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O novo pensamento diplomático e o fim da Guerra Fria 1988

O cenário desse jogo de cenas entre ambos os líderes perdurou para a revista até 1988. A partir de então, ela conferiu mais importância ao “novo pensamento” diplomático enunciado por Gorbachev (GORBACHEV, 1988, 155). Para isto contribuíram as negociações de paz para resolver os conflitos regionais, a saída total do Afeganistão, a visita de Sarney, o desarme e abertura de bases militares para inspetores ocidentais, o novo foco das relações exteriores e a percepção de que esse novo foco era uma maior inserção no comércio mundial, com vantagens não só ideológicas como econômicas para a empresa em si e os setores e empresas que a suportam. A URSS, ainda como superpotência, mas já visivelmente combalida pela crise econômica, estaria abandonando o campo das lutas ideológicas em troca de um mundo dos bons negócios, antes vítima de preconceitos sistemáticos do regime304. Gorbachev passa a ser reconhecidamente um pacifista, porém prático. Mas a desconfiança unilateral permanece. Apenas um lado têm um histórico e uma conduta que seja digna de suspeita, segundo Veja.

O primeiro sinal de mudança veio com a ratificação das cláusulas do Tratado INF, sobre mísseis de médio alcance, no fim de 1987. “É espantoso como os russos fizeram concessões”. “A primeira concessão está nos próprios números. A União Soviética vai eliminar mais de 1 500 ogivas nucleares, contra um número três vezes menor por parte dos Estados Unidos. Mas os mecanismos de verificação de cumprimento do acordo não ficam atrás”. Os estadunidenses terão

gente na “própria União Soviética examinando mísseis no momento em que saem da linha de montagem”.

As cláusulas de verificação são realmente inéditas. Durante treze anos, inspetores americanos ficarão permanentemente instalados em acomodações junto à fábrica de mísseis de Votkinsk, quase 1 000 quilômetros a leste de Moscou [...].

Os inspetores americanos verificarão se a produção do SS-20 de fato será interrompida – e também se não sairão foguetes “disfarçados”, imitando a categoria ainda permitida305.

Ainda não se pode confiar nos russos, mas a cara do regime estaria se transformando de verdade. Com o Afeganistão, após reconhecer que foi “um “erro monumental’” a intervenção militar, foi fixado também o cronograma da retirada.

Até aqui, porém, os termos ainda eram vagos. Em fevereiro de 1986, Gorbachev limitou- se a prever a retirada das tropas “num futuro próximo” e, em outubro do mesmo ano, a remoção de 8 000 soldados não passou de uma jogada de propaganda que não mudou em absolutamente nada o rumo da guerra306.

Mas não foi o ideal pacifista da nova liderança que promoveu o desengajamento do país. A pressão internacional e dos EUA deixaram

claro que declarações de boa vontade, apenas, não bastava, Enquanto não se livrar do pesadelo afegane, a URSS de Gorbachev não poderá desenvolver a pleno vapor o ambicioso projeto de política externa com que pretende reformular sua posição no mundo307.

Em seguida é a vez de se minimizar as ações militares americanas frente à intervenção soviética. O Afeganistão é um Vietnam

tamanho família. Em oito anos de guerra, suas tropas conseguiram matar cinco vezes mais afeganes que os 200 000 vietnamitas mortos pelos soldados americanos nos dez anos de inferno no Vietnam. Essa carnificina, entretanto, não produziu resultados militares concretos – e naturalmente alimentou ainda mais a disposição de resistência. Foi essa ajuda, da ordem de 1 bilhão de dólares este ano, que permitiu à guerrilha desiquilibrar o conflito. A peça determinante308 foi o míssil portátil americano Stinger, com apenas 20 quilos de peso mas capaz de derrubar um caça em pleno voo309.

