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Em 1985 a URSS e seus aliados europeus não constituem sequer os Estados completamente totalitários que aparecem nas páginas de Veja poucos anos depois. A primeira vez que a revista emprega essa palavra é em direção à Cuba136, e à Nicarágua137, não ao Leste Europeu. Ambos os países eram mais próximos e cativantes para alguns grupos políticos brasileiros do que seus congêneres europeus. Interessava a Veja direcionar acusações mais rígidas exatamente contra eles. Faz suas as frases de Jean-François Revel, que alerta para o crescimento das atribuições do Estado na vida social e econômica: “Hoje em dia, o único regime totalitário puro é o de Cuba. As ditaduras militares fascistas não são exatamente regimes totalitários e, além disso têm existência mais efêmera que os regimes comunistas”138. “Na Nicarágua, assim, um

regime totalitário de esquerda abre espaço de oposição que, normalmente, só conseguem sobreviver nas ditaduras de direita”139. Ou na China da repressão aos protestos na Praça da Paz Celestial140. A primeira menção explícita ao totalitarismo no Leste Europeu só ocorreu em 1989, numa matéria anunciando um livro de Kundera e comentando a Primavera de Praga e “o regime totalitário imposto pelos tanques invasores da União Soviética”141 e ao quadro da própria URSS

em 1988, ao elogiar Sakharov142. Quando o faz antes desta data, dá a entender que a máquina

totalitária existiu de maneira perfeita apenas na era de Stalin143. Tal diferenciação fica latente ao falar em “terror stalinista” nos anos 1930 e em “reinado” de Brejnev nos anos 1970144. Porém

usou tal vocábulo antes desta data, quando em entrevistas ou análises com seus especialistas de segurança, como foi com o sovietólogo Michael Tatu, que definiu o quadro atual da URSS como a de uma difícil transição do totalitarismo para o autoritarismo145. Ou do dissidente e ex-vice-

presidente iugoslavo Milovan Djilas, que previa que “as reformas na URSS vão conduzir a uma

136 Veja, nº 997, 14/10/1987, 5. 137 Veja, nº 1001, 11/11/1987, 63.

138 REVEL, Jean-François. Democracias em perigo. Veja, nº 881, 24/07/1985, 8. Entrevista por Paulo Moreira Leite. 139 Veja, nº 1001, 11/11/1987, 57.

140 Temporada de caça. Veja, nº 1084, 21/06/1989, 50. 141 Minueto de salão. Veja, nº 1096, 16/08/1989, 117. 142 Frente a frente. Veja, nº 1011, 20/01/1988, 34 143 Cartas na manga. Veja, nº 1037, 20/07/1988, 58.

144 A segunda Revolução Russa. Veja, nº 1000, 04/11/1987, 4. 145 O discurso da razão. Veja, nº 1001, 11/11/1987, 47.

espécie de autoritarismo liberal, que continuará totalitário”146. A revista, que usava a expressão

de uma maneira mais prudente e ponderada, exceto nos casos onde havia uma possibilidade de pressão política sobre fatias da esquerda nacional, como o cubano e o nicaraguense, a partir de então passa a abusar do mesmo incessantemente.

Esses contornos que confundem autoritarismo e totalitarismo insinuam que Veja construiu esse discurso baseada em seu principal analista para o Leste Europeu em meados dos anos 1980, Seweryn Bialer (BIALER, 1981, 71). Invés de uma ditadura personalista, centralizada num único indivíduo (o secretário-geral do PCUS), ela identifica uma liderança colegiada que compartilhava o poder central, que tomava decisões apenas em um consenso geral. É no “Politburo, um restrito clube de uma dúzia de homens que tudo decidem, é que está o verdadeiro núcleo do poder da União Soviética”, e que, se chamava a si todas as tarefas, tinha menos poder real do que se supunha147. Excetuando-se as duas últimas características, assim era como o próprio Kremlin considerava seu poder, inclusive com o mesmo nome de “liderança colegiada” ou “liderança coletiva”, que considerava essencial para impedir que um novo período de culto à personalidade se instalasse. Essa visão do sistema político é diferente da dos autores clássicos do totalitarismo. Essa confusão conceitual não era um dado específico e restrito às relações de Veja com seus analistas prediletos. Ela era parte integrante e essencial do discurso político ao qual a revista se filia e do qual Reagan se fazia seu mais alto porta-voz no período (PINTO; GIL, 2005, 13), e que era absorvido pela mídia.

A afirmação da ideologia como um componente do totalitarismo, por parte de Ronald Reagan, apareceu na distinção feita, aí de modo direto, dentre democracia e totalitarismo. A democracia, para o presidente norte-americano, é um ideal, ou seja, algo que todas as pessoas aspiram, o que lhe confere um caráter positivo. Assim, a democracia aparece como um sistema perfeito, livre de vícios e/ou problemas. Mas, esta afirmação encerra uma omissão, pois de qual democracia Ronald Reagan se refere, ou seja, ele generaliza o fenômeno tornando-o natural [...].

