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Em 1985 o anticomunismo militante de Reagan ainda estava em processo de elaboração. Muitas de suas críticas ainda não haviam sido assimiladas pela mídia e nem respaldadas por suficientes membros da academia que poderiam lhe conferir autoridade. Brzezinski, como assessor secundário de Reagan, se engajou para que a campanha diplomática pelos direitos humanos no Leste Europeu, criada no governo anterior à Reagan, de Jimmy Carter, fosse mantido (BRZEZINSKI, 1990, 260), ao lado das ações militares de Reagan. Assim, boa parte do discurso de combate ao comunismo era ainda o mesmo dos tempos de Carter. Os mecanismos para

justificativa e imposição de embargos comerciais eram os mesmos consagrados nos Tratados de Helsinki (BIALER; JERVIS, 1991, 205; SUNY, 2006, 512), assinados por Carter e Brejnev, apesar do maior empenho de Reagan para fortalecer o embargo com a adesão de mais países desenvolvidos. A presença do discurso reaganista aumenta em Veja a partir de 1987. Ao mesmo tempo, a maior parte da retórica soviética também estava presa aos mesmos chavões e fórmulas da época de Brejnev (BROWN, 1996, 15). Na imprensa havia muito mais continuidade com assuntos da época da détente ou da crise dos euromísseis.

O anticomunismo na imprensa pós-1988 caracterizava-se pelo foco sobre o conjunto da população, acossada por um regime de inaudito e contínuo terror, dentro de um sistema de completa ditadura totalitária, com seu esmagador Estado, em 1985 o cenário era bem diferente. As preocupações de Veja na crítica ao sistema do socialismo real eram um reforço dos mesmos pontos sempre relembrados pelo Estado americano e a imprensa conservadora dos Estados Unidos. Estes pontos eram o tratamento dispensado aos dissidentes e aos refuseniks. Apontar toda a população como prisioneira era ferir a realidade perceptível. Deserções de atletas, cientistas e militares eram raras (apesar de, em geral, sensacionais e estrepitosas, quando aconteciam). A participação, ou frequência, popular em órgãos como a Juventude Comunista, os grupos de discussão e recreação das fábricas, de colônias de férias do Estado, eram altas (FERRO, 1981, 94). Era, porém, perfeitamente factível com o caso de ambos os grupos. Os refuseniks, manifestantes judeus que não conseguiam obter os documentos necessários para a emigração legalizada do país, pretendiam fixar-se em Israel (BROWN, 2010, 407-408), e ao contrário de outros grupos nacionalistas da época (CLAUDÍN, 1983, 66-67), como os alemães do Volga ou os tártaros, suas ações tinham respaldo junto à mídia ocidental. Se no Ocidente eram chamados por refuseniks, na URSS eram conhecidos por sionistas (BEISSINGER, 2004, 335; CLAUDÍN, 1983, 78). Os dissidentes, se não queriam a imigração, exigiam menos burocracia e dificuldades legais para viajar com destino ao exterior. Em 1985, em Genebra, é das manifestações de apoio aos dissidentes que a revista expõe fotos e menciona271. Era sobre eles que a máquina de repressão do Estado agia, e não sobre toda a população. Porém essa visão vai se alargando paulatinamente. Além destes, fugas através do Muro de Berlim272 ou manifestações religiosas273 quase nunca são expostas em suas páginas nesse período.

271 Feira de protestos. Veja, nº 899, 27/11/1985, 76. 272 Herói por dois dias. Veja, nº 935, 06/08/1986, 56. 273 Silêncio rompido. Veja, nº 879, 10/07/1985, 42.

Assim ocorre a “liberação” de Yelena Bonner, mulher do famoso dissidente Andrei Sakharov, para tratamento de saúde no Ocidente, após “inúmeras greves de fome” do marido, uma vez que o país não contaria com a tecnologia médica para tratá-la do glaucoma. Os EUA se dispuseram a praticar o humanitarismo que faltaria à URSS com seus próprios cidadãos. Se dispôs a trocar espiões soviéticos capturados por cidadãos soviéticos dissidentes274. Veja só não trata da importância que cientistas soviéticos envolvidos com o complexo industrial-militar275, como Sakharov e Scharansky, teriam para a inteligência americana. O caso Sakharov frequentemente volta à baia, inclusive como uma amostra da fraqueza e da superficialidade da glasnost, como na matéria “Mudez eloquente”.

