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A escola não pode substituir as instituições sociais que têm a infância e a adolescência como objeto. Numa sociedade onde por muito tempo perdura a miséria e a forte desigualdade social, é compreensível que se queira que a escola ocupe os vazios deixados por essas instituições, sobretudo pela família, principal vítima das injustiças sociais.

Um olhar atento aos diversos espaços da cidade e do campo nos revela que a principal maneira do Estado chegar às diversas comunidades é por meio da escola. A escola é a instituição que mais facilmente e efetivamente aproxima os cidadãos do Estado. Entre os indivíduos cuja cidadania foi truncada, a escola é, às vezes, o único modo de se chegar até o Estado. Na escola, as crianças, os adolescentes, os jovens, as famílias pobres revelam o quanto foram abandonados pelo Estado. Falta acesso à cultura, à saúde, à segurança e, por mais que seja gritante a contradição, falta educação. O senso comum pode achar que o problema se resolve com mais tempo, espaço e atividades na escola. Os gestores, sejam das secretarias ou dos ministérios, parecem enxergar apenas os sintomas do problema, não enxergam sua causa.

O olhar focado só nas defasagens escolares corre o risco de fomentar uma proposta que oferece às infâncias e às adolescências truncadas uma escola de tempo integral destinada à recuperação da matéria não aprendida, apenas. Se, por um lado, a questão se reduz ao crescimento da violência e do consumo de drogas na sociedade, a escola de tempo integral pode significar apenas mais tempo e espaço de proteção moral. Por outro, se o ponto de partida é o risco e a vulnerabilidade social, a escola de tempo integral pode se reduzir

unicamente a mais tempo e espaço para as crianças e adolescentes viverem longe do perigo da rua, da família, da sociedade.

As questões, as dificuldades, os sofrimentos que envolvem a infância e a adolescência truncadas são muitos e, por isso, mutilam suas trajetórias de vida e escolar. Portanto, mais do que possibilitar acesso ao conhecimento, às atividades artísticas e esportivas, oferecer proteção moral e física, é necessário lhes garantir mais tempo para trabalhar as diversas dimensões da formação humana, fundamentais a uma vida autônoma. A vida precarizada, porém, nega essas dimensões às crianças e aos adolescentes pobres. Segundo Ana Maria Cavaliere (2009):

Atualmente, a prioridade de um processo educativo emancipatório estaria na ampliação da capacidade de reflexão, no enfrentamento aberto, regrado e refletido dos conflitos e das diferenças, na compreensão do significado, das limitações e das determinações históricas do trabalho e da existência humana. (CAVALIERE, 2009, p. 49).

A ampliação necessária não é só de tempo e espaço. Não se trata também de incluir na antiga estrutura escolar, com tempo e espaço ampliados, as infâncias e as adolescências truncadas que sempre estiveram ocultadas, por isso, invisíveis. Incluí-los, sem que se faça a reflexão, o enfrentamento e as mudanças necessárias na estrutura da escola, sem melhorar as expectativas em relação ao trabalho e à existência humana, significa incluí-los para mantê-los ocultados, invisíveis e silenciados no interior da escola.

A inserção da infância e da adolescência truncada na escola regular, a ampliação do tempo e do espaço requerem o reconhecimento das suas condições reais de vida, do seu direito, entretanto, acima de tudo, é necessário considerar o sujeito que eles já são. Eles carregam, no corpo e no espírito, as marcas do que vivem: da cultura, das identidades, dos valores, da estética, da arte que aprenderam e ajudaram a formular nas suas comunidades. Eles são criativos e têm a própria história para narrar; muitas vezes e vários deles narram sobre as suas diversas carências: dos pais adultos, a quem se nega o emprego; delas, crianças, inseridas precocemente no trabalho. Mesmo assim, o tema trabalho não é tratado no currículo da escola, nem incluído na programação da escola de tempo integral.