Ficou, porém, a impressão de que a União Soviética deixa o Afeganistão não como um ato de concessão à paz mas sim como o grande derrotado em uma guerra que seu próprio

305 Explosões para a paz. Veja, nº 1004, 02/09/1987, 50-52. 306 Data marcada. Veja, nº 1011, 20/01/1988, 39.

307 Idem, 39.

308 Afirmar que o Stinger desiquilibrou a guerra para o lado dos insurgentes é falso. Na realidade ele permitiu aos mujahedins suportarem a perda de Zhawar. Contra a ação dos stingers, que impediam o apoio aéreo às tropas soviéticas e afegãs, outras táticas foram desenvolvidas, como ações noturnas e o sistema antimísseis baseado em partículas de alumínio. Entretanto, a insuficiência de cobertura aérea permitiu aos mujahedins dobrarem suas ações contra as tropas soviéticas entre 1985 e 1987. Lembrando que os primeiros stingers só foram entregues no fim de 1986 (MCCGWIRE, 1991, 275; TANNER, 2009, 267-268).

exército começou. Mais de 1 milhão de mortos dessa guerra superam de longe a cifra de 200 000 mortos na Guerra do Vietnã310.

Tal afirmação permite a seguinte pergunta: e o Vietnam teve resultados militares concretos em favor da superpotência engajada? Os números das mortes provocadas pela ação militar americana no Sudoeste Asiático variam, mas sempre estão ao menos cinco vezes mais elevados do que os dados levantados por Veja. Abandonou suas antigas análises do caso afegão, que afirmavam primeiramente uma vitória do regime e a sovietização gradual do país e, em seguida, a maior popularidade de Najibullah como um bom conciliador nacional, para prever que “daqui a um ano, o presidente afegane estará descansando ao sol em alguma praia do Mar Negro ou estará morto”. Mas não comenta suas avaliações errôneas anteriores ou a falha de seus analistas. A retirada do Afeganistão significaria ainda outra manobra oculta de Gorbachev: colocar Reagan contra a parede na reunião de cúpula em Moscou e exigir a retirada do apoio estadunidense aos Contras na Nicarágua311. Outra situação que chamou a atenção de Veja foi o

crescente afastamento da União Soviética de seus antigos aliados no Oriente Médio e a aproximação do até então maior inimigo na região: Israel. Afirma que

O presidente Reagan obteve um inesperado incentivo para continuar insistindo na busca de uma solução para pôr fim aos conflitos entre judeus e palestinos nos territórios ocupados por Israel. A ajuda, dessa vez, não partiu de nenhum de seus aliados tradicionais, mas de seu principal adversário político, a União Soviética. Sem que ninguém esperasse, [...] Gorbachev tratou de quebrar mais um tabu [...].

Transmitiu pessoalmente ao chefe palestino a necessidade de os países árabes engajados na causa palestina reconhecerem a existência do Estado de Israel, um dos entraves que têm impedido qualquer tipo de negociação. [...] “o reconhecimento do Estado de Israel e a consideração pelos seus interesses na área da segurança são elementos necessários para estabelecer a paz e os princípios da boa vizinhança na região, desde que baseados nos princípios da lei internacional”, completou o líder soviético, diante do atônito Arafat, que não esperava pelo conteúdo do discurso que acabara de ouvir [...]. Os países árabes aliados de Moscou e as lideranças palestinas emudeceram312.

Uma iniciativa exclusivamente de Gorbachev é transformada em cartaz para Reagan. Não há como traçar uma história da URSS e de Gorbachev segundo Veja sem abordar também aos EUA e a Reagan. Um vive e é pintado em relação ao outro, e, mais especificamente, no sentido em que Gorbachev pode reforçar a imagem de Reagan, ou como pode minimizar seu poder de apelo e transferi-lo para o líder estadunidense. Para Veja, é uma nova campanha

310 Meia volta, vou ver. Veja, nº 1024, 20/04/1988, 54. 311 Meia volta, vou ver. Veja, nº 1024, 20/04/1988, 54. 312 Sem intermediários. Veja, nº 1024, 20/04/1988, 40.

diplomática, aumentando a influência da União Soviética no panorama internacional, já meditado pela liderança como parte do plano do desengajamento no Afeganistão.

O “novo pensamento” é mais detidamente abordado na matéria “o urso camarada: desengajamento militar, alianças e bons negócios, é esta a nova diplomacia soviética”. Constrói uma descrição das múltiplas reuniões concomitantes como tomadas de um filme, com acontecimentos que ocorrem simultaneamente em vários pontos do globo: “Cena 1, Ponte sobre o Rio Oxus, na fronteira da União Soviética com o Afeganistão”, partida das tropas soviéticas; “Cena dois, Pequim”, destendimento no conflito sino-soviético; “Cena 3, Lisboa, Londres e Brazzaville, no Congo. Diplomatas dos Estados Unidos, União Soviética, Cuba, Angola e África do Sul entram na terceira semana de negociações para tentar pôr fim à guerra no território angolano que se arrasta há treze anos”.

