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As negociações de paz: como apagar a estrela de Gorbachev – 1985-1986

Novamente é o embate entre os líderes das duas superpotências que conduz a construção do discurso da revista. Gorbachev e a URSS só aparecem como obstáculos a um pacifista porém realista e enérgico Reagan. Para parte da imprensa e da população soviética, bem como de toda a mídia soviética, Reagan era um belicista e Gorbachev um pacifista (LONGLEY, 2007, 39). Não é isso o que aparece em Veja. Gorbachev não tem propostas. Estas pertencem a Reagan. A grande preocupação é inverter as posições e engrandecer o presidente estadunidense enquanto se minimiza o secretário-geral soviético.

Veja sempre duvidou das possibilidades de sucesso nas negociações de paz, fosse pela manutenção da atitude de suspeita frente aos soviéticos, fosse quanto a probabilidade de Gorbachev aceitar ou concretizar as negociações e se manter no poder. Ela partilha da opinião de Bialer150 de que Gorbachev manipulava a mídia ocidental (BIALER, 1986, 330):

Desde que assumiu o poder, vem se mostrando interessado em aprender a arte de utilizar os meios de comunicação para cortejar popularidade. Em pouco tempo, figurou quatro vezes na capa da revista americana Time, o semanário de informações de maior circulação em todo o mundo, [...] numa delas concedeu uma entrevista em que seduziu os editores da revista a ponto de ser chamado de “Grande Comunicador”, um título antes exclusivo do presidente Ronald Reagan.

Gorbachev começou a utilizar os meios de comunicação como um chefe de Estado moderno – justamente a imagem que pretende projetar [...] toda vez que sai para visitar fábricas, hospitais ou escolar na União Soviética, ele vai sempre acompanhado de uma equipe de televisão151.

A Time poderia ser enganada e manipulada, mas não Veja, em sua auto avaliação. A revista é calejada nas jogadas soviéticas para extrair vantagem sobre todos – mesmo a mídia ocidental – para fazer sua propaganda política ideológica sobre a mente do público. Provavelmente os redatores rememoravam o caso da garotinha Samantha Smith, ainda nos tempos de Andropov. A carta da menina do Maine ao líder soviético, pedindo paz, pesou sobre a campanha de Reagan pelo aumento da fatia do orçamento para a corrida armamentista e o complexo industrial-militar. A florescente gorbymania teria o mesmo intuito oculto de

150 “Ele atribuiu uma atenção muito maior para o campo das relações públicas da política externa, e parece determinado a utilizar e manipular os meios de comunicação do Ocidente para impor o ponto de vista soviético embalado nas aparências mais atraentes” (BIALER, 1986, 330, tradução livre).

“perturbar” o verdadeiro Grande Comunicador, que agora é obrigado a dividir o título com um político que não sabe o que é realmente a “cata de votos” e só tem expressão midiática por ter a “vantagem de ter todos os veículos soviéticos a seu dispor”. Só é notável porque é o primeiro líder soviético em décadas a “aparecer em público, falar e andar”, ao contrário dos seus “septuagenários antecessores”. Um homem capaz de extrair vantagem até desse passado.

Quando o secretário de Estado americano, George Shultz, e o ministro das Relações Exteriores soviético, Andrei Gromyko, reestabeleceram em Genebra o diálogo quase nulo entre as superpotências desde a ascensão de Reagan (VOLKOGONOV, 2008, 325-26; BROWN, 1996, 77), Veja apostou na impossibilidade de qualquer acordo.

O mais provável, porém, é que os EUA estejam apenas exibindo à URSS o tamanho do desafio tecnológico e financeiro que ela teria que enfrentar para construir sua própria Guerra nas Estrelas, para finalmente usar o sistema como moeda de troca na hora de exigir concessões concretas dos russos152.

Na matéria seguinte, “degelo sob a neve”, apesar das propostas de concessões mútuas, Veja aponta que a vitória foi dos Estados Unidos e de sua ofensiva diplomática, uma vez que a URSS prometeu voltar à mesa de negociações apenas após os EUA cancelarem seus programas da IDE e dos euromísseis, o que Reagan se negou. Veja o cita para afirmar que “ninguém aposta numa rápida descompressão nas relações entre Moscou e Washington”153.