Por outro lado, os regimes totalitários são ideológicos, o que confere um caráter negativo [...]. A ideologia é para o totalitário, na ótica neoconservadora, o mecanismo mais apropriado para o processo de ocultação e dominação. O que na maioria das vezes, não é percebido, por desconhecimento ou interesse, que na existência de uma ideologia, possa existir uma contra-ideologia (que também não deixa de ser uma ideologia). Exercício que Ronald Reagan fez ao contrapor democracia e totalitarismo (PINTO; GIL, 2005, 14).

146 Volta à praça. Veja, 1011, 20/01/1988, 38. 147 Chegando ao alto. Veja, nº 852, 02/01/1985, 28.

Fernandes catalogou uma ampla gama de tentativas de interpretação do sistema soviético e dos problemas enfrentados por cada teoria. A tese do totalitarismo, surgida ainda nos anos 20 por meio dos ensaios de definição feitos por intelectuais fascistas de seu próprio movimento, acabou sendo estendida por pensadores liberais ocidentais também à URSS de Stalin, nos anos 1930, e veio a constituir um consenso político, midiático e acadêmico nos anos 40. Para Hanna Arendt, segundo Fernandes, a entrada das massas na política levou a formação de estados em que o indivíduo é alvo do terror institucionalizado, assim é atomizado e mais facilmente mobilizado enquanto massa para a obediência ao Estado (FERNANDES, 2000, 24-26). Outro autor clássico seria Brzezinski, o mais marcante e duradouro dessa corrente. O totalitarismo seria uma atualização dos regimes autocráticos para o século XX, baseada em características entrelaçadas:

a) uma ideologia oficial altamente elaborada, abarcando todos os aspectos da existência humana;

b) um partido único de massas, tipicamente liderado por um ditador, que se sobrepõe à (ou se mescla à) burocracia governamental;

c) um sistema de terror, exercido por meio do controle do partido e da polícia secreta, dirigido contra classes da população selecionadas de forma mais ou menos arbitrária; d) um monopólio quase completo de todos os meios modernos de comunicação de massa pelo partido/Estado;

e) um monopólio quase completo do uso efetivo de armas de combate; e

f) o controle e direção central de toda a vida econômica via a coordenação burocrática de entidades corporativas previamente independentes.

Do ponto de vista metodológico, eles se apoiaram numa construção taxinômica que erige em características definidoras do totalitarismo, precisamente, aqueles elementos que pudessem ser apresentados como “opostos” às instituições e práticas dos Estados liberais democráticos no Ocidente (ou, para ser mais preciso, “opostos” ao discurso liberal dominante sobre o Estado neste) (FERNANDES, 2000, 26-28).

Assim “as teorias do totalitarismo induziram a analogias infundadas e enganosas que não corresponderam aos desenvolvimentos objetivos das sociedades do Leste”, uma vez que percebiam todo o poder de políticas públicas no partido e no líder; “exageravam o poder autônomo do partido/Estado e seu líder na sociedade, desconhecendo ou subestimando os limites e constrangimentos existentes para o seu exercício”; tudo baseado numa “falsa concepção monolítica e estática tanto do Estado quanto da sociedade”. O Estado unipenetrante controlando o indivíduo atomizado pressupõe que o modelo se reproduza eternamente sem mudanças políticas, a não ser pela derrubada violenta externa ou interna. As reformas políticas e econômicas promovidas por esses países ao longo do tempo contradizem a teoria e vão no caminho inverso de suas previsões. Uma vez desmontado o Estado totalitarista, essas sociedades deveriam ter presenciado um florescimento econômico, político e social baseado na libertação dos indivíduos.

Mas ocorreu o contrário (FERNANDES, 2000, 34-36). Lewin também estabelece os parâmetros e as inconsistências do modelo:

No campo dos estudos de sovietologia, o conceito predominante e firmemente arraigado é o do “totalitarismo” – que leva a pensar num governo terrorista, buscando o controle total da população por meio de doutrinação maciça, força policial, lavagem cerebral ideológica, monopólio das fontes de informação, exercício de poder e controle direto da economia. Segundo esse modelo, o Estado orienta seus poderes no sentido de impedir toda autonomia de organização e expressão cultural e de qualquer outro tipo, exceto quando autorizada [...].

