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Vários setores não acreditariam no discurso anticomunista de fins dos anos 1980 como não acreditaram antes também, pela própria distância que mantinham da imprensa nessas questões. Como Ferro aponta, a mídia ocidental perdeu a credibilidade no trato das questões soviéticas diante de vários setores sociais tão cedo quanto os primeiros anos de Lenin à frente da Revolução (FERRO, 1984, 55-54), mas também a recuperou, em parte, no fim dos anos 1970, porque a experiência soviética teria perdido o brilho entre as massas (FERRO, 1984, 101-104). Além disso, alguns grupos sempre se mantiveram fiéis aos jornais conservadores. Mas mesmo os setores não afetados de início pela nova onda anticomunista não podiam ficar indiferentes à imprensa quando Gorbachev lançava seu anátema contra o socialismo real.

Se era o comentarista mais importante na prática, não o foi aos olhos da revista, cujo ícone inconteste mais era Reagan. E Gorbachev não se encaixa exatamente como analista, apesar de seu uso para a descrição do socialismo real. Ele jamais é convidado a fazer prognósticos, principalmente para o seu socialismo renovado, exceto quando ele já se tornou algo muito próximo ao louvado socialismo espanhol da virada dos anos 1990 (BROWN, 1996, 116), que

para Veja é o “socialismo que dá certo” na medida em que fornece “a receita socialista para abrir a economia, atrair capital, fechar estatais e fazer da Espanha um país do Primeiro Mundo”53. Entretanto, a partir de 1987, quando a intenção é desacreditar e mostrar o fracasso e a inferioridade dos regimes do Leste, Gorbachev sempre é convocado, com direito, inclusive, a uma reportagem especial que substituiu as páginas amarelas, com Veja citando e comentando os pontos que julgou mais importantes em seu livro Perestroika54.

Vários dos motes políticos usados posteriormente pela revista surgiram com o próprio círculo gorbachevista. Eles foram os primeiros a confundir esquerda e direita políticas – como Gorbachev ao criticar a esquerda e seus maiores fundamentos (GORBACHEV, 1988, 219-222) ao mesmo tempo em que apela para uma ampla união de esquerdas (GORBACHEV, 1987b, 72- 73) – para, em seguida, negar a existência ou a relevância destas demarcações (YAKOVLEV, 1991, 64). Confusão e descrédito eram armas poderosas dentro ou fora da URSS.

Mais do que professores de Columbia elevados a conselheiros de Estado, ou a saturação e sensacionalismo no noticiário, é a liderança da URSS, com suas declarações que pretendiam desarmar os opositores internos, que permitem à imprensa conservadora colher os louros de uma credibilidade em assuntos sobre o socialismo real perdida fazia décadas entre alguns setores, de reafirmar ao seu público devoto que sempre esteve certa e de confrontar os grupos que a tinham em descrédito. Que preferiam negar o quadro do regime socialista traçado por essa imprensa como propaganda e contrainformação. Agora, para essa mesma imprensa, não era necessário mais do que se referir às palavras do próprio comandante do sistema rival. Para combater os erros do passado, Gorbachev apontava ser necessário conduzir uma autocrítica muito mais demolidora “do que jamais o Ocidente sonhou em fazer”. Mais: ele acreditava que isso poderia não só debelar as forças conservadoras em seu front interno, como desarmar o discurso anticomunista político e midiático ocidental (GORBACHEV, 1988, 147-148). Sem dúvida Veja ficou aturdida num primeiro momento e teve que se esforçar para construir um contradiscurso que fosse ao mesmo tempo pró-Reagan e não objetivamente anti-Gorbachev, mas a partir de 1987 ela conseguiu conciliar uma imagem positiva de Gorbachev com suas posturas anticomunistas e até

53 LOPES, J. A. Dias. História de sucesso. Veja, nº 1103, 01/11/1989, 62-69. O programa do primeiro-ministro Felipe Gonzáles (1982-96), do Partido Socialista Operário Espanhol, agradou à revista não só pela condução macroeconômica que aproximou e inseriu a Espanha na Comunidade Europeia, mas também pelas reformas dos programas sociais, como o fim de subsídios para vários medicamentos, a liberalização das leis trabalhistas que derrubaram o valor dos salários dos jovens, a remodelação do seguro-desemprego e do sistema de educação (CORTÁZAR; VESGA, 1997).

mesmo anti-esquerda. Mas Gorbachev não deixou de ser o verdadeiro guru da credibilidade da mídia conservadora. Quando ele não conseguia mais segurar a dianteira nas críticas ao regime e, portanto, já não era tão interessante assim, Veja se voltou para outras fontes de dentro da URSS, como os analistas já citados, as memórias dos crimes do stalinismo e as denúncias raivosas contra o regime55 que apareciam na imprensa soviética (KAGARLITSKY, 1993, 63-64), ou as novas lideranças políticas que brotavam na URSS56.

