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117 Veja, nº 854, 16/01/1985, 69.

Veja propaga a noção de que o terrorismo internacional é um monopólio da esquerda e é apoiado pela União Soviética, o que já ficou claro desde que Kirkpatrick119 colocou o terrorismo

e a União Soviética lado a lado como os principais inimigos dos Estados Unidos120. Essa associação, segundo Mariani, era anterior à retórica de Reagan. Teria aparecido como discursividade na mídia brasileira tão cedo quanto o início dos anos 1970, e propunha, desde o início, o “combate pelas armas” (MARIANI, 1998, 216-217), num cenário em que se enfatizava o terrorismo de esquerda tanto na Europa quanto no Brasil da ditadura militar.

A ligação entre comunismo e terrorismo era muito antiga. O forte movimento comunista nos Estados Unidos e as insurreições comunistas na Europa nos anos subsequentes à Revolução de Outubro, acabaram herdando a acusação de vinculação ao terrorismo que pairava sobre os anarquistas no fim do século XIX e começo do XX. Da mesma forma que não existia (e nem poderia existir) na propaganda uma tentativa de separação entre as correntes anarquistas, a delimitação dos adeptos da ação direta e os responsáveis pelas ações extraordinárias desses anos121, também os grupos comunistas e anarquistas poderiam ser mais facilmente homogeneizados e confundidos por esse mesmo discurso, que, entretanto, veio a ser esquecido ou marginalizado por décadas, até retornar com força no Brasil da ditadura militar ou na imprensa conservadora estadunidense dos anos Reagan. A imagem de que comunistas sempre estariam envolvidos com atentados levava a necessidade de argumentar a existência da ligação da União Soviética com essas ações, mediante apoio financeiro, logístico, de treinamento, etc.

Veja afirma que, em Beirute, com um diplomata morto e três sequestrados, Moscou teria experimentado a agonia do terrorismo. “A União Soviética conheceu pela primeira vez, na semana passada, a agonia, a humilhação e o sentimento de impotência que outros países, sobretudo os Estados Unidos, têm experimentado nos últimos anos como vítimas assíduas de ações terroristas”. A matéria anterior da mesma revista se referia as ações contra terroristas de Israel no bombardeio à sede da OLP na Tunísia. Porém, a URSS foi vinculada à imagem de grande financiadora e organizadora do terrorismo internacional, com destaque para fotos dos

119 Jeanne Kirkpatrik é mais um exemplo da construção de discursos políticos legitimadores e de sua assimilação pela mídia conservadora. Desde 1979 ela formulava a retórica usada por Reagan contra o terrorismo e de pressão sobre as ditaduras aliadas (LONGLEY, 2007, 19), que serviu de base moral para o ataque à URSS com base nos direitos humanos.

120 KIRKPATRICK, Jeanne. Profeta da linha dura. Veja, nº 879, 10/07/1985, 5. Entrevista por Flávia Sekles.

121 Que contam, entre outras ações, o assassinato dos ministros da Espanha e da Rússia (Stolypin), da imperatriz austríaca (Sissi), do rei Umberto I, do presidente estadunidense (McKinley).

RPGs em mãos da OLP. A ideia é que Israel combate o mal plantado pela URSS – que agora está tomando de seu próprio veneno. Assim o papel desempenhado por Israel na Guerra do Líbano se tornava positivo, enquanto o da URSS e da Síria era negativo. Também o papel estadunidense, uma vez que sua resposta a ataques terroristas a aviões estadunidenses em Beirute foram dadas por Moscou apenas como pretexto para manobras no Mediterrâneo – mas isso quando o país era imune ao terrorismo e não conhecia a realidade. A censura e falta de humanitarismo dos soviéticos se mostraram uma muralha para a promoção na mídia pretendida pelos terroristas122.

