• Nenhum resultado encontrado

O primeiro sovietólogo que aparece com frequência como fonte para Veja é Seweryn Bialer11. Sua primeira aparição nas páginas da revista, como a voz da autoridade emanada dos

11 Nascido em 1926, é professor emérito de ciência política na Universidade de Columbia e especialista em partidos comunistas da União Soviética e na Polônia. Nascido em Berlim, Bialer se juntou ao movimento antifascista clandestino em Lodz, na Polônia, em 1942. Entre fevereiro de 1944 e Maio de 1945, ele foi prisioneiro no campo de Auschwitz. De maio de 1945 a junho de 1956 (ano em que emigrou para o Ocidente), ele foi diretor da força policial da Polônia (Milicja Obywatelska). Em 1951, tornou-se professor do Instituto de Sociologia e Política e editor do jornal Trybuna Ludu. Em maio de 1981, depois que o presidente Reagan, na Notre Dame University, afirmou que o

especialistas (faz questão de alertar o leitor que Bialer é professor na Universidade de Columbia), foi tão cedo como o início de 198612. Suas participações se tornam cada vez mais frequentes no ano de 1987 e 198813. Bialer é um kreminologista adepto de uma teoria do totalitarismo mais

flexível e amena. O que era importante para que as informações da revista recebessem de seu público a chancela da credibilidade nessa fase de crise sistêmica mais branda do comunismo. Ainda assim, Bialer considera a URSS um Estado totalitário ao menos até a virada dos anos 1990 (BIALER, 1991, 105-106). Sua percepção de que a URSS ainda era um adversário formidável para o Ocidente ou que as reformas de Gorbachev eram sobretudo cosméticas, e, posteriormente, fadadas ao fracasso, é absorvida pela revista ao fazer seus prognósticos.

Timothy Garton Ash14 foi usado como o correspondente que Veja não possuía no Leste Europeu no momento da queda em efeito dominó dos regimes da região. A revista enviou repórteres para cobrir os avanços da perestroika em julho de 1987 e as reformas de mercado e de pluralismo político húngaras de meados de 1989. Mas estava desprevenida quando uma sucessão ininterrupta de eventos se desenrolou: quando Tadeusz Mazowiecki, do Solidariedade, tornou-se primeiro ministro da Polônia, em agosto de 1989; quando o muro de Berlim caiu em outubro; quando o governo húngaro permitiu eleições pluripartidárias em outubro; a Revolução de Veludo na Tchecoslováquia entre novembro e dezembro de 1989, a revista não possuía qualquer enviado especial. Os artigos de Ash para o The Gardian, publicados rapidamente de forma a acompanhar o rápido processo revolucionário, ou “refolucionário”, uma mistura de reforma e revolução (ASH, 1990, 16), como o autor prefere, foram muito importantes para a revista. Com a deterioração da situação econômica e política da região, uma visão mais radical do totalitarismo podia ser aceitado como factível e real. Ash, com seu modelo de totalitarismo forjado sobre seus objetivos prediletos – ditaduras do Leste Europeu e os sistemas de segurança internos – era o jornalista-sovietólogo perfeito para a revista.

comunismo era “um capítulo triste e bizarro na história humana cujas últimas páginas estão agora mesmo sendo escritas”, Bialer contradisse Reagan em um artigo na Foreign Affairs: “A União Soviética não está passando agora e nem passará até meados da próxima década por uma verdadeira crise sistêmica, pois dispõe de enormes reservas não utilizadas e de estabilidade política e social suficientes para suportar as mais profundas dificuldades” (STEELE, 1992, 396).

12 SANTA CRUZ, Selma. A ascensão de Gorbachev. Veja, nº 904, 01/01/1986, 72.

13 TOLEDO, Roberto Pompeu. A revolução de Gorbachev. Veja, nº 986, 29/07/1987, 49; BIALER, Seweryn. Por trás da glasnost. Veja, nº 1031, 08/06/1988, 58-63.

14 Timothy Garton Ash, nascido em 12 de julho de 1955, é um historiador britânico, autor e comentarista de jornais. Seus temas são as ditaduras comunistas da Europa Oriental e as polícias secretas desses regimes, as revoluções de 1989 e a transformação do antigo bloco soviético europeu em estados membros da União Europeia.