Tudo aquilo que essas crianças e esses adolescentes produzem e fazem delas as crianças e os adolescentes que são fica de fora, não entra na escola ou entra como caricaturas, depreciado. Na nossa tradicional hierarquia política e educacional, essas crianças e

adolescentes fazem parte de um coletivo inferior (ARROYO, 2011). Por isso suas vidas não se transformam em conteúdo e saber da escola. De acordo Arroyo (2011):

Em nossa democracia republicana, o poder não vem do povo, nem de sua instrução. Houve e há outros mecanismos de poder mais eficazes. As imagens sociais do magistério, da instrução, do ensino elementar ou médio popular estão associadas às imagens negativas, inferiorizadas dos trabalhadores e dos coletivos populares, seus destinatários. (ARROYO, 2011, p. 74)

Um programa que surge a partir dessas imagens negativas, que não reelabora o conceito de educação, que não aponta claramente seus fins ou se limita a ocupar o tempo dos estudantes, sem mexer na velha e tradicional estrutura da escola, não tem como fazer frente aos processos históricos de precarização da vida das camadas populares. Os processos truncados não são apenas escolares, mas humanos. Logo, exige-se mais do que ampliação de tempo e espaços, mais do que redefinir conceitos, mais do que criar bons programas. Obviamente que tudo isso se faz necessário, mas é preciso ainda que a escola se articule por dentro e com os demais programas educacionais e sociais, que todos tenham como fim criar processos que minorem a precarização do viver dessas infâncias e adolescências e que enriqueçam seus percursos de vida.

Todas essas políticas públicas educacionais analisadas neste trabalho são elaborações do seu tempo, resultantes das contradições da sociedade que as produziram e das correlações de forças nela presentes. Por isso, faz-se necessário ainda analisar o seu contexto.

6 AS POLÍTICAS PÚBLICAS: CONTEXTO E COTIDIANO

6.1 Introdução

Desde a Constituição Federal de 1988, quando foram definidas as competências administrativas de cada nível do poder em relação à educação básica40, o estado de Minas Gerais, não só deixou de construir escolas, como municipalizou grande parte de suas escolas de Ensino Fundamental pelo interior. Alguns municípios, entre eles Belo Horizonte, rejeitaram a proposta da municipalização, argumentaram, mesmo que os municípios devessem atuar prioritariamente no Ensino Fundamental e na Educação Infantil (§ 2º do Art. 211), ao estado caberia atuar no Ensino Médio, mas também no Ensino Fundamental (§ 3º) e que ambos, municípios e estado, deveriam organizar formas de colaboração para assegurar a universalização do ensino obrigatório (§ 4º).

Assim, à medida que a cidade crescia e aumentava a demanda por novas vagas no Ensino Fundamental, foi o município que se responsabilizou por construir novas escolas e atender a demanda. Nas últimas décadas, o crescimento da população brasileira foi acompanhado pelo crescimento da pobreza, em números absolutos. Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques e Rosane Mendonça (2000, p. 23) afirmam que no Brasil “em decorrência do processo de crescimento populacional, apesar da pequena queda observada no grau de pobreza, o número de pobres aumentou cerca de 13 milhões, passando do total de 41 milhões em 1977 para 53 milhões em 1999”.

Portanto, o crescimento das cidades se deu simultaneamente com o crescimento da pobreza. Consequentemente, a expansão da demanda escolar em Belo Horizonte ocorreu nas regiões mais pobres e foi atendida pela Rede Municipal de Ensino.

Além da condição de pobreza dos indivíduos que residem nessas localidades, a região também é pobre em termos de serviços públicos e de infraestrutura urbana. É nessa parte da cidade, onde predomina a carência econômica, que vive a maior parte das crianças, adolescentes e jovens com trajetórias humanas truncadas. De acordo com Edmond Preteceille e Licia Valladares (2000, p. 459), “muito embora renda e educação sejam dimensões centrais na diferenciação social, não se deve negligenciar a dimensão espacial da desigualdade que se manifesta pelas diferentes modalidades de segregação socioespacial”. Os dois autores, quando estudaram as favelas e os bairros populares do Rio de Janeiro, revelaram que a grande maioria

da população que se encontra abaixo da média em relação às dimensões renda e educação residem em setores com maior grau de segregação socioespacial. O Mapa da Exclusão Social de Belo Horizonte (2000), uma publicação da Secretaria Municipal de Planejamento de Belo Horizonte, revela que são nas vilas, favelas e bairros mais pobres que predominam as várias faces do processo de exclusão, como a dificuldade de acesso à renda, emprego, educação, saúde, seguridade social, justiça, lazer, entre outros frequentemente relacionados com a exclusão econômica.