A ofensiva diplomática de Reagan encontrou no terrorismo internacional mais uma fonte de atividade e justificativa para a presença global americana (LONGLEY, 2007, 17). Era a hora de associá-lo ao socialismo real, ou, como Veja faz, sugerir que comunismo é igual a terrorismo. Com o ataque de Reagan à Líbia de Kadaffi ocorreu a tentativa de grudar o terrorismo internacional à imagem do socialismo, e o combate ao terror de Reagan ao combate anticomunista do mesmo. Compara o “histórico” bombardeio à Trípoli com a malfadada invasão da Baía dos Porcos, ocorrida em uma data próxima, 25 anos antes, “essa frustrada invasão serve hoje muito mais aos estudiosos do mau uso do poder do que à bibliografia do combate ao comunismo”. “Os americanos perceberam com mais clareza que, embora o inimigo ideológico número 1 dos EUA continue sendo a União Soviética, seu adversário mais palpável no momento é o terror”. O “terror” representado pela Líbia estava equipado com o armamento, principalmente soviético, adquirido por Kadaffi num valor de 10 bilhões de US$, como o sistema antimísseis SAM-5, que custou aos Estados Unidos dois caças F-111 “desaparecidos”, já que o armamento soviético “se mostrou ultrapassado e ineficiente”. O que servia igualmente como uma demonstração de força frente aos soviéticos123. Veja faz coro ao discurso de Reagan de que a Líbia era um exemplo dos “países fora da lei [...] geridos pela estranha coleção de desajustados, Looney Tunes e os criminosos miseráveis desde o advento do Terceiro Reich” (LONGLEY, 2007, 19, tradução livre), e era a União Sovética quem apoiava essas ditaduras terroristas, enquanto os Estados Unidos conduziriam gradualmente seus aliados da ditadura para a democracia. As palavras de Gorbachev, condenando o ataque, não tem qualquer menção em Veja (GORBACHEV, 1988, 244).

122 A vez dos soviéticos. Veja, nº 892, 09/10/1985, 55-56. 123 Um tiro no escuro. Veja, nº 920, 23/04/1986, 36.

Segundo o semanário, os ataques estadunidenses são cirúrgicos – o discurso aparece cinco anos antes da Guerra do Golfo. A destruição do centro de Bengazi e Trípoli não foi fruto das bombas americanas, mas dos foguetes líbios de tecnologia soviética, que “se perderam e caíram na cidade”. Com o subtítulo de “escudo prussiano”, Veja aponta ainda que “atrás de suas muralhas também ficava aquartelada uma tropa de elite encarregada da segurança do “Líder da Revolução” e comandada por um ex-oficial da Alemanha Oriental Karl Haenshe”. Evoca assim tanto o militarismo prussiano como o socialismo da Alemanha Oriental como seguranças do terrorista Kadaffi. Esta ação não foi nem contra os direitos humanos nem contra a lei, uma vez que “a morte de Kadaffi num ataque militar para prevenir atos terroristas [...] não poderia ser considerada um assassinato político”124. Na entrevista concedida a Flávia Sekles, com o embaixador estadunidense na ONU, Vernon Walters, a ligação entre terrorismo e comunismo é aprofundada para as ligações entre terrorismo e esquerda, e de uma perseguição e discriminação contra os ditadores de direita – enquanto Pinochet e Ferdinand Marcos, ditadores de direita, são feitos de párias por outros países, ditadores de esquerda não recebem o mesmo tratamento. “Os ditadores de esquerda exercem muito terrorismo no mundo inteiro. Os ditadores de direita exercem um certo terrorismo interno, mas normalmente não se metem em assuntos de outros países”. “Outros países” tem uma conotação bem mais realística se for trocado por “Estados Unidos”. O que se pode esperar de ditaduras como Chile e Paraguai? “Esses países, sendo ditaduras de direita, vão evoluir para a democracia. Mas não lhe posso dar a mesma esperança em relação a Checoslováquia, Nicarágua ou Cuba” – ditaduras de esquerda seriam terrivelmente mais repressoras que ditaduras de direita: enquanto há 20.000 emigrados chilenos, há 2 milhões de Cubanos. Sobre a reação da Europa frente ao bombardeio, mais uma vez a retórica que liga a democracia aos aliados dos EUA e sua influência benigna e a ditadura e a repressão como características de todo regime que se aproxima da URSS: “na OTAN, ao contrário do Pacto de Varsóvia, muitas vezes há posições divergentes. Somos uma aliança democrática, e não uma aliança de ditaduras”125.