Diferentes em seu grau de importância, mas todos nascidos da mesma fonte de inspiração, os fatos, distribuídos pelos quatro cantos do planeta ao longo da semana passada, mostram que o líder soviético, Mikhail Gorbachev, depois de três anos de governo, está revolucionando não apenas em matéria de abertura e reestruturação econômica – a política externa soviética também começou a mudar, e muito. Em lugar das alianças automáticas com regimes ditos revolucionários, do confronto sistemático com os Estados Unidos e, quando necessário, da pesada mão militar – tudo regado a enormes contas em rublos -, a ordem agora é outra. O urso temível de garras afiadas quer mesmo é conquistar bons amigos, de todas as cores ideológicas, fazer bons negócios e reparar a sua imagem. A era do expansionismo acabou, diz a mensagem implícita. A ordem é negociar, negociar, negociar e até mesmo ceder, como na retirada das tropas do Afeganistão313.

“Definida em palavras-chave como “novo pensamento”, “segurança mútua” e “interdependência”, a nova política exterior soviética não distingue aliados de adversários” e prega soluções negociadas para o mundo “utilizando toda sua influência de superpotência”, como no Oriente Médio, com a reaproximação junto à Israel e aos países conservadores, como Arábia Saudita, Kuwait e Egito, que passaram a apoiar o plano soviético de paz, “graças à moderação nas palavras e nos atos”.

Toda a movimentação diplomática soviética tem sido acompanhada com curiosidade, surpresa e boas doses da velha desconfiança pelo governo americano. A base da suspeita é simples: a URSS, raciona-se em Washington, está tentando agora com modos afáveis e na mesa de negociação o que não conseguiu a ferro e fogo. “Eles pretendem nos engajar em atitudes coletivas, organizações internacionais e acordos multilaterais para nos forçar a agir contra nossa própria vontade”, diz Richard Salomon, diretor de Planejamento Político do Departamento de Estado Americano”, afinal, ainda são “rivais geopolíticos”, palavras que “revelam um receio fundamental: o que fazer com um inimigo que, de

“império do mal”, se transforma em grande patrono das soluções negociadas. Nós vamos fazer uma coisa terrível com os americanos: vamos privá-los de um inimigo”, ameaçou recentemente, com fina ironia, Georgi Arbatov, um dos mais experientes especialistas soviéticos em matéria de Estados Unidos. A “ameaça” está sendo cumprida314.

Mas o pacifismo e moderação soviéticos teriam motivos sólidos e interesses claros, apesar de diferentes dos que Washington atribuía. Com o subtítulo “aliados falidos”, discorre sobre a reunião entre diplomatas soviéticos e estadunidenses para dar início às negociações de paz entre África do Sul e Angola.

A decisão do Kremlin, antes de ser uma nova armação publicitária de Gorbachev, tem tantos motivos políticos quanto econômicos. Todos os governos africanos que se proclamam marxistas – Angola, Moçambique e Etiópia – estão literalmente à beira da bancarrota. Só com Etiópia e Angola, Moscou desembolsa cerca de 1 bilhão de dólares por ano para cada uma315.

No mapa e diagrama “O mapa da paz de Moscou”, quadros indicando uma posição pacifista soviética vão dando lugar a quadros que apresentam uma postura forçada por interesses, do abandono da revolução comunista internacional à aproximação com econômicas em desenvolvimento como Brasil e Argentina – para onde a “diplomacia soviética mira agora” – ou a saída do Afeganistão como reaproximação com os países muçulmanos, “uma saída brilhante para uma guerra dada como perdida”, ou ainda no conflito Camboja-Vietnam, “a criação de uma “zona de paz” no Sudeste Asiático – que traria a vantagem adicional, do pondo de vista dos soviéticos, de limitar o movimento dos navios de guerra dos EUA na região”.

Dois movimentos da diplomacia soviética da semana passada reforçam a tese de que Moscou quer o acordo onde for possível – e lucrativo. Além da visita dos chefes militares a Pequim, Moscou procurou reaproximar-se do governo da Coréia do Sul, ignorando o radicalismo de seu aliado comunista da Coréia do Norte316.