Timothy Ash, mesmo sendo colunista de um jornal britânico de centro-esquerda liberal, o The Guardian, também é um entusiástico adepto da teoria totalitária, sendo perfeitamente assimilável por Veja ao se tratar da Europa Oriental. A primeira vez que Veja fez uso do historiador britânico em suas matérias foi na propaganda de seu livro Nós, o povo: a Revolução de 1989 em Varsóvia, Budapeste, Berlim e Praga em sua seção de leitura15; também como um reforço para as suas posições pró-Mazowiecki e anti-Walesa, que é justificada pela própria revista um pouco antes, logo abaixo do título “tucanos poloneses”: “a agremiação política de Mazowiecki, Road, nascida de uma divisão do próprio Solidariedade e do Fórum da Direita Democrática, é um pouco como o PSDB, o partido brasileiro dos tucanos: tem ótimas ideias, candidatos de prestígio e pencas de intelectuais, mas lhe faltam votos”16; novamente na questão das eleições polonesas entre o intelectual e o sindicalista símbolos do fraturado Solidariedade17; no uso do termo “barão vermelho” (Veja também usa o de “caciques comunistas”) para descrever o processo de apropriação pelo antigo aparato do regime, no caso polonês, das estatais que foram privatizadas18, ou para afirmar que as peças teatrais de Vaclav Havel são importantes não como

arte, já que são fracas, mas historicamente admiráveis, como parte do combate ao comunismo na Tchecoslováquia19. É usado até mesmo como parte de seu saudosismo da estabilidade política do mundo da Guerra Fria, ao citá-lo sobre a Guerra do Golfo: “com o fim da guerra fria [sic], os países ocidentais deixaram de ter medo de uma retaliação nuclear: já voltaram a guerrear à vontade”20.

Zbigniew K. Brzezinski21, o mais radical dos adeptos do totalitarismo, a ponto de afirmar que, por serem totalitários, “comunismo, fascismo e nazismo eram genericamente

15 Primavera no Leste. Veja, nº 1142, 08/08/1990, 88-90. 16 Duelo de gigantes. Veja, nº 1152, 17/10/1990, 48.

17 ALTMAN, Fábio. A caneta contra o martelo. Veja, nº 1157, 21/11/1990, 49. 18 Idem, 50-51.

19 NERY, Mario. Caça os burocratas. Veja, nº 1181, 08/05/1991, 97. 20 Veja, nº 1167, 30/01/1991, 50.

21 Zbigniew Kazimierz Brzezinski, nascido em 1928, é um cientista político polonês, que fez carreira nos Estados Unidos, geoestratega e estadista que serviu como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter, de 1977 a 1981. Os maiores eventos da política externa durante o seu mandato incluíram a normalização das relações com a República Popular da China (e do afastamento da República da China ou Formosa ou Taiwan – ambos processos iniciados com Nixon e Kissinger); a assinatura do segundo Tratado de Limitação de Armas Estratégicas (SALT II); a campanha diplomática dos direitos humanos, a fim de minar a influência e imagem internacionais da União Soviética; o financiamento dos mujahideen no Afeganistão. Após a vitória eleitoral em 1976, Carter fez de Brzezinski Conselheiro de Segurança Nacional. Fez o uso das cláusulas dos Acordos de Helsinque pra apoiar os dissidentes soviéticos. A União Soviética queixou-se que esta retórica ia contra a détente que Nixon e Kissinger haviam estabelecido com Brejnev. Brzezinski deparou-se com membros do seu próprio partidoque não concordaram com essa interpretação da détente, incluindo o Secretário de Estado, Cyrus Vance. Vance defendeu uma ênfase

relacionados, historicamente ligados e politicamente bastante similares” – cepas de uma mesma planta, inimiga das democracias ocidentais (BRZEZINSKI, 1990, 20), tornou-se, a partir de fins de 1989 e no ano de 1990 o grande oráculo para Veja. É por meio dele que a revista faz sua avaliação (ou extrai ideias) do regime, de seu passado, dos cenários possíveis para seu futuro. É o momento em que a Polônia adota o Plano Balcerowicz e a URSS tenta emplacar o Plano dos 500 dias – a terapia do choque é imposta sobre a antiga terra dos sovietes. Não só o que a própria revista convencionou chamar de comunismo, mas o socialismo (exceto a experiência espanhola de livre mercado, vista como modelo), o Estado de Bem-Estar Social ou o desenvolvimentismo e estatismo são confinados como projetos análogos. Todos compartilham do “grande fracasso” comunista diante da vitória da livre empresa, como assinala Brzezinski. Veja não se encanta apenas pelas ideias vindas do ex-professor de Columbia. Ele é mais que um especialista confiável e responsável. Ele participou do combate efetivo ao comunismo enquanto assessor em diferentes funções dos presidentes Carter, Reagan e Bush. O que, a partir da desintegração dos regimes do Leste Europeu, mas não antes, teria sido visto como fraqueza, como um acovardamento frente ao inimigo, que é como a administração democrata de Carter passou a ser retratada pelos republicanos conservadores, foi resolvida pelo próprio Brzezinski ao romper com os democratas e alinhar-se com os republicanos e o agressivo discurso de Reagan. Isso permitiu a Brzezinski fugir da impressão causada pela administração Carter de que ninguém em seu governo entendia de fato os soviéticos (HOBSBAWM, 2001, 242), que foi o mote de campanha de Reagan em 1980 – os acordos SALT II, dos quais Brzezinski tomou parte, limitavam o número de armas nucleares em um patamar igual para as duas superpotências, o que, para os reaganistas, era a razão da paridade nuclear alcançada pelos soviéticos e uma derrota estratégica para os EUA (WEILER; PEARCE, 1992, 187).