O termo, embora cumprindo bastante bem sua função ideológica, era inútil enquanto categoria conceptual. Pouco dizia acerca da origem do sistema, de seus objetivos, do tipo de mudanças que sofria – caso sofresse alguma – e do que seria a forma crítica e séria de estuda-lo [...], o próprio termo era “totalitário” em sua autossuficiência vazia; não reconhecia qualquer mecanismo de mudança na União Soviética e em nada contribuía para qualquer processo histórico [...]. O modo de o Ocidente perceber a União Soviética ficava seriamente cerceado por um esquema cognitivo que impedia os analistas de verem o mundo com realismo [...].

Algo bastante a-histórico: um sistema político sem um sistema social, um Estado que paira sobre todas as coisas [...]. Um Estado assim, sujeito apenas a suas próprias leis, só se explica em seus próprios termos. Qualquer tentativa de imaginar o que poderiam ser essas “leis” não iria além das normas de imutabilidade, estagnação e fixidez [...]. Jamais se pensaria na possibilidade de reformas de vulto num Estado desse tipo (LEWIN, 1988, 19-21).

A melhor definição, e a que aparece mais vezes, é que, para Veja, no período 1985-87, os regimes do Leste Europeu são autoritários com fortes tendências totalitárias herdadas do passado (BIALER, 1981, 48), ou com um sistema totalitário atenuado. O constante reforço de ideias por parte de especialistas confiáveis ajudou a montar o discurso neoliberal e o aprofundamento da definição totalitária para tais regimes.

Para Veja, inicialmente, a sociedade não seria tão homogênea, atomizada e inerte, como afirmaria posteriormente. Pelo contrário, existe a indicação de uma nascente sociedade civil autônoma, como na matéria “Silêncio rompido: católicos nas ruas pedem liberdade religiosa”, sobre manifestações em Praga durante as comemorações dos 1100 anos da morte de São Metódio e São Cirilo, evangelizadores dos eslavos. Veja diz que a Igreja local fez convites para altas autoridades estrangeiras da Igreja, que não foram “subscritos” (chega a usar até um termo brando) e assim não puderam cruzar as fronteiras. 150 000 pessoas imprimiram à festa “um tom ao mesmo tempo religioso e de contestação”, pedindo pela presença do Papa, que não teve a entrada no país liberada, e destinando vaias aos líderes do partido que fizeram um discurso pela paz e pelos 40 anos do regime. Fala da existência de dois movimentos católicos no país: o Pacem in Terris, alinhado com o regime, e o outro, alinhado com o Vaticano, responsável pelas

contestações às restrições e escassez de religiosos – uma vez que o regime autoriza e paga os sacerdotes. Era a maior manifestação desde 1968, significaria um sinal de descontentamento, mas não de revolta, como as que já eclodiam na Polônia com a recente visita do Papa148.

A repressão do regime aparece em Veja nessa época com as cenas de prisão em massa, mas não dentro de um regime de terror totalitário contra todo e qualquer pensamento divergente, mas com a política de combate ao alcoolismo, formulada por Gorbachev, como na matéria “Gole difícil: campanha contra o álcool dá primeiros resultados”. A URSS era um país onde faltava até a liberdade para beber, em que “os comandos de repressão à embriaguez tornaram-se mais temíveis até do que a onipresente polícia secreta”, ao efetuar prisões aos milhares149. Mas este

não é o quadro típico do regime pincelado após 1989.

Fernandes aponta para a crise e decadência da teoria totalitarista ainda nos anos 1960, quando foi incapaz de perceber ou explicar o novo cenário soviético da desestalinização que se descortinava sob seus olhos. No fim dos anos 1980, a corrente que sobrevivia especialmente em meios políticos e na imprensa retornou ao mundo acadêmico, como tentativa de explicar o colapso do sistema durante as reformas e pelo impacto da adesão de intelectuais do Leste Europeu a essa teoria para explicar a realidade de sua sociedade até então. O totalitarismo teria que adotar o ecletismo teórico, a absorção de outras teorias para tentar dar conta dessa realidade que não se encaixava a seus pressupostos. Esse ecletismo pode ser observado em Bialer ou nas fases iniciais de Veja (1985-87). Misturam-se as teorias do totalitarismo e da burocracia, totalitarismo e grupos de interesse, totalitarismo e corporativismo, totalitarismo e desenvolvimentismo econômico.

Após 1988, Veja passa a defender uma visão purista do totalitarismo, como era concebido por Hanna Arendt ou Brzezinski, a medida que os anos de mudança política e social sob Kruschev e Brejnev eram mais facilmente esquecidos com o passar do tempo, a revisão histórica e a campanha por reformas dentro da URSS. A escalada do discurso do totalitarismo seguiu ao próprio movimento da imprensa dos países desenvolvidos sob governos conservadores, como também dos reformadores de dentro do Kremlin. E é nestes que repousa a verdadeira força de convencimento que estas posições ganharam.

148 Silêncio rompido. Veja, nº 879, 10/07/1985, 45. 149 Gole difícil. Veja, nº 886, 28/08/1985, 62.