Poucos meses depois esse discurso é relembrado e fortalecido. Na matéria “Pinochet em guerra com a URSS” Veja indica quem de fato é um problema para o relacionamento pacífico entre as nações. “O general Augusto Pinochet, presidente do Chile, está em guerra com a união

124 Escudo prussiano. Veja, nº 920, 23/04/1986, 45-47. 125 O ninho do terror. Veja, nº 920, 23/04/1986, 48.

Soviética”. Pesqueiros soviéticos estariam enviando arsenais para os “terroristas da Frente Patriótica Manuel Rodriguez”126. A União Soviética seria um país problemático e beligerante,

bem como seus aliados, seja na guerra entre Vietnam e Camboja, no Chifre da África127 ou no

sudoeste da África128. Um caso que Veja destaca em reportagens seguidas e com várias páginas é a situação de guerra civil no Iêmen. O país da Península Arábica também havia sido palco de intervenção militar cubana, apoiada pelos soviéticos a partir do Iêmen do Sul, em 1978, quando aviões soviéticos despejaram cinco mil soldados cubanos e milicianos iemenitas treinados em Cuba, apoiados por navios de guerra soviéticos, sobre Áden e o Estreito de Bab-el-Mandeb (AMSTUTZ, 1994, 45). Na reportagem “Sob fogo cruzado: no Iêmen do Sul, 42 brasileiros vivem o pesadelo de uma inesperada guerra civil e só conseguem escavar com ajuda soviética e britânica”. O que poderia ser uma impressão positiva da URSS para o público interno é contornado com a presença da foto de refugiados em um navio russo, com a foice e o martelo estampados na chaminé – foto disposta logo abaixo do título “fogo cruzado”. Sempre há relação entre os russos e vários conflitos distribuídos pelo globo. Os brasileiros empregados nas prospecções da Petrobrás no Iêmen e acuados pelo estouro do conflito, convidados a saírem do país pelos soviéticos, se defrontaram com um navio russo que admitia apenas crianças e mulheres, mas que exigia que os brasileiros ficassem nas imediações, mesmo não embarcando. Tal postura fez com que os empregados da Petrobrás preferissem se refugar num navio inglês, mesmo tendo que chegar a ele “à nado”. A falta de humanitarismo soviético e a mão de Moscou atingem até mesmo os brasileiros – não é uma ameaça longínqua e um problema que condiz apenas à Reagan, ou mesmo algo que não se pode classificar como problema. O que fica bem claro com o título da foto: “Áden bombardeada: 12000 mortos numa guerra civil entre grupos pró-soviéticos”. “Sempre que se vê diante de convulsões políticas num país de sua órbita, a União Soviética tem por hábito apontar um dedo acusador para os Estados Unidos”. Portanto problemas seus são jogados sobre os EUA como forma de se eximir de suas responsabilidades. “Os grupos que se engalfinhavam com ferocidade nas ruas de Áden, na semana passada, eram todos de fachada marxista, duas ou três facções rivais movidas mais por ambições pessoais e

126 Pinochet em guerra com a URSS. Veja, nº 938, 27/08/1986, 58.

127 Veja, nº 868, 24/04/1985, 116.; Mudança de assunto. Veja, nº 895, 30/10/1986, 54. 128 Veja, nº 866, 10/04/1985, 63.

antagonismos tribais que por divergências ideológicas”129. São ferozes, são marxistas, são facções hostis – três características em comum para identificar esses grupos.

O Afeganistão, que posteriormente passou a ser a imagem do fracasso até mesmo militar do regime, nesse período está mais para um teste de força, no qual os soviéticos faziam progressos lentos mas seguros rumo à sovietização do país. O cenário do conflito pôde ter sido retratado pela revista como um “inferno” igual ao Vietnam130, porém estrategicamente a URSS contaria com trunfos que os estadunidenses não tinham. Uma vez que o território afegão era contiguo ao território soviético, e não separado por 12 000 quilômetros, como no caso dos EUA e do Vietnam, a logística militar funcionaria muito melhor. A URSS poderia atacar com maior coordenação e força os insurgentes. Já havia etnias no Afeganistão que também habitavam o território soviético, como os tadjiques, o que possibilitaria um maior apoio à ocupação. Os membros do partido comunista afegão enviavam seus filhos para estudar em Moscou, o novo corpo de profissionais tinha por professores técnicos vindos da URSS – ocorreria fatalmente uma sovietização mental de parte da população afegã. Os recursos naturais do país estavam sendo canalizados para a URSS, que em troca fornecia produtos acabados. A integração e regionalização econômicas típicas do modelo soviético acabariam também por se impor sobre o Afeganistão. A imagem é a de uma 16ª República Federada Socialista Soviética em meio a um longo, tortuoso, mas invariável processo de gestação131. Se Gorbachev retira um contingente de 7