Se antes se servia da espionagem industrial para aquisição de tecnologia, agora “vai abrir um escritório comercial na Coréia para ter acesso aos produtos eletrônicos de alta tecnologia produzidos no país”. Alerta para a mudança de tática para a captação de influência regional em áreas americanas: “também na busca de bons negócios e amizades renovadas, a diplomacia soviética mudou seu discurso com relação aos países da América Latina, particularmente o Brasil e a Argentina”, influência que pode ser sentida no crescente número de bolsas para estudantes desses países para Moscou enquanto menos estudantes se dirigem para os EUA. “É o abraço do

314 Idem, 48.

315 O urso camarada. Veja, nº 1029, 25/05/1988, 49. 316 Aliados falidos. Veja, nº 1029, 25/05/1988, 50.

urso”, que de fato, como temiam os estadunidenses, ameaça conquistar com a paz o que não o havia com o militarismo e expansionismo. A “mão de Moscou” agora agiria por outros meios. Alguns autores perceberam esse movimento como uma retirada militar soviética no Terceiro Mundo, diante da crise econômica do modelo e de uma maior “seletividade geoestratégica” (BRZEZINSKI, 1990, 218-19) e outros como um abandono de mundos estranhos por uma reaproximação com a verdadeira civilização europeia (ENGLISH, 2000, 140). Já Veja tomou por sincera as declarações de 1987, nas quais Gorbachev propunha a instalação de joint ventures entre empresas soviéticas e americanas, a entrada de capital estrangeiro, o livre comércio, a cooperação econômica com a Europa Ocidental em projetos e negócios no Terceiro Mundo, bem como convidava este a seguir o modelo da perestroika (GORBACHEV, 1988, 240).

Em meados de 1988 Veja anunciou o fim da Guerra Fria, e elegeu seu herói responsável pelo feito, na Carta ao Leitor.

Reagan aparecia aos olhos do mundo como o último homem a quem os soviéticos deveriam procurar para uma conversa [...]. De lá pra cá Reagan fez uma longa viagem em suas posições – e, hoje, prepara-se para deixar a Casa Branca como o presidente americano que participou do mais amplo e audacioso conjunto de decisões destinado a aproximar Estados Unidos e União Soviética.

Entender a essência de tal mudança, reconhecendo-a como o que ela realmente é, e não como um truque de momento, é um sinal de vitalidade – e, no fim das contas, uma demonstração de que só é possível avançar no rumo das soluções quando existe a capacidade de se compreender que as palavras são menos importantes que as ideias e que as ideias devem subordinar-se às realidades317.

Alguns autores (LÉVESQUE, 1997, 24; BROWN, 1996, 77) asseveram que Reagan seria o pior interlocutor e parceiro para os soviéticos. Mas Veja aponta que essa era uma visão geral que, todavia, não se confirmava diante dos fatos. Pelo contrário. Estes fatos demonstram que o desarmamento não era uma diplomacia de propaganda, “cosmética” – como ela própria assegurou tantas vezes em 1985 e 1986. “Reconhecer a essência da mudança” é entender que o grande agente e o iniciador da mudança diplomática é Reagan, e não Gorbachev. Desde a capa da edição, o destaque é Reagan, sob a pétrea face de Lenin. Na matéria “caça ao dragão em Moscou: Reagan e Gorbachev anunciam a morte do dragão da Guerra Fria e iniciam uma nova era nas relações entre EUA e URSS” a foto evidencia um calmo Reagan (talvez até desnorteado com Lenin ao fundo), num canto da página, num fundo claro, enquanto que, no canto da outra página,

em contraposição absoluta, um inflamado Gorbachev, sob fundo totalmente escuro, exceto pela foice e martelo da bandeira vermelha ao seu lado. O tratado foi assinado no Salão de São Jorge.

Na verdade, a bela sala abriga apenas o santo e, se nela havia dragões, eles eram Reagan e Gorbachev, cada um vendo o monstro no outro. O mesmo Gorbachev que se cansou de denunciar a política belicista de Reagan, naturalmente ditada pelo “complexo industrial- militar”, como “um fator negativo permanente nas relações internacionais”, dizia agora que “aprendemos a nos entender melhor, a levar em conta as preocupações mútuas, a procurar soluções”. O mesmo Reagan que se colocou publicamente como um aliado de Gorbachev na luta em favor da paz e da liberdade, apenas cinco anos atrás apresentara a União Soviética como o “império do mal”. O mesmo Reagan também fez questão de destacar o peso de seu relacionamento pessoal com Gorbachev. “Queremos que saibam que pensamos em ambos como amigos” [...]. O presidente dos Estados Unidos não usa palavras assim por mera cortesia com seus anfitriões numa visita de Estado318.