Se a intenção do governo soviético era apresentar ao mundo uma imagem mais liberal de seu país, ao permitir finalmente que Yelena Bonner, mulher do físico dissidente Andrei Sakharov, viajasse ao Ocidente para submeter-se a tratamento médico, o resultado foi exatamente o oposto276.

Foi obrigada a assinar um termo de não fazer comentários públicos, porém repetiu diversas vezes frente às câmeras ocidentais o gesto de pôr o dedo sobre os lábios, seus parentes emigrados acusaram a KGB de fazer seu marido comer à força, de adulterar suas fotos para mostra-lo mais saudável e menos magro, de separá-lo da mulher pelo regime estabelecido no hospital em que fez as greves de fome, de censurar e falsificar o conteúdo das cartas para apresentar uma situação mais confortável. Se faz uma lista dos expedientes utilizados pela polícia secreta, também deixa claro que estes são usados apenas contra uma pequena parcela da população, que faz oposição ao regime.

Após guardar silêncio nos três primeiros dias no estrangeiro, ao chegar nos EUA passou a escrever artigos e dar entrevistas numa “formidável barragem de denúncias contra o regime comunista” onde “marcou nitidamente sua oposição ao comunismo”. Bonner agora “passou a ser a ovelha negra, num momento em que a propaganda oficial procura construir a imagem de um Sakharov cordato e disposto a abrir mão de sua militância contra o regime, para livrar-se da

274 Veja, nº 896, 06/11/1985, 58.

275 Termo usado por Veja (Caça ao dragão em Moscou. Veja, nº 1031, 08/06/1988, 55) e por outros autores (BROWN, 1996, 212; LEWIN, 2007; SEGRILLO, 2000, 333; RODRIGUES, 2006, 90). A autonomia e participação orçamentária do setor na economia, sua representação no Kremlin, o grau de prioridade conferido, suas técnicas próprias de gestão diferenciadas dos demais setores econômicos do país (como o uso de concorrência entre empresas para o recebimento de projetos e de recursos), a tremenda luta política travada entre as diversas facções do PCUS para contê-lo – vinda desde a morte de Stalin e com desfechos tão importantes quanto a vitória dos reformadores de Kruschev sobre o conservador grupo antipartido, atribuem ao termo sua aplicabilidade à realidade soviética.

solidão em Gorki”. O que poderia ser um gesto de boa vontade, na verdade se trataria de dobrar o espírito de contestação, bem típico ao regime. Ou, como a própria mulher de Sakharov diz, “de tanto sermos seguidos às escondidas, sinto-me como um micróbio numa lâmina sob um microscópio [...] é uma sensação terrível”. Um micróbio diminuto frente ao Estado e sob observação escrutinadora do aparelho da KGB277. Esses temas seriam relembrados com a entrevista de Bonner nas páginas amarelas278.

Um caso abordado pela revista uniu a imagem tanto dos dissidentes quanto a dos refuseniks279. Depois de nove anos de prisão, o dissidente soviético Anatoly Scharansky, de

ascendência judaica e antigo membro de centros soviéticos de matemática e informática, deveria ser libertado numa troca de espiões. Mesmo com a acusação formal de traição e espionagem para a CIA em seu processo, “tudo nele, porém, forma a imagem típica do prisioneiro de consciência”. O mesmo ocorre com Scharansky. Não há qualquer menção ao seu alegado envolvimento com o atentado de 1977 ao metrô de Moscou (DANIELS, 2007, 349). Como de costume, as acusações do lado inimigo nunca valem para nada a não ser como pista de uma verdade inversa e ocultada. Na foto que ilustra a matéria, manifestantes com um cartaz de Scharansky, com a frase em inglês “deixe meu povo ir”. Trata-se de um Moisés contra o pérfido e despótico faraó soviético. Veja traça também um histórico da atuação americana pela liberdade dos dissidentes soviéticos através de trocas de cidadãos por espiões.

