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As políticas públicas liberais, neoliberais e do Estado de bem-estar

Alguns estudos (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000; HOFFMANN, 2000; ROCHA, 2000) demonstram que o Brasil encerrou o século XX entre os países mais desiguais do mundo. A pobreza e a extrema pobreza que atingiram números alarmantes41 no ano 1999 não eram consequências da escassez de recursos, mas da má distribuição da riqueza. Quando se comparava o grau de pobreza no Brasil com países com renda per capita similar, observava-se que a pobreza no Brasil era maior. Enquanto a pobreza nos países que tinham

41 De acordo com Barros, Henriques e Mendonça (2000), em 1999, a indigência ou extrema pobreza atingia 14%

da população brasileira e a pobreza, 34%. Com isso, 22 milhões de pessoas eram indigentes e 53 milhões eram pobres.

renda per capita semelhante ao do Brasil estava em torno de 10%, no Brasil a pobreza girava em torno de 30% da população total (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000). De acordo com esses autores, “apenas 8% da população brasileira deveriam ser pobres” (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000, p. 28), caso o Brasil estivesse na média de desigualdade verificada no mundo. O estudo aponta ainda que “o grau de desigualdade em 1999 é dos mais elevados nas últimas décadas, sendo apenas inferior aos valores observados no final dos anos 70 (1977/78) e 80 (1988/90)” (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000, p. 38).

Em 1999, ano que foi realizado o referido estudo, foi o primeiro ano do segundo mandado de Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) na presidência da República, cujo governo foi o responsável por efetivar as medidas que reduziram a função e o tamanho do Estado Brasileiro, tal como sugeria os teóricos do neoliberalismo. De acordo com os princípios liberais, o combate à pobreza se faz em dois eixos. O primeiro princípio seria por meio do desenvolvimento econômico, “porém, enquanto isso não acontecesse, seria necessário implementar algum tipo de política social para atender aos mais pobres dos pobres”, segundo Pierre Salama e Jacques Valier (1997, p. 103).

Para fomentar tal desenvolvimento econômico, o neoliberalismo indica a redução dos gastos públicos. Por isso, a política de combate à pobreza se destina aos mais pobres dos pobres. Mas esta seria apenas uma das características das políticas sociais do neoliberalismo (SALAMA; VALIER, 1997). Os autores apresentam ainda mais duas características que visam à limitação dos gastos públicos. A segunda diz respeito à transformação das políticas sociais em políticas de assistência social e privatização dos serviços. Nesse caso, a política social concebida no Estado de bem-estar como direito do cidadão no Estado mínimo se cinde em dois níveis. Aos mais pobres, o Estado oferece programas assistenciais baseado na ajuda e na solidariedade. Como esse tipo de serviço não atende às necessidades das camadas médias e ricas, elas abandonam os serviços públicos em busca do setor privado. A terceira característica refere-se à descentralização dos programas e ao fato de recorrer à participação popular para implementá-los. A combinação dessas características, além de reduzir os gastos públicos, vai ao encontro dos interesses do mercado, que cresce no setor de aposentadoria, saúde e educação, principalmente. Ao mesmo tempo, provoca o sucateamento das políticas sociais. Valier (1997) contribuem para explicar assim o aprofundamento das desigualdades sociais que, no Brasil, os estudos de Barros, Henriques e Mendonça (2000) vão confirmar anos mais tarde com dados colhidos da realidade brasileira.

Esse caráter paliativo das políticas sociais implementadas pelo neoliberalismo também foi identificado por Karl Marx, em meados do século XIX, época em que o liberalismo econômico ainda não havia enfrentado as crises mundiais que culminaram com a Grande Depressão, nos anos 1930. Conforme Ivo Tonet ( 2010, p. 35), uma das teses apresentadas por Marx no artigo “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano”, publicados em agosto de 1844, foi “a natureza essencialmente paliativa de todas as políticas sociais”. Nas “Glosas críticas”, ao analisar o combate à pobreza na Inglaterra, Marx (2010, p. 53) criticou as posições de Thomas Malthus, para quem a miséria era uma eterna lei da natureza, e do Parlamento inglês, que escreveu, “o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores são culpados e ao qual, portanto não se deve prevenir como uma desgraça, mas antes reprimir e punir como um delito”. Marx (2010) afirmou ainda, o Estado inglês, que inicialmente tentou acabar com a miséria primeiramente por meio da assistência e das medidas administrativas, desistiu da intenção de eliminar o pauperismo, e passou apenas a discipliná-lo e eternizá-lo, porque viu o seu aumento progressivo. Para o Estado, o pauperismo não era “a necessária consequência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres” (MARX, 2010, p. 54). Era, pois, um problema da legislação inglesa.

De acordo com Marx (2010, p. 59), quando “o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode controlar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele”. Neste caso, as causas das deficiências administrativas seriam acidentais ou intencionais. O remédio para tais deficiências seriam medidas administrativas, apenas. Marx (2010, p. 60-61) afirma ainda:

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida pública e privada, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda: frente a consequências que brotam da natureza antissocial dessa vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a essas consequências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, essa dilaceração, essa infâmia, essa escravidão da sociedade civil é o fundamento natural em que se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. [...] Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela.

