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A sociedade neoliberal e a globalização negativa

As transformações econômicas e políticas colocadas em práticas a partir do avanço dos princípios neoliberais e da acumulação flexível acarretaram mudanças nos outros setores da vida social. Em relação à democracia, Hobsbawm (2008, p. 103) afirma que, no final do século passado, os Estados nacionais não conseguiram funcionar com a mesma mobilização e participação dos seus cidadãos, como ocorreu na maior parte do século XX e, “em países com cidadania de massas, apenas uma minoria modesta participa constante e ativamente dos assuntos do Estado ou das suas organizações de massas”. O autor completa ainda que,

evidentemente, o modus operandi da empresa privada com fim lucrativo tornou-se o modo ao qual até o governo aspira. Na medida em que isso acontece, o Estado tende a confiar nos mecanismos econômicos privados para substituir a mobilização ativa e passiva dos seus cidadãos. (HOBSBAWM, 2008, p. 105)

Há, portanto, uma mudança na qualidade da relação entre o Estado e os cidadãos dos países com tradição democrática. Bobbio (2010, p. 95) afirma que a relação entre liberalismo e democracia foi sempre difícil, mas com a introdução do Estado mínimo pelos neoliberais, “a relação tornou-se mais difícil do que nunca”. Tal fato ocorre porque, de acordo com a tradição liberal, a liberdade individual se sobrepõe à igualdade. No Estado liberal, a igualdade se limita a dois princípios fundamentais, apenas: a igualdade perante a lei e a igualdade dos direitos. No período em que predominou o Estado de bem-estar, a democracia se caracterizou pela participação popular e pela busca da igualdade. Do ponto de vista de alguns liberais, a

democracia é uma ameaça à liberdade, pois representa um perigo progressivo de realização do ideal igualitário e coloca em risco a liberdade individual (BOBBIO, 2010).

Além da redução da participação dos cidadãos nas decisões políticas de seus respectivos países, as mudanças atingem outros aspectos da vida cotidiana. De acordo com Harvey (1996),

a acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo [...] por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável no modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais. (HARVEY, 1996, p. 148)

Na primeira metade do século XIX, Marx e Engels (2008b), já haviam verificado essa característica do capitalismo, que provoca incessantemente mudanças em cadeia que afetam e abalam a vida social. Em 1847, eles advertiram no Manifesto do Partido Comunista que “a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, por conseguinte, todas as relações sociais” (MARX; ENGELS, 2008b, p. 13). Na medida em que transforma os meios de produção e de comunicação, a burguesia integra, ao modo burguês de produção, os mais diversos povos, avança fronteiras. “Em suma, ela cria um mundo à sua imagem e semelhança” (MARX; ENGELS, 2008b, p. 15).

Esse processo de transformação do mundo a partir das transformações dos meios de produção se identifica melhor a partir da primeira metade do século XVIII, com a primeira Revolução Industrial na Inglaterra e continua, sem interrupção, até os dias de hoje. Segundo Hobsbawm (2008, p.10), o mundo hoje presencia “dois desenvolvimentos correlatos: a aceleração enorme e contínua da capacidade da espécie humana de modificar o planeta por meio da tecnologia e da atividade econômica e a globalização”. Ambos não trouxeram impactos positivos sobre a vida da maioria dos indivíduos. Eric Hobsbawm (2008) afirma que a globalização, que teve seu avanço acelerado a partir da década de 1960, é

o mundo visto como um conjunto único de atividades interconectadas que não são estorvadas pelas fronteiras locais – provocou um profundo impacto político e cultural, sobretudo na forma atualmente dominante de um mercado livre e sem controles. (HOBSBAWN, 2008, p. 10).

Três observações de ordem geral são apontadas por Hobsbawm a respeito da globalização.

Primeiro, a globalização acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas. [...] (HOBSBAWM, 2008, p. 11).

Segundo, o impacto dessa globalização é mais sensível para os que menos se beneficiam dela. [...] (HOBSBAWM, 2008, p. 11).

Terceiro, embora a escala real da globalização permaneça modesta, talvez com exceção de alguns países em geral pequenos e sobretudo na Europa, seu impacto político e cultural é desproporcionalmente grande (HOBSBAWM, 2008, p.12).

É importante ressaltar, a globalização e o avanço do neoliberalismo e da acumulação flexível provocaram transformações que interferem na vida das pessoas, trouxeram novas incertezas e desafios para a humanidade. Segundo Zygmunt Bauman (2007, p. 7), “estão ocorrendo, atualmente, algumas mudanças de curso seminais e intimamente interconectadas, as quais criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividades da vida individual”.

Uma das marcas mais relevantes desse novo ambiente diz respeito à

passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” – ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (BAUMAN, 2007, p. 7).

Essa nova fase, caracterizada, então, pela fluidez e pela efemeridade dos processos e das estruturas sociais, gera, na sociedade, um grau de abertura que a deixa “impotente, como nunca antes, em decidir o próprio curso com algum grau de certeza e em proteger o itinerário escolhido, uma vez selecionado” (BAUMAN, 2007, p. 13).

