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Em 1985 o modelo econômico do regime militar ainda não estava desacreditado por completo nas páginas de Veja. A tentativa de construção de um novo consenso ainda não havia começado seriamente. Em sua “Carta ao Leitor”66, Veja afirma que Sarney possui à sua disposição dois caminhos possíveis e não aponta nenhum deles como o único correto. Ou sana o orçamento ou tenta melhorar o quadro social. Uma opção exclui naturalmente a outra. Mas no

65 A perestroika abençoada. Veja, nº 1108, 6/12/1989, 72. 66 Veja, nº 874, 05/06/1985, 28.

caso da segunda, só surtirá efeito se a máquina pública, que absorve os recursos invés de redistribuí-los dos ricos para os pobres (e Veja não sugere nada de mal nisso) for alterada. Se há a defesa da redução da máquina do Estado, não há ainda a de suas funções. Não há ainda um discurso que tentem impor uma hegemonia dentro das várias facções e grupos que dividem o poder político e econômico no Brasil, não há a fala de que “não existem alternativas”. Os liberais e os conservadores tem amplo espaço mas trata-se mais da divulgação de suas ideias do que de uma imposição hegemônica ou busca pela hegemonia.

O Chile ainda não é modelo, até pelo estigma da ditadura e de seu fim melancólico no Brasil. As arbitrariedades e as condições econômicas reais ainda estavam frescas na memória, ou ainda se desenrolando até 1989 no Chile. Veja não fez pressão política com uma sugerida ameaça de retorno dos militares ao poder antes de 198767. Bem como o desempenho econômico de Reagan, que não podia ainda ser escamoteado como sucesso entre tantas crises recentes (como os crashes de 1983 e 1987). O que, futuramente, Veja classificaria como uma “heresia econômica”, como o acordo entre o ministro Funaro com os supermercados para evitar a alta dos preços, foi bem vista. Um “acordo de cavalheiros”, não só em face da outra opção, muito mais herética, do congelamento de preços68. posteriormente se adotou o congelamento ante o fracasso desse acordo. Com o fracasso do congelamento devido ao ágio, quando este plano também é abandonado, ela assume posições ideológicas mais firmes ao afirmar: “de volta ao mundo real: Funaro autoriza aumentos dos preços, descongelando o Cruzado, enquanto Pazzianotto ressuscita o velho INPC69 para medir a inflação”70. Mesmo a FIESP71, que Carla Luciana Silva aponta como um entrave à consolidação do discurso hegemônico neoliberal entre o empresariado, e portanto alvo das pressões de Veja (SILVA, 2009, 44-45), não constituía ainda um inimigo. Pode não ser vista como o modelo ideal, mas não expressa mais do que um desgosto com a realidade de não existir empresários “realmente liberais” como supunha72 – sem os quais é impossível

sustentar um discurso ideológico. Suas relações com o capital externo e a burguesia nacional eram mais ambíguas. Como foi a questão da reserva de mercado para computadores. Para Veja,

67 Veja, nº 974, 06/05/1987, 32. 68 Veja, nº 888, 11/09/1985, 112.

69 Índice Nacional de Preços ao Consumidor. 70 Veja, nº 955, 24/12/1986, 20.

71 Federação da Indústria do Estado de São Paulo.

72 “A unção do grupo de Amato [para a chefia da FIESP] põe por terra a mística do empresário liberal que por algum tempo rondou a FIESP – em geral, os empresários que se rotulavam liberais ou não tinham empresas, ou não eram tão liberais” (Veja, nº 896, 06/11/1985, 99).

inicialmente, “a indústria nacional de computadores mostra sua força e domina a Feira Internacional de Informática, em São Paulo”. No meio jornalístico o “jabá” predomina em todo tipo de matéria que se torna também um stand de produtos. Quem financiava Veja nesse momento não se oporia à reserva de mercado que seria imposta pelo governo em poucos anos. Essa matéria especial soa como uma declaração de capacidade do setor nacional de informática de tornar viável a reserva de mercado. A isso influencia a propaganda de computadores da Digital, como as constantes matérias sobre a bolsa, envoltas em comerciais da corretora do Banco Sudameris73. Essa posição só seria definitivamente negada com a matéria de capa “Reserva de

mercado: o que isso tem a ver com sua vida”, de 16/07/1986, quando ela fecha definitivamente com a burguesia ligada ao capital externo. Até lá havia uma burguesia nacional pagando publicidade em Veja num momento pouco anterior à reserva de mercado.

Serra já era influente nessa época, como FHC também, o que lhe valeu na cobertura da disputa pela prefeitura de SP, a famosa foto de capa, sentado na cadeira de prefeito74. Nem este

grupo e nem Veja haviam endossado o neoliberalismo dogmático em 1985. Essa foi uma construção demorada e o modelo ainda não era tão influente. Portanto a revista nem os grupos econômico-político-sociais alinhados se digladiavam ainda com a questão da hegemonia e de um novo consenso, como consta na matéria favorável “Primeiro recado: assessores de Tancredo querem cortar juros”, algo não muito liberal75 com Serra se colocando a favor da revisão da

dívida externa e um crítico do FMI. Seu apoio, espaço de propaganda e disseminação de ideias e orientação políticos era bem mais fragmentário do que no período pós-1989, assim sua atividade partidária também era reduzida.