O capital de confiança que as acusações de Gorbachev conferiram à mídia tradicional possibilitou à revista promover a crítica a uma ampla gama de partidos de esquerda. Mesmo antes do vendaval provocado por Gorbachev, alguns grupos já sofriam com a escalada do anticomunismo, como o PC do B. Não há sequer uma matéria sobre a Albânia desvinculada de críticas explícitas nomeadamente dirigidas ao PC do B. O pequeno país balcânico, pobre e isolado, provavelmente teria menos destaque em suas páginas se não existisse esta ligação ao combate ao PC do B. Sem dúvida a escalada do discurso da mídia ocidental teria encontrado na Albânia seu exemplo acabado da inferioridade do comunismo, ao afirmar ou sugerir que todos os regimes socialistas seriam idênticos ao regime de Tirana. Mas foi o isolamento de Hoxda das reformas liberalizantes empreendidas pelo Kremlin que serviram à Veja para indicar um caráter retrógado do PC do B e de insinuá-lo a toda uma esquerda no Brasil.

As reformas liberalizantes no Leste Europeu são mostradas como exemplo para o Brasil do que deve ser feito, e como uma humilhação, por ser mais atrasado e fechado que os países comunistas, e que, ao contrário destes, insiste em não reconhecer seus erros e não se reformar. “O Brasil, que pode ser considerado o país mais fechado do mundo no comércio, sem contar botocudos como o Irã, a Albânia e outros jogadores desse gênero, precisa abrir-se para o exterior” e fazer isso, como aponta o ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, sem criar qualquer lei ou “política de desmontar cartéis no Brasil, justamente na hora em que precisamos de empresas poderosas para enfrentar as de fora”. Para reforçar o exemplo, a foto dos 3 000 ladas, da gigante Avtovaz, desembarcando em Santos57. A URSS se torna exemplo de liberalização econômica para o Brasil, se voltando para o comércio externo e os grandes conglomerados. É nesse sentido que se pode entender a frase da mídia “quando chegará o nosso Gorbachev?”, enunciada no O

55 Inventário da repressão. Veja, nº 1056, 01/02/1989, 85-86.

56 GASPARI, Élio. Um partido destroçado. Veja, nº 1191, 17/07/1991, 43; nº 1137, 04/07/1990, 37. 57 Um soco na letargia. Veja, nº 1155, 07/11/1990, 86.

Globo58, ainda em 1988. Pode-se fazer uma lista das relações de pressão que a revista constitui com a comparação do regime que ainda não é uma “plena economia capitalista” com o passado do Leste Europeu e com o aprendizado deste com seus “erros”. O Brasil vivia um cenário quase brejneviano de estagnação. Uma perestroika liberalizante era necessária:

Nas estatais, há produtividade baixa, incompetência e um ideário corporativista que propicia privilégios de todo o tipo. Não é necessário, em absoluto, que o Estado esteja à frente de atividades que, entregues à iniciativa privada, poderiam trabalhar e render resultados muito melhores. A saída óbvia para a ineficiência das estatais inúteis é privatizá-las, e essa é a postura defendida pelo governo do presidente Fernando Collor59. [O Brasil] entendeu, com o andamento da privatização, que a alienação de estatais deve ser encarada como um processo contábil e não como uma manobra ideológica, a ponto de discutir-se hoje sem espanto a privatização da própria Petrobrás, sacrossanta instituição do nacionalismo brasileiro que viceja nos braços do monopólio. Na semana passada, foi a vez do Fundo Monetário Internacional60.

Há ideias anacrônicas a derrubar, numa sociedade que, segundo Serra, construiu um “muro de burrice” em torno de si própria61.

Enquanto os alemães derrubaram o Muro de Berlim, o Brasil continua paralisado diante do seu Muro de Burrice; a renda por habitante entrou em estagnação pela primeira vez neste século; o Brasil precisa educar-se, reformar o Estado e atrelar-se a uma utopia62. Marcha emperrada: o Brasil parte para a competição do mercado mundial com uma máquina industrial ineficiente, com produtos caros e de pouca qualidade63.