000 soldados isto não se deve à crise econômica ou uma política de boa vontade para com os Estados Unidos, mas a percepção de que o apoio soviético dentro do Afeganistão aumentou com a elevação ao poder de Najibullah, um homem que não esteve envolvido com a crise de 1979, o assassinato de Tarak ou o fuzilamento pelos soviéticos de Amin. Seu maior apelo popular possibilitava a URSS retirar suas próprias tropas para usar em seu lugar as tropas afegãs. Faz questão de lembrar que são meros sete mil de um exército invasor de mais de 100 mil. “A retirada de tropas, no entanto, não significa que o Kremlin esteja disposto a abrir mão de um rígido controle sobre o Afeganistão”. Portanto o acontecimento não deveria ser visto como um desengajamento soviético, pelo contrário. O ano de 1986 foi de uma campanha árdua mas de avanços para o Exército Vermelho132.

129 Sob fogo cruzado. Veja, nº 908, 29/01/1986, 36-39. 130 A guerra em casa. Veja, nº 875, 12/06,1985, 54. 131 Guerra sem vencedor. Veja, nº 853, 09/01/1985, 37. 132 Meia volta. Veja, nº 935, 06/08/1986, 54.

Com o tempo a retórica reaganista também se introduziu mais profundamente nas avaliações feitas por Veja do cenário afegão, bem como as próprias propostas de Gorbachev, em parte. Veja admite como sincero o recuo militar por motivos econômicos, como declarado por Gorbachev (GORBACHEV, 1986a, 96), mas não como uma manifestação de espírito pacífico, como defendido pelo mesmo líder (GORBACHEV, 1988, 293). Em 1987 já afirma que o secretário-geral entendeu que o conflito que “se arrasta por sete anos entre o “Exército do regime comunista do Afeganistão” (e não o “exército do Afeganistão” – uma síndrome de Savimbi, em que ocorre a negativa de reconhecimento de um governo como forma de legitimar o litígio entre as facções) e soldados soviéticos de um lado e guerrilheiros mulçumanos do outro”, que lhe rendeu “críticas constantes a um ato fragrante de intervencionismo armado. Mas os mujahedins já deixaram claro que não vão tratar com Najibullah, “um fantoche soviético”, mas sim diretamente com Moscou. Governos títeres dos EUA não tem o mesmo tratamento por parte da mídia. A retirada permitiria a Gorbachev destinar recursos para a recuperação da economia, evitar as deserções humilhantes e “o envolvimento de soldados com drogas, problema até pouco inimaginável na sociedade comunista”. A guerra “tem obscurecido o brilho da abertura engatilhada por Gorbachev”, como a crítica à violação dos direitos humanos133.

Conseguindo ou não retirar os soldados soviéticos do Afeganistão sem deixar um regime alinhado com Moscou, Gorbachev deu um ar mais realista no Kremlin. Ao contrário de seus antecessores, ele tomou a iniciativa de buscar a paz no Afeganistão, ainda que ela traga um governo que não siga as mesmas diretrizes do regime soviético134.

A chave para a compreensão do discurso de Veja é o discurso que o governo e a mídia americanas formaram sobre o Leste Europeu. No mundo da Guerra Fria ambas as superpotências sempre eram convidadas a opinar sobre qualquer acontecimento em qualquer parte do mundo. Mas o que se fazia, era, no caso de informações sobre o bloco soviético, usar o discurso formulado pelo Estado americano. Além do noticiário romantizado ao estilo Rambo. E Veja tinha a pessoa certa para encarnar Rambo em pessoa em suas dramatizações, como deixou claro no subtítulo: “Reagan reage como o herói Rambo”: “depois de um inédito ato de sequestro de um navio no Mediterrâneo, os Estados Unidos dão o troco, sequestrando os sequestradores”135.

133 Retirada à vista. Veja, nº 958, 14/01/1987, 43. 134 Idem, 44.