Os alunos participantes deste estudo são, com menor ou maior frequência e intensidade, alvos desse processo que a Secretaria Municipal de Planejamento de Belo Horizonte denominou de exclusão.

Esses alunos, participantes do estudo, deveriam frequentar entre abril de 2009 e maio de 2010, período em que foi realizado o trabalho a campo, o 3º Ciclo do Ensino Fundamental. De acordo com as orientações do “Caderno Zero da Escola Plural”, o 3º ciclo seria o ciclo de formação da adolescência, cujos alunos deveriam ter entre 12 e 14 anos de idade, no máximo 15 anos. A Escola Plural se baseou no “suposto, confirmado pelas ciências humanas, de que dentro do grande período de Educação Básica (7-14) há ciclos menores mais homogêneos de formação social e socialização que têm de ser respeitados e organizados pedagogicamente” (BELO HORIZONTE, 1994, p. 18).

O trabalho a campo, porém, colocou o pesquisador deste estudo diante de outra realidade. No 3º ciclo da escola pesquisada havia alunos com idade superior, assim como havia no 2º ciclo alunos que deveriam, de acordo com a idade, estar no 3º ciclo. Ou seja, no 2º ciclo, nas mesmas salas estudavam pré-adolescentes e adolescentes, e no 3º ciclo, adolescentes e jovens, se considerarmos os critérios da Escola Plural para definir os ciclos da vida. A causa dessa distorção é a retenção dos alunos no final dos ciclos, por terem um desempenho escolar considerado abaixo do desejado, e nos demais anos dos ciclos, devido ao excesso de falta no transcorrer do ano letivo.

Os estudantes participantes deste estudo são alunos do 3º ciclo de formação, considerados adolescentes, de acordo com os critérios da Escola Plural. Mas alguns podem ser classificados como pré-adolescentes e outros, como jovens. Os limites entre as idades são bem flexíveis e mudam de acordo com os interesses sociais que envolvem os menores. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, define que criança é “a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (Art. 2º, Lei nº 8.069/1990). O Projeto Juventude e o Instituto Cidadania, por sua vez, ao realizarem uma pesquisa sobre a juventude brasileira, em 2003, consideraram jovens os indivíduos com

idade entre 15 e 24 anos (VENTURI, 2008). Estudos como o de Georges Balandier (1976) e Bernice Neugarten (1999) apontam para essa dificuldade na definição das fronteiras entre os ciclos da vida. Infância, adolescência e juventude, embora universalizados, são conceitos criados na lida com o indivíduo real e se alteram à medida que muda o contexto histórico, palco das relações sociais.

Analisamos, até o capítulo 4, as trajetórias humana e escolar das crianças e dos adolescentes que foram mutiladas pela pobreza e pela desigualdade social que impera na sociedade capitalista. Procuramos entender como as várias políticas públicas de educação, que se sucederam ao longo dos últimos 20 anos, procuraram lidar com esses cidadãos, com sua cultura, seus valores, suas identidades no sentido de garantir seus direitos. Podemos constatar que, quanto mais chegamos próximos a uma universalização total da educação básica no país, maior é o número de alunos com trajetórias truncadas frequentando as salas de aula e as escolas.

Ao mesmo tempo em que a humanidade avança do ponto de vista econômico e tecnológico, do ponto de vista social, ainda se mantém a produção de pessoas vivendo na miséria. No domingo que antecedeu o dia das crianças de 2011, ao observarmos as ruas de Belo Horizonte, entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a sede da Usiminas, podíamos avistar crianças de 9, 10 e 11 anos, aproximadamente, praticando a arte do malabarismo nos sinais de trânsito e pedindo uns trocados.

Devemos indagar, então: Que políticas são essas, que sociedade é essa que, apesar de seu desenvolvimento econômico e tecnológico vertiginoso, ainda permite que essas crueldades contra indivíduos tão fracos continuem existindo?