A glasnost, citada por Veja no termo russo pela primeira vez na segunda metade de 1986280, seria um movimento restrito apenas a uma maior liberdade de circulação de informação, principalmente no campo da informática, onde o atraso soviético e as dificuldades de controle estatal mais se faziam notáveis. Os direitos humanos, a liberdade de consciência, uma oposição não-organizada constituída pelos dissidentes – que, ao contrário da visão de uma sociedade atomizada por parte de Veja e dos teóricos do totalitarismo, talvez nem sequer tão desorganizada assim fosse (DANIELS, 2007, 348) –, continuaria fora dos planos de reforma. “Passados dezesseis meses, são cada vez mais frequentes os sinais de que, pelo menos no que diz respeito à informação, Gorbachev está tentando passar da palavra aos atos. Os dissidentes continuam

277 Linha dura. Veja, nº 926, 04/07/1986, 64. 278 Caminho de volta. Veja, nº 955, 24/12/1986, 5-8. 279 Veja, nº 910, 12/02/1986, 24-25.

silenciados e não se admitem críticas ao regime”281. Tal visão teve que ser alterada diante das mudanças provocadas pela abertura:

Num gesto francamente revolucionário dentro de um regime em que a reabilitação dos que caem em desgraça costuma ser quase secreta – e muitas vezes póstuma -, Gorbachev comunicou [...] que finalmente estava livre da punição que pesava contra ele há quase sete anos. E não parou por aí a intervenção de Gorbachev, que o colocou imediatamente na posição do líder comunista mais ousado no caminho da liberalização do regime em qualquer época282.

Com um telefonema, o secretário-geral libertava Sakharov do exílio interno na cidade de Gorki. “Mantê-lo nessa cidade, à qual os estrangeiros não tem acesso, era como cotar-lhe [sic] o ar em suas atividades em favor dos direitos humanos”. Ainda assim, a atitude de Gorbachev, para Veja, não era uma dádiva. “Alguns ainda veem sombras no processo soviético. Para Anatoly Scharanski” libertado no início do ano, “a URSS de Gorbachev é “ainda pior” do que era antes”. A libertação de Sakharov se deu uma semana após a morte em greve de fome do dissidente Anatoly Marchenko. Como Veja mesma afirma, uma coisa pode ter somente “compensada” a outra. “Em todo caso, o fato é que algo se move na URSS de Gorbachev”283. Outro dissidente a

quem Veja dá voz é Leonid Pliutsch, que aponta que Gorbachev estaria fazendo uma maquiagem do sistema, “a impressão de que quer mudar para não mudar nada”. Para ele, Gorbachev seria um Stalin por dentro e um Kruschev por fora. “Um tipo desses é até mais perigoso”. Porém a glasnost está aliviando a vida dos dissidentes que continuam na URSS. As leis de “propaganda e calunia contra a URSS, dois “crimes contra o Estado” nos quais é enquadrada a maioria dos dissidentes” estava em revisão. Há ventos de mudança, como o título da matéria aponta. Podem até se tornar um furacão, mas ainda são feitos de vento284.

Na reportagem “Ponte para Israel: URSS pode autorizar êxodo em massa”, os Tratados de Helsinque e a legislação comercial estadunidense são levantados como a razão da abertura das fronteiras do país pra a saída de parte da minoria judia.

Como a legislação americana condiciona o comércio com a União Soviética à liberalização da política de emigração, as trocas entre os dois países sofreram um declínio proporcional ao de vistos [de emigração]. Ao abrir as fronteiras, ainda que fugazmente, os soviéticos se beneficiariam de uma reativação na pauta comercial285.

281 A tesoura perde o fio. Veja, nº 931, 09/07/1986, 36. 282 Caminho de volta. Veja, nº 955, 24/12/1986, 42. 283 Caminho de volta. Veja, nº 955, 24/12/1986, 42. 284 Ventos da mudança. Veja, nº 961, 04/02/1987, 45. 285 Ponte para Israel. Veja, nº 904, 01/01/1986, 46.

Se há embargo à URSS, este é automático e reativo, unicamente porque esta desrespeitou os acordos internacionais sobre os direitos humanos que ela própria assinou. Os EUA confirmam seu papel de polícia do mundo e defensores da liberdade, de vitória moral e diplomática sobre os soviéticos. E a intenção destes é de tirar vantagem sobre os Estados Unidos e a comunidade internacional, uma vez que o que fizeram foi visando os resultados práticos do comércio e não as pessoas, confirmando seu papel de indiferentes à humanidade.

O primeiro baque para a revista foi provocado pelas declarações de autoridades do círculo gorbachevista, que provocaram comoção. Na reunião de cúpula em Reykjavík, Samuel Zivs, da Associação dos Juristas da União Soviética, respondeu a uma pergunta feita pela imprensa ocidental sobre os presos políticos em seu país. “Na União Soviética não fazemos distinção entre presos políticos e criminosos comuns”. A resposta-padrão das autoridades era a de que não existiriam presos políticos, e sim que todos eram criminosos (ENGLISH, 2000, 223). Veja pergunta se Zivs teria cometido uma gafe ou se estaria admitindo publicamente a existência de prisioneiros de opinião.