Nessa nova fase, o capitalismo teria aumentado seu apetite e, cada vez mais, suas empresas em crescimento se alimentam das grandes fusões. A cada nova fusão, aumenta o número de homens e mulheres que perdem seus postos de trabalho, suas terras e suas redes de relacionamento e de proteção social. Assim, o progresso econômico, que deveria criar melhores condições de vida para os indivíduos, torna boa parte deles descartável, rouba seus direitos. Deixa-os à margem dos benefícios do progresso.

Esses indivíduos são vistos e tratados, logo, como membros das “classes perigosas”, que geram medo e insegurança na outra parte da população da cidade, que não foi destituída

das condições materiais e, consequentemente, dos direitos do cidadão. Bauman (2007) afirma que:

Os moradores sem meios, e por isso vistos pelos outros como ameaças potenciais à sua segurança, tendem a ser forçados a se afastar das partes mais benignas e agradáveis da cidade e amontoados em distritos separados, semelhantes a guetos. Os moradores com recursos compram casas e, áreas separadas por eles escolhidas, também parecidas com guetos, e impedem todos os outros de se fixarem nelas. Além disso, fazem o possível para desligar o mundo onde vivem daqueles dos demais habitantes da cidade. Cada vez mais seus guetos voluntários se transformam em guarnições ou postos avançados da extraterritorialidade. (BAUMAN, 2007, p. 79).

Tereza Pires do Rio Caldeira (2003) denominou esses “guetos voluntários” de “enclaves fortificados contemporâneos”, cujo objetivo é privatizar os espaços públicos destinados aos mais ricos. Enquanto os enclaves fortificados são enquadrados por grades e muros, os espaços públicos restantes são abandonados, tornam-se território do medo. As cidades se fragmentam, são recortadas por muros, cercas e correntes que impedem o livre trânsito nos espaços públicos. “Na cidade de muros não há tolerância para com o outro ou pelo diferente. O espaço público expressa a nova intolerância” (CALDEIRA, 2003, p. 313).

Ao observar a cidade de São Paulo, a autora identificou que os espaços públicos mais vazios são exatamente aqueles onde há mais enclaves fortificados. Ela descreve assim esses locais:

[...] As distâncias entre os prédios são grandes. Os muros são muito altos, sem proporção com o corpo humano, e grande parte deles ainda tem arames eletrificados. As ruas são para os automóveis e a circulação de pedestres torna-se uma experiência desagradável. Na verdade, os espaços são construídos intencionalmente para produzir esse efeito (CALDEIRA, 2003, p. 314).

Se as cidades antigas foram construídas, cercadas por muros e fossos, para proteger todos seus habitantes de um inimigo externo, as cidades atuais “servem para dividir e manter separados seus habitantes: para defender uns dos outros, ou seja, daqueles a quem se atribui o status de adversários” (BAUMAN, 2009, p. 42).

Num mundo interconectado pela globalização e pelas tecnologias – mídias, transporte rápido, internet, etc. –, o contato e o convívio entre os habitantes das cidades são reduzidos ao mínimo. Mas, enquanto os indivíduos das camadas mais ricas têm acesso aos benefícios da globalização, podem viver na extraterritorialidade, em contato com os lugares mais distantes, os das camadas inferiores são condenados a se restringirem aos recursos disponíveis no local

onde vivem porque não têm acesso a tais benefícios do progresso. Essa situação aumenta, ainda mais, a distância entre ricos e pobres.

Diante disso, novas políticas sociais são criadas, entretanto, não em consequência das demandas explicitadas pelos indivíduos alijados dos benefícios do desenvolvimento econômico, porém visavam aliviar o clima de tensão, medo e conflito que crescem, principalmente nas grandes cidades. Bauman (2007) afirma que o Estado oferece aos mais pobres um tratamento que não os reconhecem como sujeito de direitos, todavia recebedores de transferências.

Se os serviços e os programas públicos destinados aos pobres não os reconhecem como sujeitos de direitos, se esses programas e serviços são de estrutura precária, ambos influenciam o seu público na forma de agir e de se relacionar materialmente e com os outros, principalmente as crianças, adolescentes e jovens. Segundo Marx (2007, p. 49), as “relações materiais constituem a base de todas as suas relações [demais relações humanas]. Essas relações materiais nada mais são do que as formas necessárias nas quais sua atividade material e individual se realiza”. Há, portanto, uma coerência entre “os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida” (MARX; ENGELS, 2008a, p. 44). Destarte, não há como formar um cidadão na sua plenitude negando-lhe seus direitos básicos, mantendo-o apartado dos benefícios gerados pelo desenvolvimento econômico.

Com isso, Marx e Engels (2008a) revelam que a produção do homem real se dá na vida real, imerso na vida comum, o que nos remete, então, ao estudo da vida cotidiana.