Toda vez que o Estado tenta deixar suas atividades próprias para exercer funções estranhas a sua natureza o resultado é sempre o mesmo. Durante sete décadas tentou-se a experiência de substituir as oscilações e os riscos do mercado pelo planejamento centralizado da economia na União Soviética, onde a ideia foi perseguida por mais tempo, e o resultado da experiência é conhecido. No Brasil, país curioso que ainda não atingiu o estágio de plena economia capitalista, um sistema Proálcool parece ter sido gerado dentro de um daqueles planos quinquenais soviéticos64.

Esse discurso não se limitou à Veja. O Globo, segundo Costa, foi bem menos modesto e sutil em suas comparações e críticas relacionando o quadro brasileiro ao da URSS que Gorbachev queria mudar:

Certamente, O Globo, árduo defensor do sistema capitalista, não se bandeara para o campo socialista. Na sua leitura, a utilização da perestroika como um exemplo para o Brasil apontava a natureza das reformas na URSS, que se baseava em diversos valores preconizados pela publicação: a economia de mercado, as privatizações, o fim dos monopólios e a abertura para a entrada de tecnologia e de capital estrangeiros. Enfim, as

58 “Quem fará a nossa Perestroika? Esta surpreendente pergunta foi feita por O Globo em 1988. Mais desconcertante ainda: a publicação utilizou-se das reformas na União Soviética (URSS) de Mikhail Gorbatchev para defender uma visão de mundo e um projeto político para o Brasil”. COSTA, Izabel Cristina Gomes da. Quem fará a nossa Perestroika? Imagens de Mikhail Gorbatchev no jornal O Globo. Tempo. Niterói, vol. 13 nº 25, p. 139, 2008. 59 Veja, nº 1135, 20/06/1990, 25. 60 Veja, nº 1220, 05/02/1992, 15. 61 Veja, nº 1141, 01/08/1990, 59. 62 Veja, nº 1141, 01/08/1990, capa. 63 Veja, nº 1261, 07/11/1990, 88. 64 Veja, nº 1135, 20/06/1990, 25.

transformações soviéticas atestavam a irresistibilidade do capitalismo diante do fracasso do socialismo real.

A leitura do jornal teceu uma série de comparações entre os processos vividos pelo Brasil e pela URSS. Comentando a viagem do presidente José Sarney àquele país, o editorial estabeleceu a seguinte simetria: as duas nações, cada qual a seu modo, viviam um processo de abertura. Contudo, as diferenças eram enormes. E as mais importantes estavam contidas no caráter das mudanças efetivadas em cada uma das regiões:

“Na União Soviética, há o esforço para sacudir uma sociedade sepultada na apatia por décadas de dirigismo econômico, de preconceito ideológico contra a iniciativa privada e por uma produção desenvolvida à revelia do mercado; enquanto no Brasil, a sociedade que com tanta espontaneidade respondeu à abertura política está sendo ludibriada por um estatismo de má-fé nacionalista e por um pretenso progressismo, de interesse apenas de uma bem estabelecida nomenklatura (O Globo, 23/10/1988, p. 4)”.

Quem ludibriava a sociedade brasileira, colocando-a na contracorrente da história? As esquerdas estatizantes defendiam os pressupostos que o socialismo soviético estava sepultando. Comportavam-se como os burocratas do PCUS, protegendo os interesses de um pequeno grupo. Assim, a burocracia no Brasil era constituída pela nomenklatura do movimento organizado dos trabalhadores, como o funcionalismo público, empunhando as suas bandeiras corporativistas (COSTA, 2008, 142).

Veja nunca fez comparações tão diretas e extrapoladas quanto O Globo. Agiu de uma maneira muito mais arguciosa, apesar da orientação geral ser muito semelhante, girando em torno do descompasso entre a esquerda nacional e a externa, principalmente a da pátria do socialismo. Outra diferenciação entre a postura de suas redações foi o destaque conferido ao encontro de Gorbachev com o Papa João Paulo II. Enquanto o Globo conferiu proeminência à reunião, Veja dedicou apenas meia página:

Em troca, Gorbachev assegurou ao papa que está muito próximo o dia em que a liberdade religiosa será uma realidade em seu país [...]. “Nos últimos tempos, a religião foi tratada de maneira simplista na União Soviética”, admitiu. “Hoje reconhecemos que os valores da religião podem ajudar na renovação do nosso país”65.