Samuel Zivs é de estilo mais rude, tanto nos ternos como no sotaque do seu inglês, e deixava-se levar por trilhas sem muita volta quando discorria sobre a especialidade que, como jurista, lhe cabia defender – os direitos humanos, particularmente o direito dos judeus a emigrar. “Na União Soviética nós só não deixamos sair do país aquelas pessoas que, por sua profissão ou sua posição, são portadoras de segredos tidos como de segurança nacional”, disse ele [...] “Mas como podem ser tantas as pessoas portadoras de segredo?”, insistiram os repórteres, referindo-se ao grande número de pedidos de emigração não atendidos. [...] Fingir-se de desentendido era sua maneira de escapar286.

Os judeus refuseniks se enquadravam melhor na antiga ideia, ainda czarista, de “prisão de povos”, já que era o único movimento de contestação com caráter nacional nos anos 1970 e até a segunda metade dos 1980. Mas um novo fluxo de imigração parecia abalar essa convicção da imprensa. É o caso da reportagem “filhos pródigos: Moscou recebe de volta emigrantes saudosos”.

Sacudida desde 1985 por uma série de inovações impensáveis há até pouco tempo, a União Soviética está agora diante de mais uma novidade da era inaugurada com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao poder: a volta de emigrantes arrependidos [...] soviéticos que se desiludiram com a vida nos Estados Unidos e decidiram voltar [...] sete dos recém-chegados tinham se naturalizado americanos e a grande maioria é formada por judeus.

As principais razões para a volta variam, mas as principais são a saudade, a falta de adaptação e o desencanto com a vida nos Estados Unidos; “Que tipo de liberdade é essa que existe nos Estados Unidos, onde se vive preocupado com a moradia, com as contas

todos os meses e tudo o mais?”, perguntou ao desembarcar em Moscou o pintor Valery Klever, de Leningrado, que emigrou com a família em 1977. Outros disseram que encontraram dificuldades no trabalho – muitos experimentaram o desemprego – e tinham medo da violência urbana [...].

Indagado sobre a razão por que os pedidos demoram tanto a ser atendidos, Gerasimov disse que é preciso encontrar casa e trabalho para as pessoas que querem voltar287.

Inicialmente parece ser a exceção à regra. Depoimentos das pessoas desenganadas com o modelo estadunidense e a liberdade no sistema capitalista, mas o fim do texto prova o contrário: não havia liberdade para sair da URSS, e agora, mesmo com o fluxo de emigrados, há morosidade na permissão de volta e ainda existe a falta de liberdade que alguns pedem como garantia para seu retorno, como o diretor de teatro Yuri Lyubmov. A primeira vista ela apresenta uma cobertura imparcial com a vinculação desta matéria, mas a sugestão que passa é a de que a mente das pessoas permaneceu cativa, ao contrário de seus corpos, e por isso não se adaptaram no estrangeiro. Os perseguidos pelo regime seriam, portanto, de um número limitado. Em 1988 Veja necessitou precisar melhor esses números e enfrentar um duro golpe em sua argumentação. O Kremlin iria liberar todos os presos políticos até o fim do ano.

Pelo caminho enviesado que costuma trilhar quando estão em jogo questões embaraçosas, o Kremlin emitiu, na semana passada, sinais de que está disposto a extirpar um hábito que, fora da União Soviética, passou a simbolizar o país [...] o envio, para longas temporadas na prisão, de todos aqueles que discordam das práticas do regime288.

Entidades internacionais preferem esperar pelos acontecimentos, mas “os fatos, porém, reforçam a ideia de que a extinção dos traços que ainda restam dos gulags – os sinistros campos de prisioneiros onde o ditador Josef Stalin aniquilou milhões de seus opositores [...] são bem mais que uma simples esperança”. Os 600 prisioneiros políticos de 1986 foram reduzidos a menos da metade em 1987. Uma comissão de psiquiatras estadunidenses vai inspecionar os manicômios soviéticos para atender ao pedido de reintegração à Associação Mundial de Psiquiatria, da qual foi expulsa em 1983, como também da tentativa soviética de sediar uma conferência sobre direitos humanos, prevista para 1991. Porém os acordos vêm sendo violados desde 1975, como acusam os EUA e a Inglaterra e a reunião “jamais poderá ter lugar em Moscou enquanto pessoas continuarem a ser encarceradas por suas convicções”. O objetivo era tornar “a URSS um país sem presos políticos – e livrar Gorbachev do vexame de deparar com manifestações de protesto a cada viagem ao exterior”. Antes afirmava que as necessidades comerciais da URSS a impeliam