menor na questão dos direitos humanos dos dissidentes, a fim de obter dos soviéticos a aceitação dos acordos SALT. Vance procurou continuar o estilo de distensão projetado por Nixon e Kissinger, com foco no controle de armas. Brzezinski acreditava que a distensão encorajara os soviéticos a estabeler sua presença em Angola e no Oriente Médio, e por isso defendeu um uso maior da força militar e a ênfase na questão dos direitos humanos. Com um novo clima de insegurança, Brzezinski defendeu o acúmulo de novas armas e o desenvolvimento de forças de intervenção ligerias - políticas que hoje são geralmente associados com Ronald Reagan. Em 1980, Brzezinski planejou a Operação Eagle Claw, para libertar os reféns na embaixada americana no Irã, usando a recém-criada Delta Force e outras unidades das Forças Especiais. A missão foi um fracasso e levou à renúncia do secretário Vance, como foi também um dos fatores da derrota de Carter na corrida para a reeleição. Com o fim da administração Carter nao se manteve afastado dos assuntos de Estado. Entrou em relação com a administração Reagan e foi assessor do vice- presidente George H. W. Bush (BRZEZINSKI, 1983; WILENTZ, 2008).

Não se pode deixar de avaliar a mudança de visão de Brzezinski sobre o comunismo da Europa Oriental no seu Ideologia e poder na União Soviética, de 1962, e em O grande fracasso, de 1988. A teoria do totalitarismo e a retórica anticomunista ganharam ainda mais impulso. Ocorre também a absorção do discurso reaganista antissoviético. A visão mais branda no primeiro livro é decorrente da inquestionável desestalinização, reforma e dinamismo econômicos. E, como ele mesmo tem que reconhecer, essa ampliação da visão negativa do legado e história do comunismo, ou mesmo da pertinência dos Estados socialistas, foi motivada pela confirmação dessa mesma visão pela própria liderança soviética, e em menor medida, dos reformadores chineses (BRZEZINSKI, 1990, 251) de antes do massacre da Praça da Paz Celestial (um evento que marcou a saída de alguns reformistas da cena política, às vezes mesmo para a prisão, e um abandono das críticas ao passado do regime e do significado de Mao Tsé-tung).

Mesmo sendo um político democrata, após o governo Carter, Brzezinski tentou se descolar da impressão de fracasso, ou, segundo o público interno, de fraqueza na condução da política externa americana (que ele mesmo elaborou) por não se opor firmemente contra a URSS. Além disso, ocorreu sua ruptura com o partido Democrata e sua aproximação com o partido Republicano, recebendo do presidente Reagan e do vice-presidente Bush vários cargos e missões (BRZEZINSKI, 1983, 23). A retórica reaganista precisava se fazer presente na obra do acadêmico de Columbia. Se Carter rendeu elogios ao escritor que deveria ocupar a mesma posição de Kissinger e de sua política bem-sucedida de diplomacia triangular, agora a eloquência de Reagan deveria ter algum respaldo nos meios acadêmicos. Para Veja, Brzezinski é um “analista tarimbado”, uma vez que é polonês emigrado e assessor do governo Jimmy Carter. É ele que ela cita ao afirmar que a Polônia pode desestabilizar as reformas de Gorbachev, pois se ela se rebelar novamente, como tantas outras vezes, Gorbachev seria obrigado a invadi-la com as tropas do Pacto de Varsóvia, e essa ação conservadora poria fim às suas tentativas de reforma22. É

Brzezinski e as ideias de seu livro “O grande fracasso”, prestes a ser lançado, mas que já constituía a temática das notas do autor para a impressa que o procurava como sovietólogo, que usa para explicar e escalar a importância dos crescentes conflitos nacionalistas, por ocasião do massacre em Tiblisi. “A questão das nacionalidades é o calcanhar-de-aquiles da perestroika”23,

ou, como o próprio autor diz, “o problema nacional é claramente o calcanhar-de-aquiles da

