor a união entre as duas superpotências caso a Terra fosse invadida por seres de outro planeta114.

Havia se instalado uma “Guerra dos Grampos”. “‘A embaixada em Moscou voltou à era pré-eletrônica’”. Iria se repetir o quadro da conferência de cúpula de Nixon e Brejnev de 1972, com os delegados em hotéis de Moscou, discutindo os acordos “com rádios ligados e batendo xicaras de louça nos pires, na tentativa de interferir na onipresente escuta da KGB”. “Segundo uma convicção americana, os soviéticos levaram vantagem em tudo, a começar pela localização dos respectivos conjuntos de edifícios” – a soviética, no “Monte Alto”, entre a Casa Branca e o Pentágono, cujo “prédio já está cravejado de antenas que captam tudo o que os americanos não

109 Olho por olho. Veja, nº 940, 10/09/1986, 54. 110 Vitória tática. Veja, nº 941, 17/09/1986, 66. 111 Tudo errado. Veja, nº 942, 24/09/1986, 66.

112 De novo a sós. Veja, nº 945, 15/10/1986, 58; Tropeção na chegada. Veja, nº 946, 22/10/1986, 70. 113 Namoro perigoso. Veja, nº 970, 08/04/1987, 45.

estiverem preparados para contra-interceptar. Em compensação, a futura embaixada americana em Moscou está enfiada na área mais baixa da cidade – exatamente sobre um antigo pântano”, que é o mesmo tipo de lugar para onde os deputados estadunidenses desejam enviar a embaixada soviética. Veja não profere nem uma palavra sobre a geografia pantanosa de Moscou ou à presença da Universidade de Moscou, ao fundo da foto da embaixada estadunidense. Foto que exibe a reluzente embaixada soviética de mármore branco vista do alto, em uma verdejante Washington. Ao lado, a cinzenta e suja Moscou com um mal-humorado guarda na porta, vista por baixo. Ao fim da reportagem segue alguma coisa próxima a uma versão soviética: os soviéticos contra-atacaram, fizeram uma exibição em Moscou do equipamento de espionagem que os estadunidenses vinham embutindo nos materiais pré-fabricados desde 1979 em sua embaixada em Washington – “microfones, transmissores, fios e cabos – tudo de bom tamanho, muito diferente dos aparelhos ultraminiaturizados usados na vida real pelos serviços secretos”. Mas a mensagem é clara: não se deve confiar em Moscou. Será mesmo que o serviço americano usaria equipamento daquele tamanho? Não seria mais uma prova forjada do Kremlin?115

Ao fim desse período as reportagens sobre o mundo da espionagem escasseiam rapidamente. É um tema que sai de moda repentinamente com o avanço dos tratados de desarmamento, em especial o INF, de fins de 1987. Agora o secretário de Defesa americano, Frank Carlucci, “teve acesso à fina flor dos arsenais soviéticos: inspecionou tanques de guerra de última geração, assistiu a uma batalha simulada”, do mais moderno navio de guerra e do novo bombardeiro nuclear TU-166 Blackjack, que é a foto usada por Veja. Ao pedir a designação oficial, os soviéticos recusaram, afinal, “para que assustar as pessoas?”. A revista faz questão de lembrar o caso do major estadunidense “fuzilado” em Potsdam, três anos antes. A matéria era intitulada “removendo o manto do segredo”116. O mundo da espionagem perdia o glamour frente

a abertura da URSS e mesmo 007, em 1989, teve que abraçar como inimigo a nova campanha de Reagan – a guerra ao narcotráfico (007 – Permissão para matar).

A revista personifica e romantiza a realidade num quadro para o agente do MI6. Ou Rambo. O terrorismo e a espionagem internacionais fazem suas vítimas; as forças militares ocidentais tentam trazer o mundo à ordem. Mísseis soviéticos disparados a esmo ou acidentalmente riscam os céus europeus e lançam o perigo do holocausto atômico; a revolução

115 Guerra dos grampos. Veja, nº 971, 15/04/1987, 38.

avança em diferentes partes do mundo, incluindo cantos remotos como a Nova Caledônia117; generais imaginam os cenários prováveis para a Terceira Guerra Mundial; a guerra se espalha pelo Terceiro Mundo, incluindo guerras civis em aliados soviéticos, que põe em polvorosa áreas já conturbadas, como o Oriente Médio; guerrilhas investem e ameaçam depor os governos em El Salvador e Peru.

Assim é a matéria “como um louco busca-pé”, em que um míssil SS-N3 caiu na Finlândia poucos dias antes da cúpula de Genebra. Nos “inúmeros acidentes” “a URSS tem adotado quase sempre o silêncio para encobrir o próprio embaraço”.

Não deixa de ser irônico que o primeiro incidente internacional provocado por um foguete cruzador [...] seja de responsabilidade da União Soviética, exatamente o país que mais condena a decisão ocidental de instalar uma moderníssima geração de Cruise, os foguetes Tomahawk, em vários países europeus aliados118.

Enquanto a URSS teria mísseis como o SS-N3, de 1962, os EUA teriam o seguro e cirúrgico Tomahawk. O conflito em torno da paridade geoestratégica na Europa é convertido por Veja em uma comparação de suposta segurança e tecnologia, e uma justificativa para a escalada nuclear dos euromísseis estadunidenses.

A intenção de Veja não é mostrar um império soviético decadente ou em dissolução. Isso era impossível prever na época. Pelo contrário, a URSS continuaria a ser um império expansionista, agressivo, inimigo da paz, e um estopim para a Terceira Guerra Mundial e o holocausto nuclear. Um poder invasivo, ameaçador e poderoso, que pede um contrabalanceando e alguma outra superpotência que possa defender militar e diplomaticamente o mundo livre de seus tentáculos e impedir que o cenário internacional se degrade até a eclosão de um novo conflito mundial. A União Soviética representa a guerra, o terrorismo internacional, o medo atômico enquanto que os Estados Unidos são a paz, os direitos humanos e a negociação. É ainda o antigo discurso anticomunista, que se apoia na interpretação histórica ortodoxa ou tradicional, baseada na diplomacia ocidental, em especial na perspectiva estadunidense (MUNHOZ, 2004).