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As relações interpessoais, profissionais e pedagógicas no cotidiano escolar

As relações, as conversas, os assuntos no cotidiano da Emag eram pautadas pela necessidade de se transmitir os conhecimentos das disciplinas. Por essa razão, muito da energia das pessoas eram consumidas com ações que visavam o bom comportamento dos alunos para que as aulas pudessem ser dadas e os conteúdos ensinados.

Direção, coordenação, professores e auxiliares de serviço usavam parte significativa dos seus tempos nesse sentido. Era preciso que a escola e os alunos estivessem em ordem para que a escola cumprisse seu papel de transmitir conhecimentos. Na contrafase do controle e da

busca da ordem, estava o que tradicionalmente se entende por ensino; ou seja, transmitir os conteúdos das disciplinas. Todos os recursos disponíveis eram, então, usados para que o professor pudesse exercer esse papel que é a “essência” da escola tradicional.

Nessa perspectiva, o ensino se reduz a uma parcela da cultura. Apenas o conhecimento e a produção humana organizados em forma de disciplina escolar são oferecidos às crianças e aos adolescentes. Outros conteúdos que dialogariam com a identidade étnica, de classe, de gênero, de ciclo de vida dos estudantes, ausentes dessa organização, não são ou raramente são ofertados aos estudantes.

A observação das aulas dos professores na Emag, conforme apresentamos no Apêndice A, demonstrou que os docentes organizavam didaticamente o conteúdo a ser transmitido aos alunos e procuravam fazer a transmissão do conteúdo da forma mais adequada possível. Por mais que alguns professores procurassem dialogar com a realidade social dos adolescentes, com as características do seu tempo da vida, num esforço de tornar a aprendizagem desejável, a organização das aulas era ditada pelo conteúdo a ser transmitido, como é corrente no ensino tradicional, e não pelas características dos alunos (PARO, 2008a).

A seriedade e a boa vontade dos professores da Emag não os isentam de repetir com seus alunos uma prática que é comum da educação denominada por Freire (2005) de “bancária”. De acordo com essa concepção, que predomina na educação brasileira, educar se reduz a transmitir conhecimentos, é “encher” os estudantes com os conteúdos da narração do professor.

Nessa perspectiva, os conteúdos “são retalhos da realidade desconectados da totalidade” (FREIRE, 2005, p. 65). Esta perspectiva nega ao educando sua condição de sujeito, não o educa na sua integralidade. A educação é vista e praticada assim como conhecimento ou informação a ser transmitida a quem não sabe: o aluno, por quem sabe: o professor. Opta-se, portanto, por ensinar um conteúdo que “é da escola mas não é da vida” (TEIXEIRA, 1973, p. 21), incapaz, portanto, de promover a “atualização histórico-cultural do aluno” (PARO, 2008a, p. 24 – Grifos no original). Diante do menosprezo à sua condição de sujeito, ao seu tempo de vida e de formação, à sua identidade cultural, os adolescentes não veem sentido na escola e no ensino e reagem como podem, geralmente desobedecendo às regras da sala de aula e da escola.

No cotidiano da escola, saltam das atitudes dos alunos e dos professores muitos indícios62 de questões que poderiam ser transformadas em conteúdo de estudo. Do uso do banheiro na hora do recreio, da vaidade das adolescentes diante do espelho, do aluno que aprendeu rudimentos de física observando seu vizinho fazendo “chupeta” na bateria do automóvel, dos conflitos entre adolescentes, da vontade dos professores em fazer a diferença na vida dos alunos borbulham demandas, necessidades, características, elementos da cultura e da identidade dos sujeitos que se entrelaçam no chão da escola com potencial de se transformarem em conhecimento a ser ensinado, debatido, pesquisado e pronunciado sem que a realidade seja retalhada e desconectada da totalidade. De acordo com Freire (2005, p. 78), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”

Na perspectiva da pedagogia das classes dominantes, a palavra, a reflexão, o diálogo são negados aos oprimidos. Por meio do monólogo, do isolamento e da imposição da palavra dos dominantes, procura-se fechar a consciência dos oprimidos. Freire (2005) descreveu essa situação assim:

Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. (p. 36-37 – grifos no original)

Apesar do revés sofrido pela Escola Plural, vários dos seus princípios continuam presentes na intenção e na prática de muitos docentes da RME-BH. Vimos, nas salas de aula da Emag, muitas demonstrações desses princípios, principalmente nas aulas dos professores Felipe, Lana, Maria, Deise, Cida, Erasmo e até mesmo nos movimentos do coordenador Fred, que insistia em organizar outras possibilidades de ensino que traspassasse a sala de aula, como as excursões ou uso do ginásio esportivo no tempo de recreio. Os professores da escola que abriram a porta de suas salas de aulas revelaram, por meio das relações que constroem com seus alunos, que estão no mínimo tensionados, mais conscientes do seu papel profissional. Segundo Miguel Arroyo (2011, p. 16),

quanto mais vêm crescendo a consciência profissional, a responsabilidade ético- política, a criatividade e autoria docente maiores as disputas sobre o que ensinar, o que trabalhar, inventar, criar no nosso campo de trabalho. Tem sido a categoria docente no espaço das salas de aula, da escola e até das redes na sua capacidade de inventar projetos, propostas, oficinas, temas geradores de estudo, redefinindo e ampliando o currículo na prática.

Mas toda essa tensão, disputa e movimentação docente, embora relevante, ainda é insuficiente para mudar a realidade do ensino e substituir as pautas dos opressores. Arroyo (2011) lembra que os oprimidos, as crianças, os adolescentes e os jovens com trajetória humana truncada antes não chegavam às escolas públicas, mas agora chegam.

Quando eles não chegavam era porque estava sendo negado a eles um espaço de dignidade e justiça. Agora que chegaram, não é possível continuar negando-lhes dignidade e justiça. O que fazer? O caminho, para Arroyo (2011), é aceitarmos “os educandos populares como guias”; com isso, talvez, eles “nos levem a uma viagem por outros espaços, por experiências menos triunfalistas” (p. 332), entretanto, capazes de lhes devolver sua condição de sujeito que descobrem outras possibilidades de percursos, de luta e de libertação, que a mutilação da sua trajetória não é obra do destino, porém da opressão e da desigualdade social, produtos do sistema capitalista.

A organização mantida na Emag na época do trabalho a campo era a organização possível de acordo com a estrutura oferecida pelo poder público municipal e pelo contexto histórico e social. Ou seja, é a estrutura de uma escola onde predomina a concepção tradicional de educação, apesar das tensões já assinaladas.

A manutenção da concepção e da estrutura da escola tradicional por parte da Smed- BH é acompanhada ainda por uma equipe de monitoramento. Uma vez por semana a “acompanhante” visita a escola no sentido de garantir que os objetivos definidos pela Smed sejam priorizados pela escola.

Foi possível observar várias conversas da “acompanhante” Alessandra com outros profissionais da escola. Todas eram conduzidas no sentido de reforçar os programas e projetos da Smed. Como mencionado no Apêndice A, acompanhamos ainda uma intervenção dela junto ao aluno Inácio. Ela foi bastante atenciosa com o aluno, ouviu com paciência, fez questões pertinentes que indicavam seu interesse, não só pela vida pessoal e escolar, mas

também pelo bem estar do garoto. Inácio ficou bastante satisfeito com a conversa. Todavia, ao final, Alessandra tentou garantir a participação do Inácio no PIP.

O trabalho de acompanhamento e monitoramento da escola realizado pela professora Alessandra é orientado previamente pela concepção de educação e de escola vigente hoje na RME-BH e conduzido pela Smed-BH. A escola tampouco a acompanhante têm autonomia para exercitar outras experiências que não estejam no “manual”. Com isso, a condição de sujeito das crianças, adolescentes, docentes e famílias da escola é ignorada. Todo o maquinário administrativo e toda estrutura escolar visam melhorar índices e dar consistências aos programas governamentais.