287 Filhos pródigos. Veja, nº 957, 07/01/1987, 43. 288 Luz no fim do túnel. Veja, nº 1052, 02/11/1988 50.

para a liberação dos presos e ao cumprimento dos tratados de Helsinque. Agora a revista mudou o tom e tratou o caso personalisticamente. Essa mudança ocorre pela necessidade de combate à “Gorbymania” crescente. Antes chamava-se a atenção para a tentativa de financiamento e inserção do país na economia ocidental, mais como uma ameaça do que uma oportunidade de bons negócios. Agora a imagem de Gorbachev pode ser aranhada ligando-a aos presos e às manifestações fora da URSS, deixando de lado as questões da economia mundial – como ficou claro com as fotos de protestos contra Gorbachev. Não havia mais como transformar 250 presos na imagem dos milhões de encarcerados ou fuzilados do stalinismo, ou na de milhares presos sob Brejnev, como posteriormente fariam alguns reformistas (YAKOVLEV, 1996, 187), e a própria Veja. Sob a alegação soviética de que os presos políticos agora cabem nos dedos das mãos, Veja diz que

evidentemente, não tem 250 dedos – é em torno dessa cifra que a maioria das entidades de direitos humanos, como a Anistia Internacional, estima o número de presos, aí incluídos os perseguidos por motivos religiosos, os opositores políticos condenados como criminosos comuns e os que ainda se acredita estarem em hospitais psiquiátricos. A anistia aos presos políticos [...] não elimina o problema da falta de liberdade no país da glasnost. “A repressão continua, embora bem mais branda do que no passado”, constata o historiador Roy Medvedev, um ex-dissidente que hoje apoia Gorbachev. A diferença é que os que ultrapassam a imprecisa linha vermelha que separa o permitido do ilegal agora são punidos com sentenças leves de dez dias – em lugar de dez anos [...]. Dificilmente, porém, essa mudança servirá de consolo para os manifestantes que, por ousar expressar opiniões que amanhã podem ser adotadas como oficiais, têm de enfrentar tropas de choque, equipadas com cassetetes e gás lacrimogênio, cenas rotineiras cuja extinção não parece figurar no calendário das reformas. Ao contrário: na semana passada, a mesma reunião do Soviete Supremo que referendou um pacote de propostas de modernização da economia aprovou, também, leis que facilitam a repressão a greves e passeatas e permitem à polícia invadir domicílios sem mandato judicial289.

Nesse momento Sakharov obteve a liberdade de viajar para o exterior. “Para conseguir esse direito, corriqueiro em qualquer país onde imperem as regras mínimas de civilização, Sakharov precisou enfrentar sete anos de confinamento e mais dois de reabilitação sob controle”290. A burocracia para viagens ao exterior além dos territórios dos aliados soviéticos no

Leste Europeu não foi relaxada apenas para Sakharov, mas para os soviéticos em geral (YAKOVLEV, 1996, 76). Mas estes ainda não eram o foco para a revista.

O fim da censura, ou glavlit, e a liberação dos prisioneiros políticos, levou à mudança temporal da abordagem dos direitos humanos. Os campos de trabalho seriam caracterizados pelo

289 Luz no fim do túnel. Veja, nº 1052, 02/11/1988, 51. 290 Idem, 51.

seu frio e isolamento, que constituiriam muros naturais. “A 6 400 quilômetros de Moscou e sob temperaturas de até 70 graus negativos”, ao lado da Kamchatka e do mar de Okhotsk, na região ao lado de Oymyakon e Yakutsk, as mais frias do país, fica o campo de Magadan. Ainda assim “é o campo de regime mais brando”. O termo gulag ainda não era usado por Veja. Era necessário reconhecer uma realidade – esse sistema havia sido extinto gradativamente após a morte de Stalin (LEWIN, 2007, 198). A reformulação do anticomunismo, em andamento, que homogeneizaria a URSS stalinista com o período leninista e com o de Kruschev e Brejnev, ainda não se atrevia a isso. Giorgi Mikhailov, professor de Física da Universidade de Leningrado fotografou os campos de trabalhos forçados nos seis anos em que ficou preso, com “imagens raras do cotidiano de