Inversamente ao que afirmava anteriormente, agora as mudanças seriam profundas e verdadeiras. “O dirigente soviético falando em modernidade e civilização no relacionamento com os Estados Unidos, o presidente americano falando em amizade e aliança com a União Soviética – isso é mudança”. Se Veja apontava que a União Soviética se apartara do mundo civilizado nas relações internacionais, isso se deve mais ao próprio discurso reformista em radicalização que afirmava exatamente esse distanciamento e o retorno à comunidade de nações civilizadas (YAKOVLEV, 1991, 94) do que ao próprio movimento anticomunista. Gorbachev argumentava que as relações internacionais deveriam ser pautadas pelos valores universais, e não pela luta classes (GORBACHEV, 1988, 170). Era a desautorização de todo o histórico oficial da diplomacia soviética. Para Veja, as palavras de Gorbachev são o reconhecimento e a marca de inegabilidade da crítica ocidental. Crítica que os próprios reformistas assimilavam paulatinamente, bem como os modelos de historiadores liberais, segundo Poch-de-Feliu, que tenta explicar o processo:

Se na análise mais neutra e discreta, a Guerra Fria foi uma responsabilidade dupla, compartilhada por igual entre as duas superpotências, na mentalidade dos ocidentalistas “cosmopolitas” russos, que foram a corrente ideologicamente dominante na primeira fase da transição, a responsabilidade soviética era superior. Isso significava que, por um lado, havia que vincular e coordenar o desarmamento com a outra superpotência, com a qual se via um futuro de interesses comuns e que, por outro, se sentira uma necessidade de dar seguridades e de lançar “gestos de honestidade” para apagar a prova dos próprios pecados do passado que, no fundo, se consideravam os “principais responsáveis”.

Muito disso era inconsciente em Moscou; resultado da larga espera da geração de Gorbachev, do descrédito com que os discursos e a propaganda sobre o papel do país no mundo haviam coberto o genuíno e verdadeiro, do esgotamento da fé no próprio sistema e do correspondente prestigio das versões da história facilitadas pelo discurso

norte-americano-ocidental, pois, em qualquer caso, existia e fomentava todo tipo de dúvidas, inseguridades e complexos de culpa (POCH-DE-FELIU, 2003, 104-105, tradução livre).

Veja traça um histórico dos acordos diplomáticos para o controle de armas entre as superpotências. Lembra-se do acordo de 1967 que previa a limitação de armas nucleares no espaço, “ou mesmo bases militares”, mas silencia sobre os acordos AMB, que proibiriam qualquer sistema antissatélite. Assim não há nenhuma crítica à quebra dos acordos pelos EUA. A IDE não merece sequer uma referência. Sobre os acordos Salt II faz questão de lembrar que o Congresso americano não ratificou o documento assinado por Carter e Brejnev, “em represália à intervenção no Afeganistão”319, portanto a implantação dos euromísseis não descumpria qualquer

contrato. Mais que isso. Um ato que disparava as tensões na Europa na realidade era uma pressão pela paz. Quem deve ser objeto das dúvidas, das cobranças diplomáticas e do empenho da palavra diante da comunidade internacional é a URSS e não os EUA. Tanto que nem agora, nem em 1986, Veja menciona a retirada oficial dos Estados Unidos do acordo SALT II feita por Reagan.

Seria um momento em que os preconceitos de ambos os lados ruíam, diante do entendimento mútuo. “O homem que previu que no futuro o comunismo seria lembrado apenas como “um capítulo triste e um tanto bizarro da História da humanidade’” agora caminhava pela Praça Vermelha. Ao ver um quadro no Palácio de Inverno que mostrava a ostentação da nobreza e a vida do povo comum, Nancy disse entender a razão da Revolução de Outubro. “Nancy, com certeza, não se converteu ao comunismo por força de uma sela luxuosa [...]. Quando a mulher de Ronald Reagan admite compreender, de alguma maneira, as causas da Revolução Russa, o dragão da guerra fria [sic] leva outro golpe”320. Porém a redução dos mísseis estratégicos pela metade não ocorreu. A proposta foi “emperrado pelas complexas disputas em torno de como