Outra explicação plausível não seria a de um processo de radicalização ideológica e discursiva progressiva em torno do neoliberalismo, mas sua presença anterior seguida de um período de necessária “lua de mel” com o governo Sarney (um meio de comunicação que desde o primeiro dia de um novo governo pode perder credibilidade junto as fatias mais razoáveis de seu público). Isso explicaria o caráter menos ideologizado de suas matérias do período. Veja estava claramente ligada, ao menos parcialmente, aos interesses e ao projeto político-econômico que fora consenso anos a fio nos anos 1970 e início dos anos 1980.

73 Veja, nº 891, 02/10/1985, 88-90. 74 Veja, nº 878, 03/07/1985, capa; 20.

O discurso neoliberal como substituto ao antigo programa desenvolvimentista do regime militar e aos sucessivos pacotes dos anos 1980 se aprofunda com o tempo, mas ainda assim apresenta contradições, como em 1987: “menos blablablá: a diplomacia latino-americana começa a se afastar da retórica e tenta seguir o bom exemplo da Europa para enfrentar os problemas do continente”76 – na qual, apesar do título, aposta na união dos países endividados como forma de

renegociação da dívida externa – uma heresia. E na matéria ao lado: “atrás do lucro: governos privatizam para salvar a economia”:

Tradicionais adeptos do socialismo declaratório, das ditaduras de partido único e do gigantismo do Estado, vários países africanos nunca se preocuparam em exigir a lucratividade de suas empresas e, por anos a fio, desembolsaram milhões de dólares em empreendimentos improdutivos, mal administrados e que frequentemente prestavam serviços de péssima qualidade. Nações [...] sufocadas por dívidas externas [...], vastos déficits públicos e economias desordenadas – começam a ensaiar o enterro dos imensos paquidermes que elas próprias colocaram em seu caminho77.

Ou no uso da crise militar provocada pelo general Leônidas Pires Gonçalves, com uma mensagem clara: se a constituinte não se moderasse, um golpe militar iria ocorrer, ou a recusa de Sarney de promover para além dos discursos o corte de gastos78. O cenário internacional foi decisivo para essa mudança em Veja, com blocos econômicos em formação, como o NAFTA e a UE. Ocorria um crescente fortalecimento da ideologia neoliberal alicerçado em ações reais dos governos Reagan e Thatcher, e na necessidade de convencimento, seja para que povos hostis ou desconfiados passarem a viver juntos dentro da União Europeia, seja para a derrota de partidos com uma filiação política que poderiam perturbar esse roteiro. Ou como justificativa para um presidente que assumiu com a promessa de conter a crise na indústria americana mas procedeu à abertura para os produtos japoneses, como carros. Os meios de comunicação nos Estados Unidos, fossem cinema, TV ou jornais, apoiavam o discurso de Reagan, que previa o corte de impostos das grandes fortunas. Havia uma onda midiática e política conservadora e neoliberal percorrendo o mundo. Era do agrado de Veja e de seu público. Permitia um posto avançado nas pressões e formulações políticas. Isso permitiu e fomentou a escalada das reformulações na revista, que adotou uma linguagem ainda menos objetiva e mais adjetiva e passou a ser menos uma cobertura do noticiário do que uma revista de opinião.

76 Veja, nº 989, 19/08/1987, 34.

77 Atrás do lucro. Veja, nº 989, 19/08/1987, 37. 78 Veja, nº 991, 02/09/1987, 25; 89.

Fica clara uma maior militância de Veja com o passar do tempo. Isso seria devido às sucessivas falhas dos pacotes econômicos. Tal desempenho e decepção com o receituário antigo podiam oferecer alguma justificativa moral para sua nova opção econômica – que ainda era apenas uma opção política. Veja era uma entre muitas vozes discordantes e tinha consciência disso. Em 1989 a TV e não a revista possuía uma plateia mais vasta e uma área de cobertura maior. Veja, entretanto, tinha a força de repercussão das ideias, mas seu público era restrito à classe média e alguns empresários (apesar dela mesma ver nesse o seu nicho natural e os formadores de opinião mais importantes para dar ressonância à suas ideias. Eles tratariam de popularizá-las). Em 1986 pôde ainda fazer críticas ao plano que combatia a inflação mas que não promovia o crescimento econômico, como era caso do Plano Austral de Alfonsín79. Posteriormente, tal postura não tem mais espaço em seus editorais. O combate à inflação é mais importante que qualquer outra coisa, devido a sua maior aglutinação com o capital internacional, que precisava de estabilidade monetária (SILVA, 2009, 102-103).