22 Pela perestroika. Veja, nº 1027, 11/05/1988, 60-61. 23 Tremores no império. Veja, nº 1076, 19/04/1989, 55.

perestroika” (BRZEZINSKI, 1990, 106), ou que Gorbachev não permitiria a independência da Lituânia pois seria abrir a porta para a desintegração política da URSS, ou como Veja diz, ao citá- lo, “o separatismo vai se espalhar como o fogo na floresta”24. Também o menciona para explicar

os dilemas dos Estados Unidos frente a política de “casa comum europeia” de Gorbachev, que, segundo a revista e o sovietólogo, significava uma Europa sem a presença americana, e daí a necessidade de “uma Europa dos Urais à Califórnia”25. A revista elogia seu oráculo, o “Salieri26

da política internacional”, apontando seus dotes para perfeitos prognósticos:

A sorte de Brzezinski começou a virar no final de 1989, quando o Muro de Berlim ainda estava de pé. Enquanto Kissinger dizia que as mudanças no mundo comunista “virão de uma forma lenta e ambivalente”, Brzezinski previa que a Rússia “será levada de volta às suas fronteiras do século XVII27” e que não só o império soviético estava condenado à morte, mas a própria URSS corria o risco de ser “libanizada”. “Zbig”, com suas ideias audaciosas, estava de volta28.

É provável que, para a revista, a participação mais inusitada de Brzezinski em suas páginas tenha sido a citação de suas previsões pelos grupos políticos que ela prefere chamar de comunistas adeptos da lei e da ordem:

Dos três elementos de seu projeto – mercado, socialismo e governo forte – o que Kramarenko gosta mesmo é do último. “Se aparecer um mercado livre, com cada um fazendo o que quiser, o Estado estará morto. Vai acontecer o que o professor Brzezinski previu: a URSS virará um Alto Volta com armas nucleares. Nós temos uma História muito grande e muito rica, isso não vai acontecer”, arremata”29.

Outros analistas aparecem em suas páginas, inclusive soviéticos, desde que alinhados com a perestroika, ou, preferencialmente, com os grupos que promoviam pressão pela aceleração nas reformas rumo ao mercado, como o historiador Yuri Afanassiev, aludido pela revista em três ocasiões: para condenar os Processos de Moscou como criminosos30, para fazer um alerta sobre a intensificação e radicalização das manifestações populares no Báltico31 e da formação de seu

partido de tipo socialdemocrata32. O general e historiador Dmitri Volkogonov tem seu livro

Stálin: tragédia e triunfo comentado pela revista em sua seção de livros, a medida que faz críticas

24 Torniquete russo. Veja, nº 1127, 25/04/1990, 35. 25 Paradoxo americano. Veja, nº 1131, 23/05/1990, 44.

26 A revista se refere não ao Antonio Salieri histórico, mas ao personagem intrigante e invejoso que fazia de tudo para apagar a estrela rival de Mozart, no filme de 1984 de Peter Shaffer, Amadeus.

27 Que, de fato, se assemelham as fronteiras russas atuais, destituídas das outras 14 ex-repúblicas soviéticas. 28 GASPARI, Élio. O duelo dos titãs. Veja, nº 1163, 02/01/1991, 30-31.

29 GASPARI, Élio A segunda Revolução Russa. Veja, nº 1191, 17/07/1991, 46. 30 A volta do leão. Veja, nº 993, 16/09/1987, 41.

31 Hora de conversar. Veja, nº 1043, 31/08/1988, 40. 32 Operação Resgate. Veja, nº 1133, 06/06/1990, 48.

à condução do país por Stalin durante a Segunda Guerra e pelos expurgos promovidos no exército33. O poeta siberiano Yevgeny Yevtuchenko merece uma entrevista nas páginas amarelas, porém desaponta a revista por seu excesso de zelo de uma glasnost que não incomoda ao Kremlin34. Entretanto, os analistas soviéticos raramente aparecem fazendo prognósticos. Talvez por não considerá-los adequadamente confiáveis. A exceção parece ser o economista Stanislav Shatalin, que aparece como “um dos mais expressivos economistas do país”, por ocasião da aprovação do seu plano de privatização em 500 dias por Gorbachev35. Ela apoia o plano de ação que ele traça para Gorbachev após o Golpe de Agosto de 1991:

Comemorando o que chamou de “dia mais feliz da minha vida”, Stanislav Shatalin [...] encarou de frente o problema. “Esse é o fim do comunismo. O partido precisa ser varrido para fora do poder de uma vez por todas”, disse ele. “Se Gorbachev não romper com o partido, vai perder todo o apoio”36.