De início Veja percebe inclusive uma deterioração nas relações entre a URSS e o Ocidente, como na matéria “Paz sob fogo: guerra de palavras na festa da vitória”. 40 anos após a Segunda Guerra, o cenário mundial estaria mais parecido com o de 1939 do que com o de 1945, e quem detonou a nova crise foi a URSS. “Os primeiros petardos partiram de Moscou”: Gorbachev condenou as propostas de reunificação alemã e acusou os EUA de praticarem uma política antissoviética como a de Hitler. A réplica coube a Reagan, que no domingo havia visitado ao lado de Kohl um cemitério das SS em Bonn: a URSS praticaria a dominação de outros países ao estilo nazista e prepara-se para o ataque nuclear ao mundo civilizado. Porém Reagan deu sinais de reconciliação ao prometer visitar a URSS se Gorbachev for à ONU em setembro154. O ato de depositar flores num cemitério nazista (WILENTZ, 2008, 209; LÉVESQUE, 1997, 147), que poderia colocar a dupla Kohl-Reagan em um embaraço público, tem um desfecho invertido. É Gorbachev a figura condenável, ao disparar a crise.

152 Como um louco buscapé. Veja, nº 853, 08/01/1985, 33. 153 Degelo sob a neve. Veja, nº 854, 16/01/1985, 64. 154 Paz sob fogo. Veja, nº 871, 15/05/1985, 34.

Genebra foi o momento em que Reagan deveria aparecer como realista, e Gorbachev como um líder sem propostas155. Em matéria anterior156 Veja, que já havia apontado a tática de Reagan de mudar o foco do desarmamento entre as superpotências para a pacificação dos conflitos regionais no Terceiro Mundo, agora toma a voz dele para apontar que “é ridículo esperar que se revolvam em dois dias problemas deste porte”. É a maneira da revista noticiar, expor e apoiar as posições de Reagan, que nunca aparece como contrário à paz ou ao desarmamento, ou como belicista. Assim pode-se preparar o público para a oposição dos EUA a qualquer acordo em Genebra. O verdadeiro poder belicista é a URSS ao se envolver com os conflitos armados no Terceiro Mundo e a não promover um diálogo com os Estados Unidos sobre seu desengajamento. Reagan estaria disposto a negociar, já que um grande acordo internacional é o que faltaria para consagrá-lo completamente. Já Gorbachev precisa do acordo para poder prosseguir com suas reformas, mas não será bem sucedido nos tratados pela oposição dos conservadores. Isso torna pessimista o tom do encontro, uma vez que “Gorbachev não apenas se recusou a fazer concessões que aproximassem as posições dos dois países como se mostrou arrogante no diálogo [...], mais um sinal de que não há qualquer garantia de acordos realmente importantes em Genebra”. Gorbachev é um impedimento para a paz, uma vez que ainda não tem poder suficiente para negociações importantes157, e não as demandas de concessões unilaterais por parte dos estadunidenses ou sua crescente lista de exigências baseada na necessidade e nas declarações e necessidades de reformas e paz de Gorbachev (GORBACHEV, 1986b, 53).

Uma semana depois, fitas de áudio contendo as negociações foram parar nas mãos da imprensa. Atrás do clima oficial de cordialidade ocorreram momentos de tensão, resolvidos por Reagan: “nas ocasiões em que o ambiente ficou muito carregado, Reagan chamou a si a tarefa de desfazer as nuvens. Também coube ao presidente estadunidense a iniciativa de abordar a questão de futuras reuniões". Como a principal vitória em Genebra foi a decisão das superpotências de continuar conversando, pode se atribuir esta a Reagan158. Gorbachev em seguida fez pública a integra de sua ousada proposta de desarmamento: eliminação imediata de metade dos mísseis intercontinentais e a erradicação de armas nucleares até o ano 2000 (GORBACHEV, 1986b, 173). A transparência adotada pelo secretário-geral tanto sobre a reunião de Genebra como a de

155 Retomada do diálogo. Veja, nº 898, 20/11/1985, 68-72. 156 Mudança de assunto. Veja, nº 895, 30/10/1985, 54. 157 Retomada do diálogo. Veja, nº 898, 20/11/1985, 70.

Reykjavik gerou nervosismo entre a equipe de Reagan (GORBACHEV, 1986a, 97), e nenhum comentário por parte de Veja, exceto a de que “quebrou flagrantemente o acordo” que impunha silêncio até o fim das negociações (Tropeção na chegada. Veja, nº 946, 22/10/1986, 70). Gorbachev continuava sem propostas ou propostas realistas. Sequer a moratória unilateral de testes nucleares soviéticos (BROWN, 2007, 85) foi anunciada na revista. A alegação do secretário-geral de que, de propaganda em propaganda, de concessão em concessão, ambos os lados chegariam a um acordo do controle dos arsenais, foi vista também como um blefe publicitário e irrealista159.