Diante da sua dependência em relação à sociedade civil e da sua natureza contraditória, o Estado se apresenta como impotente face aos problemas sociais, portanto, suas políticas sociais, seriam essencialmente paliativas. As contradições sociais só seriam superadas, de acordo com Marx (2010, p. 78), a partir da emancipação humana – que em relação à emancipação política, é superior – e de “uma revolução política com alma social”. Ou seja, não basta uma simples revolução política que derruba o velho poder, mas uma revolução que, além disso, fosse capaz de dissolver a velha sociedade e superar a vida desumanizada.

No período entre guerras (1919-39), o liberalismo entrou em colapso. Os governos liberais não conseguiam solucionar as diversas crises econômicas, políticas e sociais que se multiplicaram nos países capitalistas criaram campo fértil para o crescimento dos regimes totalitários e para a popularização das ideias socialistas. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945), “o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazifascismo e da revolução comunista” para Marilena Chauí (1997, p. 429). Segundo Eric Hobsbawm (2009, p. 116),

o medo da revolução social, e do papel dos comunistas nela, era bastante real, como provou a segunda onda de revolução durante e após a Segunda Guerra Mundial, mas nos vinte anos de enfraquecimento do liberalismo nem um único regime que pudesse ser chamado de liberal-democrático foi derrubado pela esquerda. O perigo vinha exclusivamente da direita. E essa direita representava não apenas uma ameaça ao governo constitucional e representativo, mas uma ameaça ideológica à civilização liberal [...].

O Estado passa a desenvolver, então, ações que visavam corrigir os problemas econômicos e sociais responsáveis pela instabilidade do mundo pós-guerra. Com isso interveio na economia e criou um conjunto de programas sociais de caráter universal, fundamentados no ideal de cidadania, na área da saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro-desemprego (CHAUÍ, 1997).

Dessa forma, o Estado, nos países capitalistas desenvolvidos, assume uma nova forma e rompe com a concepção liberal de Estado. Noberto Bobbio (2010, p. 17) observa que, “o liberalismo é uma doutrina do Estado limitado, tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções”. Nesse novo contexto histórico, com a intervenção na economia e com as políticas sociais, o Estado amplia suas funções e adquire mais poder e deixa de ser um Estado mínimo tal como defendia os liberais.

A reação liberal iniciou-se em meados dos anos 1940, quando as bases do Estado de bem-estar, na Europa, não havia ainda se constituído efetivamente. De acordo com Perry Anderson (1995), em 1947, Friedrich Hayeck, um dos principais teóricos do neoliberalismo, convocou várias personagens de reconhecimento internacional que compartilhavam dos mesmos ideais liberais para organizarem uma reação teórica e política contra o Estado de bem-estar. Para Hayeck, o igualitarismo, “promovido pelo Estado de bem-estar social, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos” (ANDERSON, 1995, p. 10).

O neoliberalismo, porém, só passa a ganhar terreno a partir de 1973, quando quase todos os países capitalistas caíram numa longa e profunda recessão. Hayeck afirmava que as raízes da crise estavam no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e do movimento operário, que corroíam as bases da acumulação capitalista gerando aumento dos gastos públicos (ANDERSON, 1995). Só a partir do final da década, em 1979, com a chegada de Margareth Thatcher ao poder na Inglaterra, em 1980, com Ronald Reagan nos Estados Unidos, e 1982, com Helmut Khol na Alemanha, é que o receituário neoliberal começa a se tornar hegemônico em todo o mundo. Com isso, a maioria dos governos dos países do mundo inteiro rompeu com o poder dos sindicatos, buscou a estabilidade econômica, a disciplina orçamentária e contenção dos gastos sociais, restaurou as taxas “naturais” de desemprego, realizou reformas fiscais, entre outros mecanismos que, de acordo com os teóricos neoliberais, iriam dinamizar a economia e restabeleceriam o Estado mínimo (ANDERSON, 1995).

Apesar de todas as medidas para conter os gastos públicos, o peso do Estado não diminuiu muito, segundo Anderson (1995), pois aumentou os gastos com o desemprego e com as pensões devido ao aumento demográfico dos aposentados na população.

Paralelo ao embate político que permitiu o avanço neoliberal, o mundo capitalista experimentou o fenômeno da reestruturação da produção capitalista. Harvey (1996) chamou essa reestruturação de acumulação flexível, que para ele “é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (HARVEY, 1996, p. 140) O autor observa que, a implementação da acumulação flexível provocava altos níveis de desemprego, tornava obsoleto e reconstruía habilidades profissionais, reduzia ganhos e salários e retirava poder dos sindicatos. Com isso, os empregadores conseguiam impor aos trabalhadores contratos de trabalhos mais flexíveis, promovendo o crescimento das jornadas parciais, temporários e dos trabalhadores subcontratados (HARVEY, 1996).

O processo de acumulação flexível foi acompanhado ainda por uma introdução acentuada da tecnologia nos meios de produção que ajudou a eliminar inúmeros postos de trabalho, gerou mais desemprego e debilitação da organização sindical.

Todas essas mudanças afetaram a vida e a organização política do trabalhador e do cidadão, que ficaram mais vulneráveis diante dos interesses capitalistas. Para Marta Harnecker (2008, p. 17), “o que define as coisas em política [...] não é a superioridade numérica de uma determinada classe, mas a disposição de lutar por determinados interesses de classe”. Assim, a disposição e a capacidade de luta da classe trabalhadora reduziram-se acentuadamente. Anderson (1995) observa, nos anos 1980, a queda drástica no número de greves foi acompanhada por uma notável contenção dos salários.