Para cada momento da trajetória das reformas, a revista teve um analista favorito, que se encaixava de maneira que seu discurso aparentasse ser mais palpável, bem como alinhado com as tendências do jornalismo conservador no exterior. Esses três autores proporcionaram a Veja a autoridade provinda da academia, pontos de vista muito semelhantes ao seu, o material discursivo e ideias que ela mesma não foi capaz de produzir – pelo menos não na mesma qualidade – são indubitavelmente especialistas confiáveis e respeitáveis (na caracterização sociológica feita por Bourdieu), e a facilidade de escreverem para periódicos ou colunas ou serem entrevistados em jornais com circulação global, livrando os editores e redatores de Veja de terem que ler seus longos livros, substituídos por breves e leves trechos de conferências para a imprensa ou quando muito, artigos de uma página de jornal, publicados, no máximo, poucos dias antes da edição semanal da revista. Eles também evocam a mudança da visão da revista Veja sobre o Leste Europeu. Se no início Bialer, que é adepto de uma perspectiva mais tênue da teoria do totalitarismo, falando até mesmo em flexibilidade política no tratamento do Estado com seus cidadãos (BIALER, 1981, 212), é quem destoa em suas reportagens, a partir de 1989 são Brzezinski e Ash, defensores da noção de um rígido esquema de totalitarismo, que preenchem suas páginas. O que era um discurso de Reagan, que antes era encaixado no mundo das bravatas

33 Golpe de papel. Veja, nº 1034, 29/06/1988, 66-67.

34 YEVTUCHENKO, Yevgeny. A liberdade chegou. Veja, nº 965, 04/03/1987, 5-8. Entrevista por Mário Sérgio Conti.

35 Pão e planos. Veja, nº 1148, 19/09/1990, 53.

políticas, foi lentamente se tornando a verdade objetiva para Veja e a retórica de liberais e conservadores. A acusação de que a URSS era o “império do mal” inicialmente era vista primordialmente como uma arenga formulada por Reagan diante de uma convenção evangélica num hotel em Orlando, em março de 1983 (KENGOR, 2006, 174), e que tentava canalizar politicamente a crise da derrubada do voo 007 da Korean Airlines pelos soviéticos. No fim da década, para estes setores, era o melhor quadro explicativo para o bloco soviético. Havia deixado o campo da arena política para tornar-se uma definição funcional.

Alguns termos se disseminaram entre os meios da imprensa e da política. É o caso da demarcação de bizarro para o sistema soviético. Uma palavra persistente nos discursos de Reagan e na caracterização feita por Brzezinski ou Veja. Quando a revista fala sobre a “bizarrice” da URSS pela primeira vez, ela cita as frases públicas de Ronald Reagan37, e não a Brzezinski, e ambos usaram a expressão em frases bem parecidas38. Os dois últimos bebem na fonte do primeiro. Portanto, devemos marcar o discurso de Veja como oriundo dos discursos políticos de Reagan, ou, mais precisamente, dos assessores que escreviam para Reagan suas prédicas (HOBSBAWM, 2001, 246). Deve-se procurar aí a origem da terminologia que os grupos neoliberais e conservadores usam nos anos 1980. A revista passa a usar o termo bem depois dos discursos de Reagan ou dos artigos de Brzezinski. Mas ela passa gradualmente a absorver as mesmas expressões. Já que comunga do mesmo substrato ideológico, em algum momento Veja precisa buscar orientação e fórmulas entre os destaques dessas correntes de pensamento político e econômico. O momento chave é o ano de 1991, onde ela se refere ao termo, por exemplo, “mastodôntico”, ao setor estatal em processo de privatização na URSS39, ou o orçamento e as

estatais do Brasil40. As imagens retóricas reaganistas também receberam definições parecidas como “mamute” ou similares de uso mais comum na língua portuguesa, como “elefante branco”. Estatais, fossem soviéticas ou brasileiras, passaram a ser um sinônimo, para Veja, dos termos expostos acima41. De fato, a elevação de Reagan ao status de oráculo não pode ser creditada

37 Caça ao dragão em Moscou. Veja, nº 1031, 08/06/1988, 55.

38 Reagan, para Veja, era “o homem que previu que no futuro o comunismo seria lembrado apenas como “um capítulo triste e um tanto bizarro da História da humanidade’” (Caça ao dragão em Moscou. Veja, nº 1031, 08/06/1988, 55). Para Brzezinski, a bizarrice e morte anunciada do sistema permaneceria igualmente em sua