Quase um ano depois os dois líderes se encontraram novamente para uma reunião de cúpula para o desarmamento. Na reportagem “de novo a sós: Gorbachev e Reagan escolhem a remota Islândia para seu segundo encontro, pensando na outra reunião que terão nos Estados Unidos”160, do enviado Roberto Pompeu de Toledo, inicia-se com a descrição do local:

Ambos escolheram uma cidade situada no fim do mundo [...] e um cenário que, a começar pela fama da casa e a terminar pelo barulho do vento, mais conviria a um filme de terror nuclear, porém, além de outros terrores menores, que os dois estavam reunidos. O cenário era, portanto, apropriado161.

A preocupação agora era dar motivos suficientes para a hostilidade com a qual Gorbachev foi recebido para o encontro. Com o subtítulo de “civilidade escandinava”, Veja afirma que só em um país escandinavo como a Islândia, a presidente e o primeiro-ministro podem achar mais importante assistir à reunião do Parlamento do que receber Gorbachev. Reagan, que chegou adiantado um dia inteiro, “portanto sem nenhuma coisa mais importante na agenda das mais altas autoridades locais – teve direito a uma recepção com a presidente e o primeiro- ministro”. Veja enfatiza que Gorbachev é impontual e por isso não foi recebido, afinal, como explica sob a foto, “Reagan chegou 10 minutos antes: sorrisos à porta da casa-assombrada”. O que poderia ser um incidente diplomático foi apenas a exibição da mais alta educação. Novamente há uma inversão dos papéis desempenhados pelas superpotências durante a Guerra do Vietnam. O que era uma Síndrome do Vietnam torna-se uma “Síndrome do Afeganistão” (POCH-DE-FELIU, 2003, 104). Segundo Veja:

“O nível das armas não pode ser permanentemente baixado enquanto existir um constante ataque ao equilíbrio internacional”, escreveu Kissinger num ensaio publicado

159 SANTA CRUZ, Selma. A ascensão de Gorbachev. Veja, nº 904, 01/01/1986, 72. 160 De novo a sós. Veja, nº 945, 15/10/1986, 54-58.

às vésperas da reunião de Reikjavik. Ou seja: para os americanos, cada vez mais, existe um contexto geral para ser discutido – indo de armas nucleares a conflitos localizados, como o do Afeganistão, e passando pelo desrespeito aos direitos humanos na União Soviética. Os americanos irão tanto mais fundo na dissecação desses assuntos quanto mais sentir no adversário uma pressa afobada para conseguir acordos de armas162.

Para Veja, os estadunidenses são pacifistas. Não se trata de uma questão deles não quererem o desarmamento ou serem belicistas. É que eles desejam jogar duro e impor ao “Império do Mal” uma gama ampla de mecanismos que assegurem uma paz mais ampla e a defesa do humanitarismo.

Gorbachev quer um acordo de limitação de armas nucleares [...] porque a corrida armamentista custa ao seu bolso uma fortuna que poderia ser muito melhor aplicada na modernização de uma economia cada vez mais capenga. Já Reagan quer um acordo sobre armas porque faz bem para a biografia de um presidente americano ser coroado com a aureola de pacificador163.

Gorbachev o faz por necessidade, Reagan por um interesse pessoal, porém de benevolência para o mundo todo. Também aponta “que a União Soviética , para conversar com os EUA, está disposta até a passar por situações que resvalam na humilhação é algo que ficou claro em Reikjavik”. O que era alta civilidade se tornou humilhação, se isso pode passar uma imagem negativa. Mas Reagan não tinha motivos para ceder mesmo diante da liberação de dissidentes e do jornalista estadunidense preso por espionagem: “‘Isso não muda o fato básico de que o desempenho soviético em direitos humanos continua se deteriorando e de que a emigração judaica está em seu mais baixo nível”, disse o presidente americano”, que está diante de “um lance da batalha publicitária a que a URSS respondeu apresentando o cientista estadunidense Arnold Lokshin, que se mudou com toda a família para Moscou dizendo-se vítima de perseguição insuportável nos EUA.” Trata-se de propaganda uma vez que saiu dos EUA para a URSS por causa de perseguição – quando apenas o outro lado comete ações desse tipo. “Quando se encontravam, olhos nos olhos, como quer a moderna mística das reuniões de cúpula, tinham pela frente fantasmas que iam do terror nuclear aos sofrimentos impostos aos dissidentes soviéticos”.