Como assinalamos no item anterior e no Apêndice A, as reuniões no interior da escola que poderiam ser utilizadas como ferramentas úteis para reverter a situação servem apenas para fortalecer posições já sedimentadas. Com os pais viu-se uma condução de reunião que, ao contrário de privilegiar o debate democrático, priorizou os interesses da instituição e o ponto de vista dos docentes em detrimento dos interesses da cidadania e o ponto de vista das famílias. O objetivo da reunião era entregar aos pais os boletins e comunicá-los a respeito do desempenho dos alunos. A palavra pertencia à escola, a escuta, aos pais. Os vários pronunciamentos deles durante a reunião foram ignorados. No caso dos resultados da Matemática, que causou muita insatisfação, nem mesmo a mãe, que também era coordenadora, conseguiu reverter a situação.

O problema foi tratado na sua superficialidade, não teve aprofundamento, manteve-se na questão dos resultados lançados nos boletins, sequer tratou dos conteúdos da disciplina tão valorizados pela educação tradicional, principalmente em se tratando do conteúdo da Matemática.

A escola e os docentes perderam uma importante oportunidade de aprofundar o diálogo com as famílias e de colocar em prática princípios democráticos, necessários para transformar o ensino, a escola e a sociedade. Se a burocracia estatal se constituiu num entrave, se o Estado se demonstra incapaz de dialogar e considerar a condição de sujeitos dos docentes, não justifica transferir esse tratamento para as famílias usuárias da escola. Segundo Paro (2002, p. 57), “é a população usuária que mantém o Estado com seus impostos e é precisamente a ela que a escola estatal deve servir, procurando agir de acordo com seus interesses.”

O Conselho de Classe observado, que visava definir a vida escolar dos alunos no final do ano letivo, seguiu os mesmos princípios já anotados de uma escola tradicional, que anuncia

a transmissão de conhecimento como seu principal objetivo e acredita que a punição dos alunos que não atingem as metas é o modo mais correto de qualificar o ensino.

A pauta e o tratamento dela seguiram um percurso pouco pedagógico, marcado pelas demandas mais burocráticas e prazos a serem cumpridos. No final, apontaram os alunos que deveriam ser retidos.

Quando são questionados sobre o trabalho que deverá ser feito no ano seguinte com os alunos que não foram aprovados, os professores não têm proposta. Aceitam os “curativos” que a Smed criou. De acordo com Paro (2003), não devemos, porém, imputar a responsabilidade à má vontade ou falta de compromisso dos professores para com a educação. “A presença da reprovação às vezes se faz tão inquestionável que, mesmo diante de situações que demonstram sua inutilidade, as pessoas continuam a contar com ela para fugir de outras alternativas.” (PARO, 2003, p. 69).

Todos os profissionais da Emag nas entrevistas e nas conversas informais alegaram que queriam desenvolver um trabalho melhor e levar os alunos a aprenderem. Alguns repetiram o chavão: “Eu tento fazer a diferença para os meus alunos.” E de fato tentavam, mas de modo isolado, cada um no seu canto, na sua sala de aula, sem organizar o grupo, sem que houvesse formação adequada dos docentes para superar os obstáculos que se colocam diante da prática educativa. O isolamento não se dava apenas no interior da escola, porém da escola em relação à sua comunidade.

Percebe-se, então, que a estrutura escolar da Emag, que não é uma exceção na RME- BH, identifica-se mais com a estrutura hierarquizada da escola tradicional do que com a estrutura democrática implantada durante a vigência da Escola Plural.

O espaço-tempo da escola, com a estrutura vigente, demarca a trajetória escolar dos seus alunos. Os adolescentes que trazem para a escola as marcas de uma trajetória humana truncada são aqueles que têm maior dificuldade de reconstruir seus percursos e tempos de vida porque a escola, seus docentes, o poder público não se preparam para lhes receber, tampouco para promover por meio da educação a transformação que lhes devolveria a expectativa de uma vida cidadã.

A opção adotada pela Smed-BH, a partir da segunda metade da década passada (2001- 2010), foi manter e reforçar a estrutura das escolas, fundamentando-se nessa concepção de educação, que se mede por meio de avaliações externas, preocupada com índices. Para corrigir os problemas da estrutura ou os problemas sociais que a estrutura não corrige, a

Smed-BH criou, então, projetos paralelos cuja intenção seria desencadear um efeito sinérgico entre os programas de governo.