Era uma matéria toda montada, em cada detalhe, para que a imagem de pacifista, humanista e de liberalizador não colasse à Gorbachev e a de belicista não aderisse à Reagan, apesar das condutas reais dos dois dirigentes164. Também tenta-se minimizar o encontro, como

162 Idem, 58. 163 Idem, 58.

164 “Os historiadores do século XXI, longe das lembranças vivas das décadas de 1970 e 1980, vão ficar intrigados com a aparente insanidade dessa explosão de febre militar, a retórica apocalíptica e o muitas vezes bizarro

apenas uma formalidade e não como a reunião que mudaria os destinos da Guerra Fria165. Desde o início a questão do tempo foi levantada como culpa do próprio Gorbachev. O fantasma da casa mal-assombrada onde a reunião foi sediada simbolizava também o do espectro do comunismo, da ameaça nuclear soviética e da repressão aos dissidentes políticos. Posteriormente, Roberto Pompeu de Toledo disse que “o encontro de Reykjavik foi como uma corrida em que os nadadores dão tudo de si, superando marcas com quem ninguém sonhara – apenas para morrer na praia”. Entretanto, a “opção zero” americana e a proposta de Gorbachev foram embaralhadas pela revista, como se tratassem de uma única proposição de Reagan, negada pelos soviéticos: “Gorbachev disparava: “Só um louco poderia aceitar o que propunham os americanos’”. Os soviéticos teriam considerado propostas absurdas o esforço pacifista estadunidense, como a retirada de todos os mísseis apontados para a Europa, metade dos ICBMs,

e, num prazo de dez anos, desativariam o resto de seus arsenais nucleares, às vésperas do ano 2000 [...]. O que deu errado foi a exigência soviética de que Reagan, como parte do pacote colocado na mesa, desistisse de seu projeto batizado de Iniciativa de Defesa Estratégica ou, mais popularmente, Guerra das Estrelas166.

Nenhuma menção ao fato de que a opção zero representava a destruição do principal trunfo soviético, que era sua superioridade nuclear na Europa, ao eliminar os mísseis de ambos os lados – enquanto preservava o estadunidense – seus mísseis alocados em submarinos e bombardeiros estratégicos. Os soviéticos teriam que destruir muito mais bombas que os Estados Unidos. Nenhuma alusão de que foi Gorbachev, redarguindo a Reagan, que propôs essa desnuclearização global até o ano 2000 (GORBACHEV, 1986a; 1986b). O mais extraordinário: as sucessivas exigências americanas renovadas a cada concessão soviética, como a contagem em separado dos mísseis dos membros da OTAN (que, com exceção dos Estados Unidos, signatários do acordo, estariam isentos de eliminação) (LÉVESQUE, 1997, 25), não são mencionadas. Veja tampouco dá voz à crítica de Gorbachev de que o Ocidente não queria de fato embarcar numa

comportamento internacional de governos americanos, sobretudo nos primeiros anos do presidente Reagan (1980-8)” (HOBSBAWM, 1995, 244). Já no caso de Gorbachev, Brown chega a falar em “ofensivas pacifistas” (BROWN, 2007, 261).

165 Se ocorreu com anticlímax com o cancelamento dos acordos já negociados diante de novas exigências americanas, ambas as superpotências tiveram uma ideia melhor sobre quanto cada uma aceitaria fazer concessões (LÉVESQUE, 1997).

política desarmamentista (ENGLISH, 2000, 219). Ela reproduz a argumentação de Reagan, já que ele é “um homem que sabe negociar”167.

Gorbachev já havia feito muitas concessões unilaterais importantes para deslanchar o processo de desarmamento. Prolongara duas vezes a moratória de testes nucleares, concordara em não considerar as forças nucleares independentes da Grã-Bretanha e da França caso fosse possível um acordo soviético-americano, e fez concessões a respeito dos mísseis de médio alcance europeus e asiáticos. Aceitara também o princípio de inspeção e verificação in loco, modificara sua posição quanto à pesquisa IDE, e comunicara uma consequente redução das forças soviéticas no Afeganistão. Nenhum desses gestos foi objeto de reação positiva por parte dos EUA. Lá pensava-se que as ações unilaterais de Gorbachev eram o resultado da pressão da situação econômica interna soviética, sinais de uma reavaliação das prioridades que continuaria por algum tempo, e indício de que a política dura de Reagan estava surtindo efeito. A administração norte-americana estava convencida de que poderia cobrar bem caro pelos benefícios mútuos da redução do armamento nuclear (MEDVEDEV, 1987, 255).

Veja inicialmente tece críticas à proposta Guerra nas Estrelas, não por seu militarismo, não pela tentativa de acabar com o equilíbrio estratégico, nem sequer pelos impostos necessários para o custeio do projeto, mas pelas prováveis reações causadas no adversário: “Reagan espera empurrar os soviéticos para um acordo, na reunião de novembro. Corre o risco, porém, de estar deslanchando um novo páreo na corrida armamentista”168. Segundo Arbex, a imprensa, ao não relacionar os interesses do complexo industrial-militar na continuidade da corrida armamentista e na forte relação de apoio e financiamento de campanha entre este e Reagan, promoviam o presidente estadunidense ao posto de estrategista que forçava os soviéticos a paz através de uma inescapável pressão militar:

De fato, a difusão do mito do governo do governo Reagan como o estrategista de uma “cruzada” antissoviética teve uma dupla função: por um lado, servia para “dourar a pílula” da destruição do edifício socialdemocrata criado por Roosevelt e, por outro, servia como luva às técnicas narrativas do telejornovelismo, que descrevia a Guerra Fria como a luta do “Bem” contra o “Mal” (ARBEX, 2001, 227).

Nesta fase Gorbachev ainda não havia mudado drasticamente sua política externa, até por ainda concordar que a “opção zero” era “ferir a inteligência” dos soviéticos, como disse um diplomata de Brejnev (BROWN, 2007, 25). Mas a abordagem de Veja sobre o próprio Gorbachev sim. Após uma lua de mel, diante das reformas e da mudança de estilo, passou a adotar e defender a retórica dos grupos conservadores estadunidenses, principalmente a dos assessores políticos de Reagan, na íntegra. Com o avanço das negociações, afirma que

167 Um homem que sabe negociar. Veja, nº 1006, 16/12/1987, 53. 168 Poder de fogo. Veja, nº 886, 28/08/1985, 58.

a agenda de discussões já partia de um ponto bem diferente do emaranhado de avanços e recuso que marcaram mais de seis anos conversas, desde que, em 1981, Reagan propôs a chamada “opção zero”. O que o presidente americano sugeria – e a URSS, ainda liderada por Leonid Brejnev, recusou na ocasião – era exatamente o que agora Gorbachev anunciou aceitar: não apenas a retirada, mas a destruição de todos os mísseis com ogivas nucleares que as superpotências instalaram na Europa nos últimos anos. Até o final da semana, um único detalhe parecia prejudicar um passo final para um acordo: os soviéticos insistiam no desmantelamento também de 72 mísseis do tipo Pershing I pertencentes à Alemanha Ocidental, fora do comando da OTAN169.

Os reais motivos para que os soviéticos concordassem com a paz eram outros, pelo que se pode inferir por Veja: os mísseis Pershing e Cruise. “Pershing II: 10 minutos até Moscou” – um logro da tecnologia ocidental e não de sua disposição junto à Cortina de Ferro. “Cruise: a 100 metros do chão para driblar o radar inimigo”. A URSS é esmagada pela superioridade tecnológica do arsenal estadunidense. Não há qualquer menção objetiva da superioridade estratégica ou da presença de mísseis também no território dos países do Pacto de Varsóvia. Reagan é que queria a paz com o desarmamento total nesse cenário desde 1981. Os soviéticos só o fizeram agora por necessidade, diante da derrota militar e tecnológica. Necessidade que Reagan não tinham nem em 1981 nem agora. Ele age por desprendimento. Gorbachev apenas cansou de lutar contra o que Reagan já pretendia. Ainda assim se opôs a paz até o último instante, ao jogar um assunto fora da questão principal – mísseis que não pertencem a outra superpotência nem tampouco à sua aliança militar. Também dá eco à ideia de que as superpotências instalaram os euromísseis a partir de uma escalada militar da União Soviética, e não que os antigos modelos soviéticos foram apenas substituídos em número pelos modernos mísseis SS-20 (

FLERON; HOFFMANN; LAIRD,

1991, 495

).

A corrida começou com a multiplicação acelerada dos mísseis SS-20 soviéticos voltados para alvos em toda a Europa – uma escalada que, em 1979, levou os Estados Unidos a persuadir seus aliados europeus a entrarem em campo para empatar o jogo. Alemanha Ocidental, Inglaterra, Itália, Bélgica e Holanda concordaram em instalar em seus